Aos 72 anos, repousa o guerreiro. Mas sempre agitado. Até porque tem fé. Os abusos de menores na Igreja Católica trazem-no inquieto. Durante os 48 anos de carreira fez muitos inimigos. Para isso é preciso ter talento. O processo mais falado com que começou a arrecadar ódios foi o caso ‘Setúbal Connetion’, que envolvia contrabando. Pela primeira vez, um magistrado foi acusado. Mais tarde, o escândalo que abalou a Casa Pia e fez estremecer a classe política tornou-o num alvo a abater.
José Souto de Moura, antigo procurador-geral da República, recebe-nos em sua casa, diz ser de uma fúria mansa. Não aparente, mas adivinha-se.
Pedro Strecht, o pedopsiquiatra das vítimas da Casa Pia, liderou a recente Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa(CI) e o senhor, que era procurador-geral da República à época do processo da Casa Pia, é coordenador das Comissões Diocesanas (CD) de proteção de Menores e Adultos Vulneráveis. Houve uma coincidência nestes convites?
Penso que não, a não ser o facto de ambos termos feito parte da Comissão Diocesana de Lisboa, desde o início, em 2019. Eu fui eleito coordenador pelos meus pares em 2022, enquanto o Pedro Strecht surge convidado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Existem 20 comissões diocesanas, mais uma que é a das Forças Armadas. Aliás, eu já estou de saída da coordenação porque ficou definido na equipa (somos cinco) que teria de haver rotação na chefia. Fez em fevereiro um ano e chega! Isto ocupa muito tempo…
Quem vai ocupar o seu lugar?
A doutora Paula Margarido que também faz parte da equipa. Mas vou continuar na Comissão a dar o apoio que puder.
As CD também investigam?
Claro, quando para tal incumbidas pelo Bispo da Diocese ou Castrense. As CD recebem queixas de comportamentos censuráveis que envolvam menores ou pessoas adultas vulneráveis, cometidas por pessoas ligada à igreja, como os clérigos, que são os sacerdotes, diáconos e bispos. Abarca também as congregações diocesanas, institutos de vida religiosa e qualquer pessoa que tenha um cargo ou uma função na Igreja, mesmo leigos. Todas essas pessoas são o universo subjetivo dos agressores com que as comissões se preocupam. Numa reunião nacional das CD, a 4 de fevereiro de 2022, entendeu-se que era fundamental uniformizar os procedimentos das várias comissões. Então, a principal tarefa que tive foi escrever um manual de procedimentos e boas práticas para que todos andássemos a fazer o mesmo. Havia algumas comissões que já tinham os seus regulamentos, e muito bem feitos, e fiz questão que eles se mantivessem juntamente com a Base Comum.
Pode dar exemplos de algumas regras desse manual?
Uma queixa, ou notícia de abuso, passa primeiro e antes de tudo o mais por uma filtragem. Há uma pessoa, designada pela comissão, que ouve a pessoa e transmite à comissão, por escrito, a notícia de um abuso.
E se for uma denúncia anónima?
Não se deixa de investigar pelo facto de a notícia ser anónima, tal como está previsto no vade mécum, um instrumento de procedimentos do Dicastério para a Doutrina da Fé (antes Congregação, e que já foi o Santo Ofício). Faz-se uma averiguação preliminar para avaliar se tem credibilidade e se se deve fazer alguma investigação. Se a denúncia for circunstanciada, com datas, local e agressor, se tem dados que possam levar à vítima (ou vítimas) ou, pelo menos, a testemunhos desses abusos, otimo e então avança-se. Têm, é claro, de relatar um comportamento que constitua um crime previsto no Código Penal (CP) ou um delito ao abrigo do Direito Canónico. E deve ser logo enviado para o Ministério Público. Foi o que eu propus no manual. O que deve é ser algo que tenha pés para andar.
O respeito pela presunção da inocência e o contraditório são respeitados?
Têm de ser, são regras universais. Não é só do direito penal civil, o direito canónico também prevê essa presunção e o contraditório. Claro que o direito canónico do tempo da Inquisição não era exactamente assim (risos). Importa esclarecer que a presunção de inocência não significa convicção de inocência, ou seja, não é um ‘atestado de inocência e relaciona-se sobretudo com o ónus da prova: é a acusação que tem que tem que provar a culpa.
E se os crimes estiverem prescritos?
