É preciso que alguém veja como fomos trancados por dentro. Como “o país desbotou/ nos mapas da escola”. Como “desde a rua ao bolor dos corpos dos poetas” tudo cedeu, e se vão fechando os caminhos, as possibilidades. Vive sucessivamente denunciado aquele “movimento inebriante e a doce vertigem de nos sentirmos ainda fugitivos entre ser e não ser” (Sergio Solmi). Vivemos dominados por uma espécie de agonia, na perpetuação de gestos de afogados no seu tempo, prisioneiros de um sentimento de fracasso, como se o próprio tempo não dispusesse de outra relação que não fosse essa condição decrescente, um tempo que consome em si a vida. Incapazes de um rasgo exitoso, só nos resta a porta cuja aldraba nos fere a mão, “a porta caruncho pátria de mar”. Alguns resignam-se, muitos adaptam-se. E “uns quantos vestiram-se de negro” e vivem desde há muito “da morte dos outros”. Não é difícil reconhecer esta triste circunstância que nos é comum. Como prosseguimos “estilhaçados de inércia”, e mesmo se a mão é tomada de um impulso assim que uma linha se lança querendo arrombar este destino, e se parece que “o tinteiro tem qualquer sangue dentro”, diz-nos Luiza Neto Jorge que “no homem não há tinta livre”. E, de qualquer modo, o mais duro é que não haja quem possa ou saiba ler de entre essa “fala de erva e água” um modo leve de ir deixando a senha, de apontar um ritmo que possa crescer depois, avançando sobre um infinito que não seja algum ilusório bairro de deuses, mas que tenha do instinto épico a noção de que rebaixando-se um ser torna-se atento aos aspectos mais da sua dolorosa sintaxe corpórea, indo por fora de todo o descanso, absorvendo intimamente o que se lhe oferece em todas as direcções. Regressamos a Luiza Neto Jorge pela descoberta dessa derradeira noite, a “noite vertebrada”, que ficou acesa, ao longe sempre, onde nos diz a poeta que dormiu a dar à luz, anunciando que trazia “um filho/ que parte o caule às estrelas”. É o assombro outra vez, o rigor das imagens capazes de nos fazer estremecer, de acudir a sentidos embotados. É o mais exigente dos caminhos, esse onde nos é dado aprender a lição de tudo o dissecciona, o que desagrega, que nos faz saber como tudo é matéria decomponível, como nós próprios o somos, a nossa cabeça, as próprias memórias e os desvios que estas oferecem. Ir por entre estas coisas tão minuciosamente colhidas, com o coração rastejando, todo ouvidos, sendo tocado por esta razão vulnerável, e as coisas que vê esse ser feito de um “longo ritmo de sede”, com “íris de teias de aranha”, essa “sentinela das fronteiras extintas”. “Digo na maneira/ mais crua e mais/ intensa// de medir o poema/ pela medida inteira// o poema em milímetro/ de madeira// ou apodrece o poema/ ou se ateia// ou se despedaça/ a mão ateia// ou cinco seis astros/ se percorre// antes que o deserto/ mate a fome”. Aqui afina-se “o estribilho/ das noites apertadas”. É sempre um processo interior, o corpo é a relação que nos guia, o corpo das mulheres ao qual começam por dirigir-se todas as leis, essas disposições mascarando o ciúme, instituição decisiva nas nossas sociedades. O corpo que tem de libertar-se com cada gesto, que carrega um poder de imprecação tremendo e que, por isso, está necessariamente ligado a uma percepção do que poderia ser uma escrita feminina. “Em ódio adormeço em ódio acordo/ a alma desfaz-se hora-após-hora/ o muro estremece até aos ossos”. Mas em vez do gesto nervoso ou irado de quem apenas quebra um jarro, vendo a água correr sobre a mesa, e as flores calarem-se aos poucos, é mais fundo o compromisso de quem arranja e dispõe “as flores mais ácidas”.
