Quem viveu num bairro que, ao fim do dia, e sobretudo quando vai alta a noite, se torna um desses recintos que abrigam o desejo na clandestinidade, terá podido reconhecer alguns dos rituais que balizam o quotidiano da prostituição. Um dos aspectos que mais me impressionava era ver nas paredes inscritos alguns números que vim depois a saber que eram as matrículas de carros que por ali passavam. Era um alerta, uma forma discreta de denúncia, o aviso que umas mulheres deixavam às outras quanto aos abusos cometidos por este ou aquele cliente. Era uma forma de assistência entre mulheres que, através da solidariedade na sua desprotecção, zelando umas pelas outras, numa espécie de sindicância entre aquelas que, residindo nas margens que a lei despreza, dependem umas das outras para se defenderem de um privilégio odioso. Disto nos fala Karl Kraus, lembrando que a essência da prostituição não consiste em que elas tenham de gramá-lo, mas precisamente em poderem não o fazer.
Aquelas inscrições identificam os agressores, os homens que, ao invés de verem satisfeitos os seus desejos, exigem um sacrifício: em troca do seu dinheiro querem humilhar e degradar alguém. Afastando desde já essa vertente horrível do materialismo que prega “que o amor não tem nada a ver com o dinheiro e o dinheiro, nada com o amor” (Kraus), é importante notar que alguns pagam com a hipocrisia da sua moralidade esse extra de modo a poderem depois retirar um prazer ainda maior quando se aventuram na ilegalidade para colher aqueles frutos que renegam aos demais. De resto, Kraus lembra que se o ciúme do homem se elevou a instituição social, a prostituição da mulher desenvolveu-se como um instinto natural. Mas isto mesmo leva a esse curioso paradoxo, em que aquela mulher paga a sua liberdade cumprindo-a em prisão solitária. Por essa razão, as prostitutas só se têm umas às outras.
Com o feroz engenho do seu escárnio, este satirista vienense notava que “a sociedade precisa de mulheres que tenham mau carácter”, uma vez que “aquelas que não têm carácter nenhum constituem um elemento perigoso”. Nos últimos dias, e à medida que vêm à luz na comunicação social esses contornos que, por pudor, sempre ficam de fora das nossas representações, fomos lembrados de que as mulheres, mesmo as que estão longe de cumprir a sua liberdade pondo um preço e fazendo-se recompensar pelos seus actos amorosos, mesmo quando vivem de acordo com a moral dominante, vêem-se muitas vezes na necessidade de recorrer a mecanismos de protecção semelhantes ao de inscrever as matrículas de certos homens indesejáveis nas paredes como um aviso feito umas às outras. Há dias, em declarações ao Nascer do Sol, a investigadora brasileira Gabriela Caruso fazia este desabafo: “Costumo dizer que toda a académica carrega consigo uma lista de nomes perigosos que são de evitar. Eu já fui assediada por professores e boa parte das minhas colegas de profissão poderia dizer o mesmo”.
Em momentos como este há uma certa suspensão dessa etiqueta que garante que as boas consciências não serão perturbadas no seu gozo de verem representado publicamente sempre o mesmo drama insosso, no qual metade da população se vê dissuadida de exprimir a sua revolta. E isto desde logo pelo facto de, recorrendo uma vez mais às palavras de Kraus, as mulheres se verem obrigadas a acatar a ideia ridícula de terem de se disfarçar de homens para elevarem o seu valor enquanto mulheres. “A Humanidade desde há séculos que assinala o exercício dos direitos femininos como uma vergonha”, sublinhava há mais de um século este formidável inimigo da moral propagada pela imprensa de então como de agora. E o seu ataque ia no sentido de nos fazer ver como, nestas coisas, o mais degradante é a tentação das categorias. Afinal, questionava ele, as que acusam são também elas pecadoras ou impecáveis, estão vivas ou já enterradas? E depois há ainda essa divisão entre as que caem em desgraça e aquelas que, de qualquer modo, a ninguém caíram bem.