No processo canónico, é obrigatório fazer a investigação. A prescrição canónica só começa quando a vítima tem 18 anos e, mesmo assim, o Dicastério, em casos que entenda que os crimes em questão são muito graves, pode não aplicar o instituto da prescrição. Claro que no processo penal civil não haverá investigação face à prescrição.
Após essa reunião nacional das CD, em fevereiro de 2022, foi divulgado que no total tinham ouvido 34 alegadas vítimas. Estes casos seguiram todos para o MP ou estavam prescritos?
Mesmo que estivessem prescritos, seguiram para o MP. Aliás, essa regra está no manual que foi escrito. Porque há situações em que pode haver suspensões ou interrupções da prescrição e também porque estas comissões não são constituídas necessáriamente por juristas penalistas.
Uma das recomendações feitas no relatório da Comissão Independente prende-se, precisamente, com o aumento do prazo legal de prescrição no que toca ao abuso sexual dos menores (uma proposta de lei que, entretanto, já foi aprovada pelo Governo). Concorda?
Claro que sim, desde a Casa Pia que se pedia isso!
Como reagiu ao ver Paulo Pedroso a comentar os abusos sexuais de menores cometidos na Igreja, indo até ao encontro da recomendação da CI?
Não ouvi, contaram-me. Fiquei muito espantado ao saber que Paulo Pedroso falou sobre este assunto na televisão. Mas não vi e não sei. Não é por falta de curiosidade, mas sim porque muitas vezes tenho tempo mas não tenho paciência, ou tenho paciência e não tenho tempo (risos) Mas, não se confundam as coisas. O facto de ser o Dr. Paulo Pedroso a falar não pode ter para mim qualquer tipo de reserva. Porque se presume inocente de tudo o que lhe imputaram. Mas voltando ainda às recomendações da CI: esta propôs inclusivamente que se criasse uma organização sediada no Ministério da Justiça para se combaterem os abusos sexuais de menores, fora da Igreja, e, que eu saiba, não teve eco nenhum.
Em que fase é que as CD fazem o contraditório? Pergunto-lhe isso porque, se o suspeito for ouvido antes de a queixa seguir para o MP, isso coloca em risco toda a investigação.
Esse perigo não se coloca. A regra da investigação, elementar, e que segui sempre, é a seguinte: só depois de se terem reunido e as provas coligidas é que se deve ouvir o denunciado para o confrontar com aquilo que já foi apurado. E, em regra, será o último a ser ouvido.
Foi o que aconteceu com o padre Mário Rui (pároco de São Nicolau e de Santa Maria Madalena, em Lisboa)? Sabemos que foi o senhor que fez a investigação.
Claro. Os procedimentos são iguais para todos. Mas quem me nomeou para fazer a investigação como seu Delegado foi o senhor Cardeal.
A denúncia era anónima?
Sim e, em termos civis, estava prescrita. Mas não posso falar do caso, estou obrigado a sigilo total. Por norma, no fim da investigação, há uma proposta de arquivamento ou não. É o Sr. Cardeal quem fecha a investigação e a deve mandar para para Roma, que tem a palavra final. Este trabalho não foi fácil. Em parte porque as denúncias eram anónimas. E nós tínhamos quatro para investigar. Mas fiz tudo o que podia. Ainda pedi a elementos da extinta CI para ver se estabeleciam o contacto com as vítimas e se elas renunciavam ao anonimato para ajudar na investigação. Mas dissera-me que não podiam colaborar por tinham acabado o seu trabalho e já havia outra comissão. Fiz ainda um comunicado que saiu na Lusa mas ninguém apareceu.
Como a medida cautelar que impedia o padre Mário Rui de exercer o seu ministério já foi levantada, pressupõe-se que a sua proposta foi a do arquivamento…
A conclusão é vossa.
Nos casos que já chegaram às CD, ouviu algumas vítimas?
Claro.
Como é que se sentiu?
Como me senti noutros casos. Não é por um menor ter sido vítima de um clérigo que isso tem repercussão na maneira de lidar com ele.
O facto de ser católico podia, de alguma forma, manietá-lo.
