Por Sónia Peres Pinto e Daniela Soares Ferreira
Os fundos comunitários foram apresentados nos últimos 40 anos como uma espécie de tábua de salvação para a economia portuguesa e agora ganhou um novo fôlego com a famosa bazuca, em que os 16,6 mil milhões de euros base do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – dos quais 14 mil milhões de euros são a fundo perdido – foram apresentados como uma espécie de milagre para o crescimento do país. A este há que juntar outros programas como o Portugal 2020 (num total de mais de 25 mil milhões de euros) e o Portugal 2030 (23 mil milhões). Estamos a falar de um total de cerca de 65 mil milhões de euros só nestes três programas. Mas as dores de cabeça vêm a seguir.
Ao i, João César das Neves lembra que estes fundos “quando apareceram, há quase 40 anos, e durante uns 15 anos, foram decisivos, pois o país era muito pobre e carenciado de infraestruturas. Neste século, já empanturrados de fundos, passou a haver muito desperdício”. No entanto, o economista admite que este cenário mudou a partir de 2015, altura, em que “o investimento do Estado tem sofrido grandes cortes, em nome das contas certas, e o equipamento e parque público tem sido deixado a degradar, pelo que voltamos a precisar bastante. Só que não é necessariamente aí que as verbas do PRR se dirigem”.
A somar a este problema está o facto de Portugal continuar sem entregar a reprogramação do PRR em Bruxelas. Em abril, Mariana Vieira da Silva anunciou que a bazuca passará a ter uma dotação acrescida, ou seja, a sua dotação máxima passará a ser de 20,6 mil milhões de euros, representando um acréscimo de cerca 2,3 mil milhões de euros em subvenções e 1,6 mil milhões de euros em empréstimos, face ao plano aprovado em julho de 2021.
O economista diz que “é muito difícil compreender essas falhas flagrantes em temas importantes num Governo que tem maioria”, acrescentando que “estes erros contam muito mais que as trapalhadas que têm ocupado a imprensa”.
Riscos de perder a verba? César das Neves afirma que esse perigo existe, mas acredita que “não é grande”. E explica a razão: “A Europa deve poupar o nosso Governo a essa vergonha. Pior que perdê-las, o problema é desperdiçá-las”.
Um cenário afastado ao i pela Agência para o Desenvolvimento e Coesão que tem como missão assegurar a coordenação geral dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI), dizendo apenas “que tendo em consideração a informação que detemos até ao momento, não existe previsão de perda de verbas” (ver páginas 6 a 9).
Menos otimistas estão as associações empresariais referenciando que “esse cenário de risco” seria prejudicial para o país. “Portugal tem hoje uma oportunidade para implementar reformas estruturais e, em simultâneo, dotar as empresas do cofinanciamento necessário com vista a alcançar ganhos de produtividade e competitividade”, diz o presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), lembrando que isso acontece, numa altura em que, “Portugal tem sido ultrapassado no ranking de desenvolvimento económico (PIB per capita em PPC) por países do Leste europeu que aderiram posteriormente à União Europeia, daí ser completamente inconcebível colocar-se a concretização desse cenário de desperdício de recursos financeiros”.
Luís Miguel Ribeiro não hesita: “Representaria um erro crasso na estratégia económica do país. Uma boa execução dos fundos europeus terá uma grande repercussão no bem-estar das pessoas, na competitividade das empresas e no crescimento da economia. Não temos a certeza se o PRR e o Portugal 2030 serão mesmo a última oportunidade”.
Já em relação ao atraso na reprogramação do PRR afirma que essa situação gera um aumento da imprevisibilidade no setor privado e no setor público, assim como um atraso na disponibilidade dos recursos financeiros para os beneficiários. “Tendo em conta o aumento do custo do financiamento, decorrente do aumento das taxas de juro, e numa altura que a economia necessita de reforçar o investimento, por forma a melhorar a sua produtividade e competitividade, é lamentável esta falha no prazo estabelecido por Bruxelas”, diz ao nosso jornal.