A propósito desta obra, Manuel Gusmão assinalava que “as formas de colonização da identidade feminina podem ser de tal forma insidiosas que a reclamação da identidade oculta ou silenciada pode gerar uma espécie de recusa da identidade imposta de fora, e isso pode ser feito através do humor e da ironia que são também características desta poesia”. Por isso, as mais tumultuosas escritas no feminino nunca andam longe de impor essa lembrança de que “a mulher” é já qualquer ser visto de fora: “já me esquecia eu não sou mulher”, anota Luiza. Mulher é uma forma de dizer, um modo de impor certos modos, e desde logo o recato, um cuidado em não perturbar, não se ser inconveniente nem inoportuno. Gusmão adianta também como a estratégia da poesia de Luiza Neto Jorge em relação à questão identitária passa por “conceber-se na diferença e no diferimento, virar do avesso o vestido ou o fato pronto a vestir, desconstruir e revoltar-se com o formato ou a formatação de uma identidade”. E Gusmão vinca ainda um aspecto crucial e que tantas vezes nos escapa num debate que cada vez vem sendo assumido num registo tão exaltado quanto extenuante, incapaz de se deter nessa irreverência fundamental que encontramos nesta poesia, a qual “dificilmente se acolhe ou repousa na figuração estável de uma identidade feminina, como se insinuasse que toda a identidade é relacional e se constrói numa teia de relações, sob pena de uma identidade substancializada se tornar uma prisão que, mesmo que ilusionada, não deixa de poder ser nefastamente eficaz”. No seu tão cúmplice e produtivo esforço de seguir os impetuosos movimentos desta escrita, Gusmão reconhece em Luiza uma emancipação que opera sobretudo pelo “trabalho de um negativo que não cessa, um modo de prolongadamente resistir às imagens identitárias impostas e ao seu contrário essencializado”. Na busca dessa “diferença diferida”, este insuperável poeta-leitor explica como Luiza procede à “des-construção poética dos estereótipos sobre o feminino” muitas vezes através “da citação irónica e deformada da ‘prosa do mundo’, de expressões idiomáticas, lugares-comuns, e fórmulas da coloquialidade mais banal”. No fundo, o espartilho estende-se a todos esses elementos de representação cerimoniosos e que obrigam quem pretende livrar-se desse sufoco, dessa opressão respiratória, impor a sua vingança nos limites mais irrestritos da sua biografia, assinando com cada gesto um desavergonhado ricto que zomba do protocolo: “porque envelheço, adoeço, esqueço/ Quanto a vida é gesto e amor é foda./ Diferente me concebo e só do avesso/ O formato mulher se me acomoda.”
A própria força no feminino surge como uma imprevidência, e este corpo danado, que não cede mas se furta aos limites, descose aos poucos o fio de um razão mesquinha. A vingança é uma condição natural, por isso, daqueles de quem se exige que sejam menos do que podem ou entendem, e daí este esbracejar, o rebuscar-se e revirar com o corpo e tudo o que os sentidos alcançam, e, na poesia, necessariamente, a linguagem, fazendo cumprir entre o som e a grafia os sinais dessa brutal indisposição, dessa rixa entre a intimidade e o ditado, através das contorções sintácticas, fragmentações e elipses, entre outras surpresas que, como refere Gusmão, “obrigam a leitura a silabar”. O ensaísta remete-nos para a invenção de “um novo corpo amoroso”, essa necessidade urgente para a qual apontava Rimbaud nas suas “Iluminações”, e sinaliza como esta poesia se impõe esse “corpo-a-corpo amoroso” como aquele que pode produzir os frutos mais plenos de um conhecimento que leva o ritmo interior a deter esse alcance cósmico. Mais do que nenhuma outra poeta do século XX, há versos de Luiza que definem uma ruptura sem igual – “falo/ com uma agulha de sangue/ a coser-me todo o corpo/ à garganta/ e a esta terra imóvel/ onde já a minha sombra/ é um traço de alarme –, versos que deixam muito claro como é estreita esta condição entre o insulto e a prece, e como, mais do que insurrecto, trata-se aqui de um corpo insepulto, uma beleza que não deseja preservar nada dessa “pureza” de que se fala, mas que revolve e cose o fulgor da maldição exultante de quantas foram perseguidas, vilipendiadas e desfeitas pelo secreto temor de um mundo próximo e pressentido, como se a ele se dirigissem, como se houvesse o perigo de a sua sombra nos engolir. Uma literatura de promessas que não se cumpriram, e que reconhece como da cabeça ao caos nem um passo vai, que às vezes um murmúrio é quanto basta para fazer deflagrar uma hipótese que não se deixa mais agarrar. “A mulher de areia/ conduziu no vento/ os grãos do corpo// rios a fazem e trazem// garfos a possuem/ escorrem nos dentes/ seus olhos de lâmpada// Mulher íntima/ máquina mão detida/ Objecto propagado ao mar”. A fuga, como se sabe, gera inevitavelmente, uma obsessão que contamina tudo. Muitas dessas a quem chamaram mulheres foram esta recusa intensíssima, a perdição dos que não podiam senão ansiar até ao limite da própria degradação pôr cobro a essas liberdades que se riem tumultuosamente do que é próprio. Corpos que nos seus gestos enleiam o infinito, rompendo com as normas do decoro e da decência. “As mulheres, é espesso perfume lembrá-lo,/ têm ângulos ausentes no que vêem e no que falam e nas ocultas/ nebulosas do seu corpo/ o amante adivinha como um homem traído.”