Não. Como católico, fico mais triste, não digo indignado porque é uma palavra que não cabe aqui. Fico triste, espantado e gostaria que isto acabasse rapidamente ou diminuísse substancialmente. Lembrem-se que a Casa Pia foi uma lição. E durante a minha carreira tive outros casos. Um deles preocupou-me muito porque era uma questão de miséria humana. Foi em Ponte da Barca e partiu de uma denúncia sobre um pai que abusava das duas filhas. Quando ouvi o homem, percebi que há situações que facilitam certos comportamentos. Disse-me que dormia com a mulher e as filhas na mesma cama. Mas há uma fórmula que usei sempre ao lidar com a prática de crimes: tinha de senti-los como se fossem um problema meu, mas tratá-los com alheios. Tenho também que manter distanciamento em relação ao agressor. Alguém com sentimentos e preocupações morais não pode deixar de reprovar a situação, mas também não se pode esquecer que está perante um ser humano, seja o próprio pai ou clérigo, a quem assistem direitos de defesa.
Que análise faz do trabalho da CI?
Tenho de dizer duas coisas. Foi a Igreja, através da CEP, quem tomou a iniciativa de criar uma comissão independente. E acho importante sublinhar isto porque, a 31 de maio, foi apresentado em Espanha o relatório sobre abusos sexuais na Igreja Católica e quem tomou conta do assunto foram as comissões diocesanas. Foram elas que receberam as denúncias e, no fim, os dados foram remetidos à Conferência Episcopal Espanhola que os sintetizou e fez o relatório. O estudo tem um intervalo temporal semelhante ao nosso, de 1940 a 2022, e a percentagem entre vítimas do sexo masculino e feminino também são as mesmas. O jornal El Pais, que tomou a dianteira lá e lançou um inquérito sobre o mesmo assunto, antes da Igreja, recolheu 503 testemunhos. Portanto, bastante menos do que as Comissões espanholas.
Está a querer dizer que em Portugal a Igreja deveria ter seguido o mesmo caminho?
Não. O caminho que seguimos dá credibilidade à Igreja Portuguesa porque, se tivéssemos colocado as Comissões Diocesanas a fazer o mesmo, haveria muita gente que poderia dizer: ‘lá estão eles a defenderem-se’. Assim, fica a imagem de imparcialidade mais clara. A Comissão foi criada para fazer um levantamento histórico sobre esta problemática, fez um estudo para conhecer a realidade e fez um bom trabalho. Não se pode querer acabar com um mal, ou minorá-lo, sem conhecer a dimensão desse mal, e a Comissão Independente procurou fazer isso.
Mas, a certa altura, extravasou esse papel, parecia uma comissão de investigação. Enviou 25 casos para o MP, a maioria foram arquivados, só seis estão em andamento, no final dizem que há 100 padres suspeitos de abusos… As pessoas achavam que o relatório da CI servia para ajudar a Justiça.
Acho que a intenção não foi essa. O raciocínio deve ter sido o seguinte: temos estes nomes que foram denunciados, agora cabe à Igreja ver se isto dá origem a alguma coisa e ao quê. A Comissão Independente achou que fazia um trabalho meritório, e eu acho que teve alguma utilidade, ao enviar a lista de sacerdotes que tinham sido apontados como abusadores. Essa lista teve depois de ser usada e filtrada pelas dioceses que tiveram de retirar todos aqueles que tinham falecido, ou que estavam no estrangeiro, ou deixaram de ser padres, ou eram desconhecidos.
Logo a seguir a terem publicitado a lista, passou a ideia de que esses sacerdotes estavam no ativo. Na conferência de imprensa da CEP, os jornalistas fizeram um ataque cerrado a D. José Ornelas e exigiu-se que rolassem cabeças de imediato, quando nem se sabia quem eles eram. Havia casos em que só era conhecido um nome e noutros nem isso.
Direi apenas que a conferência de imprensa não correu bem. Aliás, D. José Ornelas fez rapidamente o mea culpa no jornal Expresso, e não só.
Dessa lista apurada pela CI, quantos nomes seguiram para a CD de Lisboa?
A lista que foi enviada para o Patriarcado de Lisboa envolvia 24 padres. Desses, apenas cinco estavam no ativo. Em relação aos outros, quatro já estavam suspensos, dois internados por doença mental, dois tiveram processos canónicos e civis que acabaram por ser arquivados, havia um padre que tinha passado para a confissão anglicana, quatro que não se conseguiu saber quem são, um que já estava preventivamente afastado, oito que já tinham falecido e ainda um leigo.
Os números de Lisboa falam por si. Imagino a confusão que se instalou nas outras dioceses. Tive conhecimento de um testemunho recolhido por telefone em que uma mãe disse que a filha tinha sido abusada por um padre, não especificou que tipo de crime se tratava, nem onde, nem quando. Nem lhe perguntaram…
Isso já são disfunções da estrutura que recebeu a queixa. Mas, repito, a CI não estava incumbida de fazer uma investigação e de dar sequência ao que lhe era apresentado, para fins sancionatórios.