E, se numa primeira fase, a AEP elogiou a flexibilidade da reprogramação do PRR, tendo em conta as novas dinâmicas da economia, neste momento admite que “não pode deixar de olhar para esta situação com profunda preocupação, pelo impacto que poderá ter em termos de uma menor eficiência e eficácia na execução dos fundos”, destacando ser “fulcral para o bom desempenho da economia portuguesa – que desejavelmente deve estar acima da média europeia e, sobretudo, dos nossos principais concorrentes europeus -, que o Governo garanta celeridade, estabilidade e previsibilidade nos níveis de execução dos fundos europeus, quer do PRR quer do Portugal 2030”.
Já para o presidente da Associação Industrial Portuguesa (AIP), se “no início do programa efetuou-se muita pressão sobre o controlo e o acompanhamento com o pressuposto que os utilizadores iriam enganar o sistema, quem exerceu esta pressão esqueceu-se que havia pouco tempo para preparar as condições para a sua célere execução: reforço de recursos humanos para aumentar a capacidade de avaliação das candidaturas; preparação cuidada e ponderada das condições dos avisos de forma a evitar litigância judicial sobre os mesmos; repensar a afetação dos recursos disponíveis à avaliação das candidaturas e à gestão permanente dos pedidos de pagamento; reduzir critérios de seleção para simplificar a avaliação de elegibilidade dos projetos; eliminar critérios de avaliação sujeitos a apreciação qualitativa e subjetiva de técnicos; flexibilizar procedimentos de contratação pública; simplificar procedimentos de autorização de despesas e respetiva delegação de competências; flexibilizar a tramitação de instrumentos de ordenamento territorial; simplificar exigências na constituição de consórcios de forma a tornar mais ágil o funcionamento dos mesmos, nomeadamente nas agendas mobilizadoras”, detalha.
José Eduardo Carvalho lamenta ainda que se tenha criado “um ambiente político e uma pressão mediática nada propícia a priorizar e assumir os procedimentos adequados para permitir a execução futura do programa”, quando agora, de acordo com o mesmo, estamos a assistir ao inverso. “Contesta-se a falta de execução, atribuindo responsabilidades aos gestores e aos Ministérios que os tutelam. Por exemplo, quanto tempo demorou o Banco de Portugal a autorizar os administradores do Banco de Fomento a iniciarem funções?”, questionou. Já em relação ao que é preciso fazer para recuperar atraso defende que “é flexibilizar procedimentos, tramitação, regulamentos, onde tal for possível. E prorrogar o período de execução do programa. Por exemplo, nas agendas mobilizadoras a experiência de congregar grandes empresas, médias e pequenas, universidades e entidades de investigação não é grande. Planear, articular e gerir projetos de investimento com a dimensão que eles têm e com o envolvimento destes agentes, não vai ser fácil e é preciso tempo”.
Puxão de orelhas José Eduardo Carvalho garante que “se o Governo apostou todas as fichas neste plano tem a noção que o falhanço na sua execução é comprometedor para si e para o país”, referindo que “cada vez é mais evidente que com a execução do PRR, a conclusão do Portugal 2020 e o arranque do Portugal 2030, talvez não tivesse sido uma boa decisão, aquando da estruturação orgânica do Governo, distribuir responsabilidades de coordenação e gestão deste programa por diversos ministérios. Assim como não foi avisado terem saído do Governo anterior pessoas com competências, conhecimento e capacidades no domínio da gestão de incentivos”.
Ainda na semana passada, um relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) indicava que a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) aproximou-se dos 800 milhões de euros em 2022, continuando “muito aquém do previsto”. Segundo o organismo, o investimento público financiado pelo PRR ascendeu a 290 milhões de euros dos 1.216 milhões de euros previstos no OE 2022 (grau de execução de 24%)”.
E salienta: “Esta execução mostrou-se insuficiente para impulsionar o investimento público para fazer face à depreciação do stock de capital das Administrações Públicas, em erosão há mais de uma década”.
Quando questionado por estas críticas, o presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN) lembra que em relação ao Portugal 2020, o prazo para conclusão dos investimentos está a aproximar-se rapidamente. Relativamente à bazuca, admite que a sua execução em 2022 foi inferior ao expectável, mas acredita que já este ano “se assista a um considerável aumento do investimento público”.