Em momentos como este, antes de ser retomado o regular regime de moralização, que convida as mulheres a ficarem caladas para não atentarem contra o pudor, todos experimentam um leve despertar da consciência, apenas o suficiente para um ligeiro incómodo antes de encontrarem uma outra posição de conforto que lhes permita retomar o sono. “A imoralidade vem à luz do dia e, mesmo assim, não tem efeitos desencorajadores”, diz-nos Kraus, adiantando que, no entanto, “muito mais triste é o facto de que a moralidade que predomina no seio do Estado não chegue a ser desvendada e, por isso, não possa servir de exemplo. E remata: “Se não a sentíssemos de vez em quando sob a forma de chantagem, nem saberíamos que ela existe.”
Nas declarações que fez ao Sol, Gabriela Caruso, doutora em Sociologia com ênfase em Estudos de Género pelo IESP-UERJ, vincou que, à parte esse dever dos órgãos de comunicação de fingir sempre enorme surpresa diante de denúncias que deixam de circular à “boca miúda” e são gritadas à boca de cena, no meio académico só quem prefere viver sempre alheado, até para poder manter-se até ao fim no papel, enquanto mais outro gabarola da moral, não tinha a menor ideia de que estas acusações vinham circulando há muito. "Deste caso em específico soube pelo compartilhamento da publicação nas redes sociais, que já identificavam Boaventura como o perpetrador dos casos descritos no artigo. No entanto, desde 2018 ouço relatos de colegas portugueses sobre os comportamentos abusivos por parte de Boaventura, tanto de assédio sexual quanto de assédio moral. As informações circulam nos bastidores, é algo sabido entre os pares, histórias conhecidas no circuito académico. Nesse sentido, não é nenhuma novidade”, frisou Gabriela Caruso, que partilhou, na rede social Twitter, a seguinte publicação: “Nos circuitos feministas internacionais já há muito circulavam histórias a respeito do Boaventura. Isso é um recado para académicos assediadores encastelados em seus departamentos e protegidos pela sua reputação: nós sabemos quem vocês são e o que vocês fazem. E nós vamos caçá-los”.
Evidentemente, também há nestas declarações uma certa inflamação heroica, uma espécie de crença desvairada de que a sociedade e os mecanismos de cativação do privilégio se deixam abalar profundamente por alguém vir expor as contradições no seio da sua moral, como se “os castigos não servissem apenas para amedrontar aqueles que não querem cometer pecados” (Kraus). Mas iremos até mais longe se quisermos ser realmente cruéis, pois essa é, afinal, a verdadeira moral da nossa sociedade. E a este respeito, vale a pena reproduzir outros dois aforismos do mais dilacerante crítico do regime de pudicícia que domina a imprensa: “A histeria é o leite coalhado da maternidade.” E o outro aforismo, extraído como os que ficaram para trás do monumental volume publicado pela VS, com tradução de Lumir Nahodil, diz-nos que se tratou de “uma fuga através dos milénios quando ela, na noite de Inverno mais fria, correu de um baile do teatro para a rua, meio nua, direita ao Prater [Feira popular de Viena] mais profundo, com criados, cavalheiros e cocheiros a vir atrás dela… Uma pneumonia e a morte trouxeram-na de volta ao nosso século.”
E o problema é este: tal como as prostitutas, todos nós no recinto onde, por questões de sobrevivência, estamos obrigados a observar os limites do pudor e da decência, não deixamos de inscrever desde sempre essas matrículas nas paredes. Nos corredores, à boca pequena, trocamos histórias, avisos. Somos solidários, pagamos essa ínfima percentagem que nos exige o sindicato secreto que integramos. De algum modo, quem quer que não ande alheado, há muito que foi ouvindo as histórias, e sobretudo nas questões sexuais, a maioria das mulheres aceita não ter carácter nenhum para não ser tida como uma mulher de mau carácter, essas que vêm romper com este regime hipócrita e têm a coragem de dizer publicamente o que todos sabemos há muito em privado. E se tão poucas o fizeram vivendo cá, e estando dependentes dos mecanismos de promoção e repúdio desta sociedade, isso explica-se pelo receio de serem enterradas vivas. Kraus explica “como uma mulher vital faz a sua paz podre com o mundo: Ela prescinde da personalidade e, em troca, são-lhe concedidas as galanterias.” Quanto às outras, serão levadas a tribunal pelo crime de difamação. Uma vez que acusaram homens que estão em condições de muito maior desafogo e que beneficiam de toda essa rede de influências e também dos mecanismos que garantem a perpetuação dos velhos privilégios de casta, serão transformadas em exemplo para que a verdadeira moral da história possa assim exercer a sua chantagem. Serão uma vez mais espezinhadas, desta vez com recurso ao modelo económico, que garante que quem fica à mercê do modelo jurisdicional, torna-se sobretudo um refém de toda a sua inabilidade e inadequação procedimental, a qual invariavelmente protege aqueles que estão ao abrigo das velhas convenções e preconceitos da sociedade. Nenhuma prostituta se lembraria de levar a tribunal as matrículas inscritas nas paredes, mesmo que todos saibam o valor testemunhal desses avisos.