Percebe como a CI, a partir de uma amostra de 512 alegadas vítimas, chega ao número estatístico de quase 5.000?
Quando ouvi pela primeira vez o número, achei impossível. Mas depois, como conheço pessoas que pertencem à CI que são sérias, pensei que eles não podiam ter deixado de usar métodos científicos para fazer essa extrapolação, que é permitida pela ciência sociológica em geral. Há uma constatação a que se chegou, segundo creio, segundo a qual, por cada vítima que fala, há 10 que se calam. Portanto, concedo o benefício da dúvida e não tenho conhecimentos para pensar que aquela projeção é um disparate. E é isso que também temos visto nas comissões diocesanas. Temos testemunhos que se calaram durante 30 anos. Falaram agora pela primeira vez. O que significa que é muito provável que haja pessoas que até hoje se calaram e não irão falar nunca. Claro que, com estes casos, que conduzem claramente ao arquivamento, sobretudo quando não se conhece a identidade da vítima, dificultam-se as investigações.
Não haverá comissões a mais e isso pode confundir as vítimas?
O Papa Francisco fez uma Carta Apostólica de motu próprio, ou seja, que é dele apenas, chamada ‘Vós Sois a Luz do Mundo’. Aí ele determinou que as dioceses tivessem Comissões Diocesanas. O que significava que a luta contra os abusos tinha de estar também nas Comissões Diocesanas, não poderia haver uma atuação apenas externa à Igreja. Depois, esta, e bem, determinou que fosse criada a Comissão Independente, que recomendou que se criasse outra, que centralizasse as denúncias, para as fazer repercutir depois nas CD para que estas daí retirassem as consequências. Mas esta espécie de longa manus executiva não teria autonomia. E isso não foi seguido, nem podia ser. Porque as CD não podem deixar de fazer o seu trabalho com autonomia, porque é uma determinação do Vaticano. Depois do trabalho concluído, a CI, uma vez que tinha ouvido testemunhos que afirmavam que nunca tinham denunciado por medo e desconfiança em relação à Igreja, recomendou à CEP que criasse uma nova comissão.
Achou isso normal?
Quando ouvi falar na nova comissão, o grupo VITA, admito que fiquei um bocadinho espantado. Parecia que era a própria igreja que estava, no fundo, a dizer «têm toda a razão, não confiem nas CD!». Foi a minha primeira reação, mas mudei rapidamente de posição. Imagino que a CI deve ter alertado a CEP para o facto de haver gente que não confiava na Igreja. Depois, porque a reação da CEP na conferência de imprensa foi muito criticada (porque, do meu ponto de vista, não foi suficientemente preparada), e pessoas houve que ficaram muito mal impressionadas. Independentemente de tudo isso, e mesmo que este mecanismo resulte em prejuízo da imagem das CD, a preocupação fundamental tem de ser com as vítimas, estas é que estão em primeiro lugar, e devemos fazer o possível para que não sintam problemas em denunciar. Então, criou-se o grupo VITA que veio, de alguma maneira, ocupar algum espaço em termos de acolhimentos e de acompanhamento. Basta dizer que, em cinco dias, recebeu 16 denúncias.
Quer dizer com isso que a VITA veio ocupar o espaço das CD?
As CD até fevereiro de 2023 receberam 34 denúncias. Neste momento, já pedi a atualização dos dados, ainda não os tenho, mas suspeito que não ultrapassarão os 40.
Porque aponta para esse número se ainda não tem os dados todos?
Se o grupo VITA, em cinco dias, recebeu 16 denúncias, quer dizer que vieram complementar, em termos de participações e acolhimento, as CD. No fundo estes resultados deram razão a quem entendeu que era importante criar este novo grupo.
Rute Agulhas, a psicóloga que lidera a nova comissão, apareceu em todas as televisões, em toda a comunicação social. As CD não têm essa cobertura noticiosa.
Claro que isso conta, mas não é só isso! Penso que tem de haver um trabalho complementar das Comissões. Até porque não têm o mesmo papel: o grupo VITA, se receber uma denúncia, tem de alertar o MP, mas não faz processos canónicos, enquanto as CD fazem ambas as coisas. E é isto que interessa à Igreja, por causa da questão da prevenção e eventual afastamento dos clérigos.
Acha, como por aí se diz, que Portugal é um país de pedófilos?
