“Nunca o mundo no espírito do homem funcionou tão pouco, tão mal”, alertava Francis Ponge. Repare-se como o seu funcionamento misterioso cada vez nos diz menos, e com os seus abalos não consegue produzir em nós grande sobressalto, ao ponto de a própria realidade nos surgir como algo que é preciso corrigir, sempre no pior sentido, nesse balanço que vai de alisar tudo o que se imponha como um obstáculo, todas as escarpas, quaisquer resistências. E o mesmo começa a suceder entre nós, no um para um, na conversa da qual despontavam antes essas possibilidades imaginárias, essas hipóteses fragorosas que se cruzavam connosco quando nos dispúnhamos a ir ao encontro do encontro. Hoje toda a relação surge enfraquecida, e chega a parecer-nos inconveniente que alguém se exprima impondo nos gestos e na sua linguagem um vigor tumultuoso. Mesmo os poetas não saem de um registo que se fica pelos mínimos, até para não causar embaraço.
Ponge reparava ainda que “tudo se passa connosco como com pintores que não tivessem à sua disposição para mergulharem os seus pincéis senão um mesmo e imenso balde onde desde a noite dos tempos todos tivessem tido que lavar as suas cores”. Este poeta apontava o perigo desta habituação a essa menoridade a nível expressivo, ao modo de acatar uma certa moral genérica e degradante, que se acabaria por transplantar para as relações no interior de nós mesmos, com a imaginação a acabar por se ver cerceada por essa “mesma ordem sórdida”. Num momento em que tudo a todos parece estar já feito, é diante desta disfunção imaginante que os verdadeiros leitores reconhecem como, “de súbito, nasce outra criatura e logo vai, de novo, estar tudo por fazer”. Assim, como parte desta insaciável relação de descoberta, ler é nutrir “uma atenção espantada” e enredar-se nessas zonas submersas que se aproveitam da refracção e dos desvios da luz na intimidade de cada um.
Um leitor destes anseia sempre por uma obra que soe como um absoluto escândalo. Uma obra que fosse enfim tão doce e radiante como um crime a que ninguém pudesse ficar indiferente, ao ponto de as pessoas mudarem os seus hábitos íntimos, e até os de higiene. Um crime admirável e libertador. Um assassinato com um alvo tão bem escolhido e ainda melhor executado. Para resolver por umas décadas a questão do cansaço, do desencanto e do seu untuoso tom de enxovalho que fez dos versos recriminações ocas em todas as direcções e sobretudo à arte. Faltavam exemplos, era preciso quem tivesse a audácia de maravilhar-se com as coisas mais baixas, aprender o silêncio e ter ainda aulas de música com os insectos, isto depois de se haver dado conta de que “os grilos tratam dos ouvidos uns dos outros”. Que bom se com os poetas se passasse algo de semelhante.
Nem seria preciso falar em sentidos furiosamente apurados, mas que um homem não emperrasse como os demais, nem emprenhasse de ouvido, mas fosse o seu próprio achador, saísse ele para ir saber do mundo, dos fascínios tão maltratados nos nossos dias pelos rumores. Que não tivesse os olhos esburacados, desses que preferem confiar a outros a tarefa de puxar a corda da roupa que vai daqui para o infinito. Mas antes sequer de lavar as mãos, que não haja dúvidas que o que faltava na poesia portuguesa era um gesto firme que tem servido sobretudo para se matar galinhas, mas desta vez, usando até o mesmo alguidar para recolher o sangue, e a mesma navalha, cortar ali mesmo a carótida ao velho. Por agora, com tantos esforços para fingir que não ocorreu nada, persistem uns poucos que “fazem de mortos para escapar aos vivos”, enquanto os que, em público, se reclamam dos títulos do espanto, fazem de vivos, mas fazem-no cada vez pior, rebaixando a experiência para todos os outros.
Vê-se muito saírem por aí grupos de busca, vão sempre muitos com as lanternas acesas ainda que seja dia, desandam por aí em missões de resgate e salvamento, cheios de uma admiração por essas enormes distâncias onde se perde todo o sentido da escala, e fazem saber que partem, não só com grande risco pessoal, mas com instrumentos fabulosos de observação e medição, e ainda toda a disponibilidade para se porem a admirar esses seres de longo curso a que é sempre difícil deitar a mão. São os eternos buscadores dessas coisas que lhes convém mais que não possam ser encontradas, e muitas vezes, porque saem em busca de poetas, importa-lhes voltar arrastando um tremendo fracasso, como se subitamente a espécie tivesse sido arrasada.