Todos sabemos que há, na nossa sociedade, “corpos-objecto, corpos utilizados para outros fins”, como nos lembra Geoffroy de Lagasnerie no livro “O meu corpo, este desejo, esta lei”, publicado em maio do ano passado com o selo da BCF. Ele também nos lembra que a violação e, por inerência, o assédio sexual é um momento em que o corpo se faz objecto. Neste aspecto fica muito próximo de Kraus quando este nos lembra como “qualquer erotista vai sempre criando novamente a mulher a partir da costela do homem”. E se as mulheres continuam a aceitar a forma como a sociedade dispõe dos seus corpos quando sente necessidade de limitar certas liberdades para proteger o ciúme masculino, essa objectificação dos corpos continua a exercer-se sem grandes entraves, e no que respeita às vítimas de violação e de assédio sexual, Lagasnerie vinca que é como se essa objectificação os marcasse “para sempre aos olhos dos outros e a cultura não cessasse, em seguida, de ratificar essa constituição, compreendendo a vítima como um objecto disponível que se pode utilizar para os seus próprios fins: penais, mediáticos, militantes – mas que também se pode deixar de parte, se já não lhe servir”. Assim, este filósofo e sociólogo francês que se tem debruçado sobre as questões do Estado penal e da violência que lhe é inerente, lança neste ensaio a hipótese de toda esta forma como negociamos com a dor das vítimas fazer também ela parte da cultura de violação ou assédio. E isto explica como o próprio feminismo ajuda a estigmatizar as vítimas, não as ajudando a sentirem-se melhor, nem a livrarem-se de um episódio que desgraçadamente acaba por encerrá-las nessa categoria, e como, para os seus fins, mesmo esse militantismo das boas causas, não faz outra coisa senão explorar a dor e o medo das mulheres para alimentar a cólera e a indignação à rédea solta, de forma perfeitamente estéril e oportunista.
Por tudo isto, à boca pequena, que é a que conta, seria irresponsável dizer às mulheres para se fiarem no exemplo das corajosas, das que estão por estes a ser levadas a tribunal acusadas de difamação por exporem aqueles que as maltrataram, sendo usadas e objectificadas tanto pelos que as acusam de mentir e de não passarem de umas oportunistas, como dos que avançam para agir como heróis do seus desespero e dor. Mais valia subverter a letra da canção “Mulheres de Atenas” de Chico Buarque, é encorajar antes a que se mirem no exemplo das prostitutas. Porque sabem com o que contam, e só fingem ir na cantiga, também reconhecem que “o amor não só aceita recompensa, como a recompensa também com amor se paga” (Kraus). E quanto aos que se servem dos protocolos do desejo e da sedução para humilhar e degradá-las, nesta sociedade, e enquanto nenhum abalo mais profundo venha a transformá-la, mais vale inscrever os seus nomes nas paredes e nos muros. Essa sim é a linha abissal que separa aqueles que sabem os perigos com que contam, e os outros que ainda perdem o tempo a enaltecer o sacrifício das mulheres de Atenas, berço da tal democracia, cujas extraordinárias limitações hoje são bem conhecidas. E se Kraus nos diz que só quem não sentiu um problema na própria pele será capaz de escrever um artigo de opinião sobre ele, com uma dose de verve muito semelhante, décadas mais tarde, Michaux apontava o dedo àquele que, “com a sua virtude, masturba os seus vícios”.