Não, de forma alguma. Em primeiro lugar porque essa palavra é utilizada muitas vezes a despropósito. A pedofilia é uma parafilia, ou seja, uma orientação sexual desviada que vitimiza apenas pré-púberes ou púberes (até aos 12, 13 anos). Para adolescentes e jovens, a designação não é essa. Há uma designação própria, em psiquiatria, para abusos nessas idades. Mas quando se referem à Igreja fala-se sempre de pedofilia. Ora, o que tenho verificado é que podem existir crimes de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja e pode haver ocultamento (e deixa de ser um problema na Igreja, para sê-lo também da Igreja, como já alguém disse). Mas a maior parte dos casos julgo serem hoje situações que envolvem adolescentes e jovens.
Acha que os casos na Igreja são um fenómeno à parte ou apenas um reflexo do que se passa na sociedade em geral?
Não tenho elementos que me levem a afirmar uma coisa ou outra. Uma coisa sabemos: 80% dos abusos de menores são cometidos no seio das famílias e os potenciais agressores são, na maioria, geralmente homens. Estima-se que se se tiver em conta a população portuguesa, em abstrato, os potenciais agressores contar-se-ão por milhões. O número de clérigos é evidentemente muito inferior e daí que saber se, em proporção, são mais ou menos do que fora da Igreja, é questão para que não tenho resposta. Tenho é para mim como certo que a esmagadora maioria dos clérigos não são abusadores.
Comparando com outros países ocidentais, cujas igrejas tiveram o mesmo problema, acha que há semelhanças ou em Portugal é menos grave?
Não tenho a dimensão do caso em França. Sei que as projeções dos números foram criticadas, mas digo o que já disse em relação a nós: não sou sociólogo, por isso não vou dizer que tudo isso foi uma aldrabice. Claro que na Irlanda foi um horror, na Austrália e Nova Zelândia também houve problemas graves, nos EUA e Chile também… Portanto, onde há igreja católica, deve haver estes problemas. Só de Itália é que não vejo chegarem grandes notícias.
Porque nunca fizeram o levantamento! (risos)
Pronto, não fui eu que disse. (risos).
Se ainda fosse PGR, e um cidadão lhe denunciasse que o SIS lhe batera à porta de casa e lhe levara o computador, o seu instrumento de trabalho, instaurava um inquérito?
Se houvesse, crime abria. Qualquer comportamento que esteja previsto na lei como crime obriga o MP a abrir um inquérito.
Tem acompanhado o caso Galamba?
Não, não. O mínimo.
(risos) Mas sabe que o SIS foi chamado pela chefe de gabinete do ministro João Galamba depois de um pretenso roubo de um computador e foi buscá-lo a casa do suposto ladrão. Não sem antes bater gentilmente à porta…
Não estou na Comissão Parlamentar a responder a perguntas dos senhores deputados. Conhecem aquela história: se a Rainha de Inglaterra tivesse quatro rodas, era uma camioneta! (risos)
Mas alguma vez teve notícia de uma coisa destas?
Estas coisas não são uma questão de opiniões. Eu sigo a lei. Se há crime, é para a PJ, mas antes vai para o MP. A única coisa que eu sei em relação ao SIS é que não tem funções policiais. Antes do 25 de Abril, havia uma polícia política chamada PIDE, mais tarde passou a ser designada por DGS, que além das informações também tinha funções policiais e instaurava processos-crime. Depois da Revolução, e para acabar com isso, o Serviço de Informações da República deixou de ter funções policiais.
Quando olha para processos como a Operação Marquês, não tem uma sensação de déjà-vu?
Acho que não há muitos processos que tenham demorado tanto tempo. Às vezes há, mas não envolvem gente tão importante e não são conhecidos.
Já vimos que apreendeu a rabejar os jornalistas… (risos) Falamos deste caso porque fazem lembrar um que foi seu, o Setúbal Connection, no final dos anos 80, que envolvia um magistrado e polícias, mas acabou por prescrever…
Quando isso acontece, é de lamentar. Aliás, o procurador da Operação Marquês, Rosário Teixeira, foi meu aluno e é um excelente magistrado. Mas, como sabe, não posso falar disso.
Não pode já dizer o que lhe apetece, estando reformado?
Estou jubilado e não reformado. Como jubilado, continuo a obedecer ao estatuto de magistrado, nos direitos e deveres, e estou proibido de comentar processos concretos!
E, além de estar sujeito à ‘lei da rolha’, o que tem feito na magistratura?