E se calhar até foi, hoje como dantes, mas se não deixa de ficar para trás sempre algum mais por teimosia do que por talento para a sobrevivência, mais notável é notar, como fez Cesariny que, “ante o estranho apetite dos Camões (da tripa, do estômago, do sexo, dos olhos, do espírito, das mãos), a sociedade, qualquer sociedade, incluídas as sociedades de escritores, não torce um parágrafo ao seu regimento, nem sei se o poderia fazer, mas costuma, de quando em onde, sagrar um imortal para consumo próprio e euforia da classe”. E logo observa como esta então se serve dos prémios como se fosse isso isco para atraí-los, como se os prémios não fossem um modelo supletivo da farsa de modo a produzir uma “compensação por se existir poeta numa sociedade que assustadoramente não depende de uma vida exaltante, já nem digo poética, para ser sociedade”.
Ora, com essas manifestações hipócritas que definem o próprio regime cultural, e às vezes sacrificando o génio de algum poeta realmente admirável, de forma a dormir melhor nos braços da sua má consciência, esta sociedade consegue assim desviar outros tantos, que talvez ignorados ainda viessem a vingar-se. Mas o mais triste são todas essas expedições para fingir que andará longe a criatura resolutamente fugidia, sobretudo se há poetas que com as próprias fezes desenhas nas traseiras das igrejas versos que, com “a sua força de destruição e reconstrução, intermináveis, do mundo”, desmoralizam inteiramente o deus que serve de álibi a essas existências servis.
Falando naquela estirpe do surrealismo que melhor se vingou do grande atraso e dos percalços na importação como artigo escabroso vindo de Paris, Cesariny explicou que foi, na verdade, o abjeccionismo o movimento que melhor caracterizou as tripulações desses que mais que nutrirem grandes aspirações literárias o que ambicionavam era respirar um ar que não provocasse tal repulsa que puxasse pelo vómito, e a luta que mais tinham em comum nem era como poetas ou artistas, mas como cidadãos: “O cidadão vivia a situação da pessoa expulsa do seu próprio país. O poeta, pelo menos quanto a mim, não pode aceitar essa situação; ou morre, ou ele próprio expulsa as pessoas – de si mesmo, ou de casa, ou do bairro, enfim, na sua zona de criatividade.”
E quando lhe perguntaram o que fazia ele e os outros que vieram a formar esse anti-grupo que ficou para sempre ligado ao Café Gelo, ele não ajudou a insuflar os mitos em volta daquelas reuniões: “Metíamo-nos ali abrigados do fascismo a fumar e a conversar anos inteiros. Não fazíamos nada, nada.”
Outra frase sinuosa que, por esses anos, aqueles rapazes terão raspado tantas vezes nas paredes interiores e que atesta do grau de ferocíssima lucidez que os caracterizava, é de António Maria Lisboa, e Cesariny fazia gosto em trazê-la para a mesa quando possível: “Nós sabemos que somos um erro, mas a consciência disso isola-nos do erra alheio.” E, agora que se assinala o centenário desta figura decisiva para um ideal de libertação que se inspirou sempre em crimes exemplares, agora que desarrolham as tantas garrafas lançadas para bem longe desta terra e pretendem retirar delas, do seu hálito espavorido bem-comportados slogans, as suas palavras entontecidas pelas vagas de tanto terem cruzado mares altíssimos, ainda têm o suficiente no estômago para vomitarem na praia.
Cesariny assinalou como “parece reconhecer-se muito mais facilmente o fogo depois de domesticado”. E adiantava que assim é mais facilmente transportável. Mas “antes de domesticado, é um sarilho, até para os próprios veladores de fogo”. Ora, num tempo em que a edição está entregue a vendedores de fósforos, ele reconhecia como, nem com todos os esforços dessas patrulhas que vigiam a costa à espera que a maré devolva alguns afogados mais cintilantes, “nada disto porém é levedura bastante para nos tirar dos ombros essa nuvem asmática, ou didáctica, e em todo o caso ortopédica, que se desprende dos escaparates das montras e segue em linha fluída as cabeças dos editores”.
