Por Raquel Abecasis
É um clássico. Cavaco fala e o país político abana. Mesmo os colaboradores mais próximos não deixam de se espantar com o fenómeno sem paralelo na vida política portuguesa. Aos 83 anos, o ex-Presidente da República e antigo primeiro-ministro decidiu entrar de novo com estrondo na vida política nacional. O que quis Cavaco? Que resultados pretendeu obter com um discurso em que disparou violentamente em todas as direções? Porquê ao fim de tantos anos escolher fazê-lo numa reunião partidária em que não participava há mais de 20 anos?
São respostas que só o próprio pode dar, nenhum dos seus colaboradores mais próximos, do presente e do passado, se arrisca a fazer uma leitura cabal. Mas a convivência de muitos anos com um homem que esteve na política durante grande parte da sua vida ativa, e o modo muito racional e perspicaz com que sempre decidiu os seus passos traz-nos algumas leituras possíveis.
Impressionado com a capacidade que Cavaco ainda tem em marcar a vida política de cada vez que fala, Pedro Santana Lopes, numa entrevista que publicamos nesta edição, não tem dúvidas de que, para além de motivações patrióticas e de preocupação com a situação atual, há outros motivos que fazem Cavaco Silva agir agora. “Eu não estou a dizer que o Prof. Cavaco Silva não é patriota ou não tem boas motivações, mas obviamente todos os líderes têm uma componente egocêntrica substancial, portanto veem a evolução do mundo em função de si próprios e da esfera de intervenção que possam ter”. Para Santana Lopes, o ex-chefe de Estado quer desempenhar um papel no evoluir dos acontecimentos e quer desempenhá-lo por oposição a Marcelo Rebelo de Sousa, o atual Presidente. E quando perguntámos se Cavaco Silva ainda tinha um papel ativo a desempenhar na política portuguesa, Santana Lopes respondeu “nunca se sabe” e lembrou Sandro Pertini, que foi Presidente de Itália com 88 anos.
Colaboradores e amigos próximos ouvidos pelo i não se mostram espantados com o momento escolhido por Cavaco Silva para falar: “Isto veio na linha do que tem vindo a dizer nas suas intervenções mais recentes”, diz-nos um antigo assessor do Presidente. No entanto, o mesmo colaborador reconhece que esta intervenção teve contornos diferentes do habitual: “Houve um lado emocional que o levou a ser mais violento, depois daquela semana”.
As várias vozes ouvidas pelo i concordam na análise de que o discurso, que teve duas partes, se deveria ter ficado pela primeira. A verdade é que nem os companheiros de todas as horas gostaram de ouvir o ex-Presidente num tom “mais emocional” a zurzir no Governo. A primeira parte do discurso, “onde faz uma análise muito certeira da situação política”, acaba por ser prejudicada pelo segundo momento da intervenção. Ao descer ao nível partidário e adjetivar com palavras duras o Partido Socialista, os mais próximos de Cavaco confessam ter ficado surpreendidos. “Preferia que não o tivesse feito”, diz-nos uma das pessoas que há mais anos acompanha o antigo Presidente.
Referindo que Cavaco não fez apelos à dissolução, uma dos antigos colaboradores ouvido pelo i defende que “aquilo não é uma coisa contra o Marcelo” e atribui as declarações muito carregadas ao facto de esta ter sido “uma das intervenções mais emocionais dele”. Numa comparação com Mário Soares, a mesma fonte diz que “são pessoas que já não têm nada a perder e que usam um lado mais senatorial, geracional”, para fazerem ouvir a sua voz. A mesma fonte sublinha ainda que “António Costa veio alegar que Cavaco se está a vingar de lhe ter dado posse no governo da geringonça, mas esquece-se que o Presidente lhe fez o grande favor de exigir um acordo escrito que lhe permitiu governar com estabilidade”.
Quanto às reais intenções de Cavaco Silva ao decidir fazer agora esta intervenção, todas as fontes ouvidas pelo i afastam a ideia de que o ex-Presidente tenha uma agenda política escondida, mas admitem que ele “tem consciência do peso e do impacto que tem de cada vez que decide falar” e, ao que nos dizem, “nunca vai abdicar de intervir e de tentar influenciar, sobretudo os que estão na sua área política”. “Sabe o poder que tem e quer usá-lo”, dizem-nos. Uma das nossas fontes, que recusa a leitura de que esta intervenção tenha vindo subalternizar o líder do PSD, acrescenta que “Cavaco tem uma boa relação com Luís Montenegro, muito diferente do que se passava com Rui Rio”.
A opinião consensual é que, apesar da idade, Cavaco Silva mantém-se muito ativo, “recebe muita gente no seu gabinete. Portugueses e muita gente vinda de fora” e embora à distância “não quer deixar de ter uma palavra a dizer” sempre que considere útil e necessário. Esta intervenção, garantem-nos, não vai ser a última, embora ninguém arrisque adivinhar quais vão ser os próximos passos. “Ele ouve muita gente, sempre o fez, mas decide sozinho”.