Por exemplo, já fui chamado para instruir um processo disciplinar a uma colega minha. Os processos disciplinares dos juízes têm de ser feitos sempre por juízes desembargadores, se os arguidos forem magistrados de tribunais da primeira instância, ou por um juiz conselheiro, se o arguido for juiz desembargador. Se for do Supremo Tribunal de Justiça, como era o caso, o processo tem de ser conduzido por um conselheiro mais velho. Pediram-me e eu achei que devia dar o meu contributo.
Não lhe custou tanto como acusar um procurador da República, como aconteceu no Setúbal Connection?
Não tem nada a ver. Este caso era uma infração mínima, o outro não! As reações na magistratura foram complicadas! Chegaram a dizer-me que era o primeiro magistrado acusado em Portugal.
E era uma crítica?
Não sei se era crítica ou se apenas queriam dizer-me que eu era um atrevido… Mas há duas coisas que são lamentáveis e que não podem acontecer: a judicialização da política e a politização do judiciário, ou seja, dos tribunais. Não sei se alguma destas coisas aconteceu.
Por mais voltas que o mundo e o país deem, a Justiça parece estar sempre na mesma. Os problemas, como as manobras dilatórias, estão identificados. Tem de haver limites, não?
É óbvio que há aqui uma responsabilidade importante do legislador. Em matéria penal, é o Parlamento que deve fazer as leis que ajudem a tornar os processos mais céleres para facilitar o andamento da justiça. Isso é evidente. Ainda há pouco tempo, a propósito da operação Tutti Frutti, a PGR veio dizer que tinha falta de meios e isso é um facto. As perícias estão escandalosamente atrasadas, os funcionários são mais que menos e, portanto, a ‘máquina’ da justiça tem dificuldade em funcionar.
Mas, subitamente, a PGR arranjou uma equipa especial com cinco procuradores e cinco inspetores da PJ. Tudo isto motivado por uma violação do segredo de justiça por uma estação de televisão que trouxe a público escutas entre os intervenientes. O processo estava parado há seis anos e, de repente, vai começar a andar. Até se pode considerar que as violações do segredo de justiça agilizam os processos, não acha?
Não posso aceitar isso. Porque isso é uma hipocrisia. Os fins não justificam os meios. No tempo da Casa Pia, chegou uma altura em que as violações do segredo de justiça eram escandalosas. Para atalhar o problema, também arranjei um procurador que, durante um ano, não fez mais nada do que ouvir jornalistas. Até ali, o que a lei dizia era que só aquele que tivesse contacto com o processo e divulgasse o seu conteúdo incorria no crime de violação do segredo de justiça. Os advogados de defesa diziam, e com razão, que não bastava estar na lei que o jornalista só infringia se divulgasse o conteúdo do processo, tinha também de contactar com ele. E bastou acrescentar à lei as alternativas: e/ou.
No processo Casa Pia, não o pouparam. Passaram 20 anos e ainda há quem considere que a maioria das pessoas envolvidas estava inocente.
Acho que as pessoas não gostaram daquilo que se fez na Casa Pia. Mas eu achei, com toda a pouca-vergonha que lá se passou, que as vítimas e a Catalina Pestana, para não falar noutros, mereceram o que eu passei. Uma vez, eu disse ao procurador do processo, que ele era obstinado. E sabem o que ele me respondeu?
Não, mas gostaríamos de saber.
Que, se não fosse assim, aquele processo acabava na gaveta como dois outros que lá tinham passado.
Estava-se a referir a que processos?
Tinha havido dois processos envolvendo a Casa Pia e até tinham denunciados comuns. Um ocorrera nos anos 80, foi arquivado e depois, ao abrigo de uma portaria, queimado, e o outro foi durante o antigo regime.
Foram tempos difíceis?
Poderia ter sido politicamente correto e agradar a mais pessoas. Acabei por não agradar mas acho que fiz tudo bem. Depois fui para o supremo onde tive vários processos de abusos sexuais e ai percebi que houve um antes e um depois Casa Pia.
Tornou-se mais fácil para as vítimas denunciarem?
Sem dúvida! Mas também houve perversões. Situações, por exemplo, de divórcio em que há queixas de abuso sexuais em relação aos filhos comuns e que não têm qualquer fundamento. É preciso ter cuidado e separar o trigo do joio.
Foi o atual primeiro-ministro, António Costa, quem o convidou para PGR?
Sim. Era na altura o ministro da Justiça. Mas acho que o Presidente da República, Jorge Sampaio, gostava da ideia.