Faz já umas décadas largas, quando o seu nome causava sobretudo variações subtilíssimas na música do nosso mal-estar, este poeta tinha um estarrecedor poder de denúncia, e traçava um quadro desolador da nossa literatura, o qual, sem sombra de dúvida se agravou decisivamente nos nossos dias: “Penso que a literatura portuguesa actual é não só a que enfrenta, e representa, algumas das piores condições em que pode gorar-se a literatura, como é também, ela própria, a pior possível. Ela vai lançada numa corrida cuja meta foi há muito retirada da pista. Não quer dizer que não continue a correr – em círculo – acertando, de quando em onde, nalgumas metas falsas postas pela necessidade da organização e pela decência em que há que conter o público. Tão pouco nego a existência dos talentos – mas uma literatura de talentos é a forma mais degradada que pode assumir uma literatura”.
Contra literatura que fica pelo rodeio, a da linguagem decepada, aquela que se serve de todos os meneios e no fim não diz, nem ao que veio, nem o que quer ou quereria no lado para onde diz que dorme ou desperta pior, nunca foi um desses gestores da sua infinita paciência, e aqueles passos que ecoarão descalçando as nossas ruas pelos séculos que virão, ele viu como a poesia não está para os modos delicados de se adiar, esperar melhores ventos, mas vive do que nos fica nas vísceras do esforço de perseguição aos mitos. Por isso, se teve de suportar todas as formas de humilhação, se educou um ódio imenso e simétrico da sua paixão magnífica, a sua poesia parece nascer desse desejo de se inventar nos mais ínfimos detalhes “um país de bondade e de bruma”, ele que confessava numa das primeiras entrevistas que deu que “se pudesse, viajava muito. Mas mesmo muito, mais do que viagens… Onde é que iria? Eu ia sobretudo desaparecer… Desaparecer de onde estou”.
Mais tarde, quando as coisas começaram a ficar mais fáceis, ainda foi daqueles que rejeitou essa forma de aleivosa mendicância a que se dedicam tantos artistas, lembrando-se da lição de Ribemont-Dessaignes, para quem “é preferível sair-se pobre dos grandes cataclismos do que com as aparências da riqueza”. Mas Cesariny rejeitava também aquela busca de uma compensação pelos serviços prestados à pátria no que toca a essa forma de decoração de interiores que empresta algum brilho à alma de um povo. “Claro que se algum de nós começa estrebuchar na rua arranja-se um apoio. Mas eu acho que em tal situação o Estado devia era mandar os pintores e os poetas para a cadeira eléctrica, porque já não são úteis a ninguém…” Para ele era clara a tarefa que se coloca ao poeta: “Encontrar o próprio grito. E esse grito, se acaso atingiu a vibração capaz, naturalmente tinha de encontrar outros gritos que nem sequer conhecia, em mais partes do mundo.” Mas antes ainda de um grito revelar propriedades das que por si só tornam uma civilização extinta digna dos melhores esforços de arqueologia, é preciso lembrar que, antes do deslumbramento, não há razão mais forte do que a revolta: “Grita-se porque não se pode mais…”
Com os cem anos do seu nascimento que se assinalam em Agosto, os seus versos correrão por aí desfraldados e em testemunho daquela sua respiração admirável, mas é preciso interrogarmo-nos sobre a necessidade profunda que o fez ir ao encontro de visões tão sumptuosas, mas sempre como quem deserta, “Rumo ao mar! na direcção desconhecida”, como propunha uma vez mais Maria Lisboa. De resto, como Cesariny sublinha, “não tanto consiste a originalidade no que se diz, quanto na maneira por quê”. E aquele seu fulgor intrépido nascera de um olhar ávido sujeito a tão constrangedores limites, de tal modo que, como Afonso Cautela notou, “tudo o que Cesariny fez foi numa antiga e obscena clandestinidade, como quem pede desculpa de ter génio, de ser uma das aventuras interiores mais fascinantes da nossa poesia”.
E depois do 25 de Abril, de ter andado pelas ruas com uma cara de miúdo que foi despertado à estalada pelo próprio sonho, não demorou muito a perceber como a democracia que agora se propunha ainda era mais outra sórdida miragem, e viu como esta “funciona só através da desigualdade económica, promovendo a fome horrível no Bangladesh para jantarem bem em Nova Iorque”. E não só isto, mas tendo sido desses que o antigo regime obrigava a apresentar-se periodicamente para que lhes escarafunchassem a intimidade na tensa irregularidade que provoca as notas mais doces, ele fez o luto também de uma certa resistência fabulosa: “Toda a gente tinha arranjado uma certa clandestinidade, vivia naquilo, era um mito que estava organizado. Ora, foitudo para o caralho com a democracia. Os corpos desapareceram, aqueles de que eu gostava. Habituado há trinta anos, todas as noites, sempre a mesma comida… a gente fica viciado."