No prefácio à primeira reunião da obra poética de Luiza Neto Jorge, Fernando Cabral Martins referia já o poder da “reivindicação heterodoxa, ou herética”, que há nesta poesia. Aqui, a tão exigente depuração dos versos, estabelece uma tensão terrível, uma floração que consome aos poucos a intimidade no encontro entre ele e ela: “Quando ele se ergue/ debaixo do peito tem a sombra/ enterrada lá vive a mulher (…) Vivendo imposta ao espelho/ retocando os seios/ como os sábios sabem/ para sair em contacto com a sombra/ num terror deixar-se em poucos lábios”. Esta traição subtilíssima de um segredo que não cede na sua infinita cautela mas pisa todos os degraus da terra até ao último, como da intimidade, faz do corpo essa infinita invenção e, com cada passo, é o mundo que treme, tentado pelo sentido final que guarda a mais fascinante visão: a de uma metamorfose que não descansa e se oferece a uma atenção desmesurada… Esse é o incontrolável encanto que produz a beleza, a que não pode ser contida, mas provoca uma desordem interior naquele que observa e que se sente como que a golpear e uivar a partir do interior das paredes do seu próprio corpo. E o pior é o alto preço que cobra de quem procura dominá-la: “Esta é a revolta/ a metamorfose/ onde/ equinócios mecânicos/ abortam os filhos”. E os homens, dominados pelo ciúme, fazem leis, e as mulheres fazem-se cabras: “Foi quando a mulher/ se fez cabra/ no compasso de fúria/ contra a batuta/ dos chefes de orquestra/ que escorrem notas/ dos gritos da música// Fez-se cabra/ desatenta de origens/ cabra com fardo de cio/ no peso das tetas/ cabra bem cabra/ adoçando a fome/ na flor dos cardos”. Eis o desejo, a fome no feminino, a que não cede nem se sacia, a mais insuportável das heresias. Depois disto, certamente, virão outros tratar de reconduzir a cabra à mulher, exaltando os supostos valores imutáveis, pretendendo cosê-la às paredes e forçar “a cicatrização anónima de dor nova sobre dor velha” (Solmi). Mas esse é o tempo que corre por conta de tudo o que se faz sentir enquanto perda, e que nos vêm com as suas urgências vulgares e obrigações sociais. Luiza é anterior e posterior a isso, e lembra-nos o próprio sentido da boca: “em espessura do tempo feito infindo/ em amor me feria dilatava// a boca era um leito um órgão de lava”. Assim, a boca só ganha sentido a partir dessa inversão da mordida, na forma como diz o gosto das coisas, cria ordens de intensidades que alteram, descontrolam, revelam e, ao mesmo tempo, arruínam todos os códigos. O sentido exige sempre das coisas que lhe revelem o seu lado insurrecto, “um exaltado aroma/ perdido na tempestade,// um mínimo ente magnífico/ desfolhando relâmpagos/ sobre mim.”