Deve ter-se arrependido bastante.
Admito que sim. Houve tantas reações negativas em relação à minha pessoa.
Não tem saudades da sua colega Joana Marques Vidal na PGR?
Os senhores jornalistas queriam que eu dissesse que Joana Marques Vidal deveria ter sido reconduzida! Ah, isso dava cá uma caxa! (risos)
Mas tem saudades dela ou não?
Saudades? Acho que ela fez um bom lugar, pronto. É uma pessoa muito competente e eu, aliás, já tinha dado por isso antes, quando ela esteve nos Açores.
E acha que faz falta?
Não digo que faz falta porque isso seria uma crítica à PGR atual. (risos)
Imagina, num futuro próximo, acórdãos feitos por ChatGPT?
Eu detesto inteligência artificial. Não sei bem o que é, mas, no fundo, a inteligência e as emoções humanas serão substituídas pela máquina. Os humanos podem aspirar a isso, mas resta saber se vão controlar esse processo. A inteligência artificial não entra em determinados domínios, como por exemplo nos sentimentos, e isso faz muita falta nas relações sociais.
Depois de jubilado o que tem feito?
A primeira coisa que fiz foi dar quase todos os meus livros de Direito. Noventa foram para a biblioteca do Centro de Estudos Judiciários, mesmo os livros mais antigos. E foram muito úteis porque os enviaram para as ex-colónias que mantêm códigos antigos. Dois anos depois, veio a pandemia, tive que ficar fechado em casa – o que era demais para mim – e comecei a escrever um livro sobre a noção de arte. A ideia surgiu na sequência da apresentação de uma curadora importante, cuja primeira grande obra de arte contemporânea que apresentou foi uma galeria com duas entradas. Uma pessoa atravessava a sala sem poder pisar os ovos estavam no chão…
Ovos frescos?
Sim. E ela, em êxtase, contava que um senhor, que fora numa cadeira de rodas, conseguira passar sem partir um único ovo (risos). Eu saí e fiquei a pensar qual a noção de arte daquela senhora. Ou seja, qual é a fronteira entre a arte e a não arte. E deitei mãos à obra.Depois apareceu o médico António Sarmento, meu amigo, que insistiu bastante para que eu aceitasse o lugar de membro do conselho-geral da Universidade do Porto. Ainda pensei ‘o que é que eu tenho a ver com isso’, mas aceitei. A Dra. Joana Marques Vidal também faz parte do conselho-geral da Universidade do Minho. Eu vou lá ciclicamente. Agora, estou a trabalhar na revisão dos estatutos da Universidade do Porto
Ou seja, é uma reforma adiada. As CD também o devem ocupar muito tempo, supomos.
Achei que devia aceitar. Em primeiro lugar, porque sou católico, em segundo porque gostaria que a Igreja se renovasse, em terceiro porque há muitas dificuldades para se conseguir isso e a hierarquia da Igreja continua a ter um papel importantíssimo. Mas quem sou eu para dizer isto! Vou dando o contributo que posso dar porque tenho fé.
Com que Papa se identifica mais: Francisco ou Bento XVI?
Querem uma opinião sobre os dois. Ao cardeal Ratzinger, em termos teológicos, dou-lhe 20 valores. Conheço a sua obra, li coisas dele de que gostei imenso e acho que era uma cabeça privilegiada. Mas quando o Papa Bento XVI entrou na máquina do Vaticano, defrontou-se com dificuldades que não tinha tido até aí na sua vida. Admito que quisesse fazer coisas que não conseguiu, a dado passo desistiu e foi embora. Em relação ao cardeal Bergoglio, nada sei, porque não li nada dessa fase. Mas o Papa Francisco acho-o ótimo, é uma pessoa que está empenhada em renovar a Igreja, que precisa ciclicamente de quem a renove. Considero-o uma espécie de João XXIII do século XXI. É um Papa que vai de encontro à realidade e às necessidades do seu tempo. O pior que pode acontecer a um Papa é estar fechado no Vaticano e desconhecer a evolução do mundo. Respondendo à pergunta, como teólogo, prefiro o Ratzinguer; como Papa, prefiro Francisco.
Acha que há o risco de haver uma cisão à semelhança do que aconteceu com a igreja anglicana?