Cesariny tinha essa nobreza de nunca ter precisado de anunciar que existia. Via-se à distância, na forma como reflectia os brilhos mais imprevistos, como impunha ao seu redor um espanto que era como uma descompostura à miséria do quotidiano, como à sua passagem ficavam as coisas feridas pela sua “felina indisciplina”. As grandes noções e ideias que noutros sempre são reduzidas a tiques e a formas de fanfarronice, nele tinha aquela qualidade nascente, e tinha, por isso, aquela arrasadora autoridade que o levava a deplorar “os serviços funerários amamentados por alguns intelectuais portugueses frente ao Surrealismo” e que não conseguiam dar uma volta mais larga nem deixar de “parar só à porta das Edições Gallimard”.
Para tantos desses leitores especializados da poesia, é sempre mais fácil recorrer a perícias redundantes, virem declarar óbitos tomando a parte pelo todo, uma vez que só se mostram competentes a partir do momento em que podem arrumar algum corpo na morgue. Para tantos leitores de poesia, tantos críticos para quem a literatura só pode ser analisada compreensivamente como algo de póstumo, era preciso explicar que o surrealismo nunca poderia ser encontrado nalgum museu entre outras escolas dessas que já nascem tendo em conta a pose face aos elementos erosivos e ao regime geral da putrefacção. “O surrealismo é sempre de hoje, nunca de ontem”, vincava Cesariny. “Nada é tão mistificador como falar da actualidade ou da inactualidade do surrealismo. O surrealismo é de hoje, mas inactual, tão inactual como um índio o pode ser. A actualidade é pequenina e sempre de ontem.”
Se admitiu que o surrealismo falhara, não era que partilhasse a ideia de que as suas intuições se tenham revelado débeis, mas era exigir muito dos homens. Havia ali uma luz violentíssima, e que procurava um caminho de volta a um “tempo em que a poesia estava ligada à vida”. Hoje, quando a poesia é tomada por outro dos modelos a concurso no que toca a afinar regras de etiqueta, tanto mais procurada quanto mais hipócrita, quando em vez de grandes nevoeiros onde um homem possa perder-se para se deixar encontrar só muitos séculos mais tarde, a poesia não nasce já “do contacto com o mundo na solidão em que nos encontramos”, mas é outro desses modos de se pavonear que chega a gracejar cinicamente dos insurrectos e dos românticos.
Foi sempre com essa “consciência da morte quotidiana, fingida, aniquilante”, e em denúncia dos enredos deste “quotidiano que vive com os mortos e que enterra os vivos mal aparece um”, que Cesariny troçava dessas grandes trompetas de onde nunca sai algo mais que uma mosca, preferindo às formas mais à mão da nossa provinciana glória “uma cama feita para morrermos de nojo”. Em lugar daquele convívio entre as figuras entronizadas, ele preferiu a provocação, o escárnio, o “insistente assédio de trovador” (Perfecto E. Cuadrado).
Cesariny tinha aquela intensidade tenebrosa própria de um teimoso último exemplar de uma espécie que aguarda o seu último fôlego para ser dada como extinta, e naquela sua noivadiagem magoada e deslumbrante ele sabia que arrastava consigo um testemunho vertiginoso. Aplica-se melhor a ele a homenagem que fez a outro. “Chego a olhar Almada Negreiros como se olha, estremunhadamente, um fabuloso bicho de outras eras, chegado, por cataclismo cósmico, a um planeta que o ignora.”
Os seus versos deixam em nós aquela dolorosa sideração que sentimos diante de fenómenos muito raros que se desenrolam do outro lado da galáxia e que sabemos serem irrepetíveis. Quando lavava os seus pincéis no balde desta nossa língua comum, as cores recuperavam um brilho assombroso, restituindo “a tudo quanto existe as perdidas cores do tempo dos antigos sóis”, e o português parecia de súbito a língua mais perigosa, a que faz o caminho mais difícil e se lança contra mais dentes, com aquela prosódia estrepitosa, um ritmo que lacera a carne e se entranha na razão, carregando o peso de uma sobrevivência estuporada: “Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra/ uma carruagem de propulsão por hálito/ os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez/ tudo isso vive em mim para uma história/ de sentido ainda oculto/ magnífica irreal/ como uma povoação abandonada aos lobos/ lapidar e seca/ como uma linha férrea ultrajada pelo tempo/ é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costas/ a servir de combustível/ e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas/ para não termos de atirá-las semi-mortas à linha”.