Mas deixa um recado: “O nosso país tem ao seu dispor verbas no PRR que, em conjunto com os restantes instrumentos europeus, totalizam um montante de cerca de 6,8 mil milhões de euros por ano, para investir até 2029, o que exige o cumprimento de um rigoroso planeamento, calendarização e execução dos investimentos. Acresce que, tendo em consideração a situação económica atual, com uma conjuntura fortemente condicionada pelo aumento dos preços e pelos encargos com o financiamento, uma ineficiente implementação no terreno do PRR, apenas contribuiria para um agravamento da situação económica dos portugueses. O nosso país não pode desperdiçar as verbas europeias disponíveis, pelo que devemos concretizar os investimentos necessários a um maior e mais sustentável desenvolvimento económico e social”.
Também César das Neves diz que a acusação do Conselho das Finanças Públicas “é grave” e afirma que, “para já, o arranque do PRR está a ser difícil”.
Marcelo Rebelo de Sousa não tem ficado alheio ao soar destes alarmes. Ainda no passado avisou a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, que estará “muito atento” e não a perdoará caso descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que acha que deve ser, ainda assim, Medina não quis comentar estas declarações por quem disse ter “particular estima”. Declarações essas que levaram tanto António Costa, como Fernando Medina a garantirem que “o Governo está coletivamente empenhado em ter uma boa execução dos fundos comunitários”.
Já no mês passado, o Presidente da República afirmou que os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) são fundamentais para o futuro da economia portuguesa. “Podemos dizer com alguma segurança que vamos depender largamente do seu grau de implementação”. E referiu: “Vamos entrar na fase crucial do arranque daquilo que vai além do prazo do PRR e vai marcar um horizonte longo e decisivo tanto na nossa vida, como na vida de Portugal”.
Portugal vs verbas Ao i, o secretário-geral da Associação Business Roundtable Portugal (BRP) – composta por 42 empresas e grupos empresariais – admite que Portugal é habitualmente descrito como tendo problemas de falta de capital na economia, quer nas suas empresas, quer nas famílias, quer no Estado e, como tal, a ideia de haver mais capital parece, em princípio, boa. Mas nem sempre é assim. “Quando olhamos para os 40 anos de fundos comunitários e comparamos com o muito fraco crescimento das últimas duas décadas perguntamo-nos se têm sido bem empregues, isto é, se têm deixado Portugal mais forte”, diz Pedro Ginjeira do Nascimento, defendendo que, “teria sido importante canalizar os fundos que recebemos para promover maior atividade de valor acrescentado e para concretizar as reformas urgentes que o país tanto precisa para se desenvolver e crescer. Não sentimos no Estado este sentido de urgência, nem o pragmatismo”.
E dá como exemplo, o PRR que, no seu entender, “foi um programa desenhado para ser uma reação rápida à pandemia que devia ter tido uma aplicação célere, mas na prática o país fez a recuperação económica sem ele. Fomos o primeiro país a apresentar o nosso plano na Europa, mas os primeiros desembolsos do PRR apenas foram executados há precisamente um ano. Em maio de 2023 temos apenas 11% dos pagamentos realizados e 17% dos marcos e metas cumpridos. Falando do PT2030, que já teve as primeiras candidaturas, mas cujo plano anual será apresentado apenas…em setembro próximo. Falta uma visão integradora, ambição e sentido de urgência para concretizar”.
E face a este cenário garante: “Quem não cria riqueza, não gera oportunidades e cria pobreza. Isso é o que temos visto acontecer, sobretudo nos últimos 20 anos e que tem levado muitos dos nossos jovens a procurar outros países. Somos hoje o 8.º país do mundo com maior percentagem da população a viver fora. Não é uma posição invejável. Temos que ter capacidade de os atrair de volta e isso só se faz com mais crescimento, mais oportunidades. Estes fundos deveriam ser vistos como uma oportunidade única para acelerarmos o desenvolvimento económico e social, no sentido de criarmos um país mais rico, justo e sustentável”, defendendo que, esta verba comunitária pode ser importante se for bem canalizada.
“Deveríamos privilegiar a inovação e o potencial transformador do investimento, a requalificação da nossa força de trabalho, a globalização das nossas empresas, o crescimento do tecido empresarial, no sentido de dar mais condições para que as nossas pequenas empresas se tornem médias, as médias grandes e as grandes globais. Por exemplo, consideramos que os custos intangíveis deveriam ser elegíveis, nomeadamente nos projetos de internacionalização, em que a criação de marcas e acesso a novos mercados é muito relevante”, conclui.