Não sei! A Igreja ciclicamente tem crises. A primeira grande crise deu-se com a Igreja do Oriente que se separou da do Ocidente e deu origem à Igreja ortodoxa. Depois, houve a história inconcebível dos dois Papas: um em Avignon, França, e outro em Roma. Também a Reforma protestante e Contrarreforma, que provocou efeitos muito negativos, nomeadamente, o uso da Inquisição. No século XIX, o cientismo e o positivismo também abalaram muito a Igreja e, sobretudo, foram responsáveis por uma dessacralização do mundo e do papel da Igreja. Aqui em Portugal manteve-se sempre respeitinho aos padres. A nossa Igreja porém também mudou.
E agora?
A Igreja claro que tem dificuldades. Estruturais, desde logo. Um Papa que queira renovar a Cúria encontra resistências, conservadoras ou progressistas. Penso que as dificuldades maiores são de ordem intelectual ou teológica, quanto aos campos de missão que deve escolher ou privilegiar. Porque há posições que têm a ver com a teologia, e com a doutrina em geral, que mexem com questões fraturantes e não só. Exemplo, a forma como a Igreja trata o acolhimento dos homossexuais ou a situação dos católicos recasados.
E a ordenação de mulheres.
Mais do que a ordenação de mulheres, trata-se do papel que a mulher ainda não ocupa na Igreja porque esta continua a ser uma estrutura basicamente patriarcal.
Concorda com a ordenação das mulheres?
Não digo que sejam ordenadas já amanhã, mas não encontro uma razão básica que impeça isso. Pode haver situações conjunturais que levem a consequências muito nefastas para a Igreja. Não sei qual seria a reação das pessoas, numa aldeia recôndita, se lhes aparecesse uma mulher padre. Não fugiriam todas da igreja?
E os padres casados?
Essa também é uma das problemáticas. Há padres casados que já o eram quando se ordenaram. Mas isso mexe com algo mais complicado que é a questão da castidade. Aí, a Igreja tem de ter cuidado.
Mas sabemos que existem padres que até têm filhos.
Uma coisa é um padre manter um relacionamento sexual, algo que se encobre, de que não se fala, outra casar, evidentemente pela Igreja …
Isso não é uma hipocrisia?
Por isso mesmo é que é um problema que a Igreja tem de enfrentar.
E um homem casado que queira ser clérigo?
Não me repugna nada que, num casal, o elemento masculino vá para padre e continue casado.
Nada do que viveu recentemente abala a sua fé?
Nada, pelo contrário! E para já é preciso que eu diga o que é a minha fé. Se eu puder fazer alguma coisa para que os católicos, a Igreja e Portugal fiquem beneficiados com o meu pequeníssimo contributo, assim farei. Acho que os católicos e os leigos se devem mobilizar para que a Igreja não seja sempre acusada de clericalismo. Porque se há um defeito na Igreja, ele também é potenciado pelo facto de os leigos não agirem.
Como descreveria a sua fé.
Ter fé é querer que Deus exista, depois acreditar que ele existe e, finalmente, atuar no pressuposto de que ele existe. É evidente que querer que Deus exista não significa por si só que ele exista. Ter sede não significa que se tem um copo de água ao lado para beber. Mas nunca ninguém teria sede se não houvesse água à superfície da terra.
E porque necessita da sua existência? Tem medo da morte?
Porque, da maneira como sou feito, habituei-me a dar um sentido àquilo que faço. Podemos pensar muito, mais ou menos mas importa dar um sentido ao que se faz. Podemos pensar muito ou pouco, mas não podemos deixar de atuar. Ortega Y Gasset dizia «Vivir es hacer». Ou seja, como não posso deixar de fazer coisas, tenho de lhes dar um sentido. E porque é que acho que Deus existe?
Para o salvar das suas aflições?
Não, porque isso é o problema da bengala, não é? Já alguém me disse que eu precisava de uma bengala. Claro que preciso, respondi, mas tu és tão manco como eu e achas que não precisas. (risos)
E como é que se chega a Deus, uma vez que não se pode ver, nem tocar?
Chegar a Deus não é resultado de um raciocínio ou de uma filosofia, não é produto da razão. O deus dos filósofos e dos sábios para mim não chega. A revelação é que me satisfaz. Acredito que Deus existe e que, para se aproximar das pessoas, seduzir as pessoas, precisava de alguém que dissesse aquilo que elas precisam de saber, mas na linguagem delas. Então, apareceu um senhor chamado Jesus que se fez homem em tudo menos no pecado (segundo diz a Igreja e eu aceito). E que nos veio dizer em linguagem humana aquilo que Deus pretende que seja a humanidade.
E o que pretende Deus da humanidade?
Amor: «Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei».