Costa imita Soares e faz charme a igreja

Com um olho no eleitorado e outro na visita do Papa em agosto, António Costa aproveitou a presença do número dois do Vaticano para atenuar o efeito da aprovação da lei da eutanásia.

Por Raquel Abecasis

Causou estranheza a ausência de Marcelo Rebelo de Sousa na sede da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no dia 13 de maio, quando, após presidir às cerimónias de Fátima, o número dois do Vaticano foi visitar o local. O Presidente da República é deste o início um entusiasta da realização da JMJ em Portugal e fez questão desde o início de acompanhar de perto os preparativos. É estranho, portanto, que, estando Marcelo em Lisboa, não tenha acompanhado a visita do cardeal secretário de Estado do Vaticano. Quem lá esteve e aproveitou para visitar pela primeira vez as instalações foi António Costa e uma vasta comitiva ministerial.

Ao que o Nascer do SOL apurou, o atual estado das relações entre o chefe do Governo e o Presidente terá tido algum peso na decisão presidencial, mas, ao que nos dizem, Marcelo terá tido uma razão suplementar para não marcar presença. O Presidente não queria aparecer na fotografia em que António Costa procura recuperar dos danos da aprovação da lei da eutanásia, quer diante de algum eleitorado católico que vota socialista, quer junto do Vaticano, onde o Papa fez questão de assinalar com tristeza e publicamente a aprovação da lei.

Tal como fez Mário Soares em 1984, quando pela primeira vez o Parlamento abriu a porta ao aborto em Portugal, António Costa quis, no dia imediatamente seguinte à aprovação da eutanásia, dar uma imagem de proximidade à Igreja.

No mesmo dia em que o Papa manifestava a sua tristeza por Portugal ter decidido juntar-se ao grupo «cada vez maior» de países que adotaram «a lei da morte», o primeiro-ministro português não quis deixar de aproveitar a oportunidade de aparecer ao lado do cardeal secretário de Estado do Vaticano, o número dois do Papa Francisco, a visitar a sede da Jornada Mundial da Juventude.

Apesar de o Governo ter desde o início mostrado o maior empenho na organização da JMJ, a verdade é que António Costa nunca tinha visitado as instalações e escolheu precisamente o dia 13 de maio para o fazer. Porquê? Provavelmente por ter percebido que a aprovação da lei da eutanásia deixou incomodados muitos dos seus eleitores do centro e uma manifestação de proximidade à Igreja e ao Vaticano seria o ideal para acalmar os ânimos. A ideia foi  substituir as críticas de Francisco, no mesmo dia, por uma imagem simpática de António Costa sorridente e lado a lado com o número dois do Papa.

Inspirado por Mário Soares

António Costa poderá ter ido buscar inspiração ao que fez Mário Soares em 1984. Soares era então primeiro-ministro. No Parlamento, foi aprovada a lei que previa a «exclusão de ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez». Na altura, tal como agora, o debate não foi pacífico no país e a Igreja católica assumiu a liderança dos que eram contra as alterações à lei.

Aprovado o diploma, Soares quis recuperar a sua imagem junto dos católicos e da hierarquia da Igreja. Socorreu-se da sua amizade com o então cardeal secretário de Estado, Agostino Casaroli, e rumou a Roma para se encontrar com João Paulo II. Mas Dom António Ribeiro, então patriarca de Lisboa decidiu estragar os planos de Mário Soares. Ligou ao diretor de informação da Rádio Renascença e disse-lhe que era necessário enviar um jornalista para Roma, onde ele próprio também iria estar e queria fazer declarações públicas. 

No Vaticano, Dom António Ribeiro ainda tentou evitar o encontro do Papa com Soares. Não o tendo conseguido, fez questão de prestar declarações ao jornalista da RR depois da audiência e das declarações de Soares. 

De Roma para Lisboa, chegava pelas ondas da Renascença uma declaração muito dura do patriarca e que denunciava a tentativa de instrumentalização do Papa por parte de Mário Soares.

Décadas mais tarde, António Costa usa a mesma estratégia. Desta vez, quer o bispo responsável pela organização da Jornada Mundial da Juventude, D. Américo Aguiar, quer o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, aparecem lado a lado com o primeiro-ministro sem aparentar qualquer incómodo. 

Na sede, a placa que assinala a visita do número dois do Vaticano está mesmo ao lado de uma outra onde está escrito o nome do chefe do Governo. A bandeira que tapa as duas placas é a mesma e os dois protagonistas descerram-na ao mesmo tempo. 

Desta vez, só o Presidente da República, que não desconhece o que se passou em 1984, quis marcar com a sua ausência o desagrado com a operação de charme de António Costa no mesmo dia em que enviava para Belém a lei da eutanásia. 

A resposta que nos chega de Belém para justificar a ausência do Presidente é lacónica: «O Presidente não foi contactado para acompanhar a visita à JMJ, provavelmente por ser o Governo e as Câmaras as entidades relevantes para a visita preparatória». 

Mas Belém faz questão de sublinhar que Marcelo Rebelo de Sousa esteve no dia 12 à noite em Fátima, local onde estava previsto um jantar com o cardeal Pietro Parolin. Os dois acabaram por não se sentar à mesa, porque o Presidente Marcelo se atrasou no cumprimento da agenda oficial, mas fez questão de avisar atempadamente o cardeal e garantir-lhe que iria assistir às cerimónias de Fátima no recinto.