‘Enquanto a cabeça funcionar vou continuar a falar’

Não abdica dos seus direitos cívicos e garante que vai intervir enquanto a cabeça funcionar. Em entrevista ao Nascer do SOL, Cavaco faz uma viagem pelos segredos da arte de bem governar. O mais difícil é fazer uma boa remodelação.

Na apresentação disse que este livro acabou de ser escrito em janeiro e que, portanto, não teve em linha de conta os acontecimentos políticos dos últimos meses. Significa isto que já sentia a necessidade de partilhar a sua experiência como primeiro-ministro, apesar de ainda não se terem dado os acontecimentos um pouco mais agitados dos últimos meses de governação?

Este livro sobre o primeiro-ministro e a arte de governar estava na minha cabeça há quase 20 anos. Mas houve primeiro que prestar contas aos portugueses do exercício das minhas funções de primeiro-ministro e depois das funções de Presidente da República. Chegou agora a altura de publicar este livro. Resolvi no ano de 2022 concentrar-me e escrever este livro por uma razão fundamental: verificava que em Portugal, acima de tudo, se analisava aquilo que um primeiro-ministro faz, aquilo que é a análise positiva. Eu noto mesmo que neste momento há algumas pessoas que falam sobre o meu livro que não percebem bem a distinção entre uma análise positiva e normativa. A análise normativa é sobre aquilo que deve ser feito em vários ramos da ciência. Aquilo que é publicado com mais frequência é o que um primeiro-ministro faz, mas há pouca investigação em Portugal, ou pouca reflexão, sobre aquilo que um primeiro-ministro deve fazer.


‘Eu não fiz tudo perfeito, como é óbvio, e cometi alguns erros, como disse, fui aprendendo’

Mas nesse dever ser, revê-se na sua atuação como primeiro-ministro e compara com os seus sucessores?

Não, não é verdade. Eu não fiz tudo perfeito, como é óbvio, e com certeza que cometi alguns erros, porque, como disse, fui aprendendo. E pode-se dizer que este livro é uma reflexão que combina não só essa experiência, mas também a observação dos seis primeiros-ministros que se seguiram. Principalmente, daqueles com quem eu trabalhei como Presidente da República. Porque das pessoas vivas, eu sou um caso único, porque me sentei na mesa como primeiro-ministro, tendo à minha frente dois Presidentes da República: António Ramalho Eanes e Mário Soares. E sentei-me na cadeira de Presidente da República tendo à minha frente três primeiros-ministros:  José Sócrates, Pedro Passos Coelho e depois António Costa. Portanto, eu fui observando com todo o cuidado. E devo dizer que também fui observando, a partir de certo momento, os comportamentos de primeiros-ministros europeus. Este (livro) é uma reflexão até um pouco académica de alguém que não é da área da Ciência Política, mas que fez um esforço de leitura daquilo que se viveu em Portugal no domínio do primeiro-ministro, no âmbito da ciência política, e o mesmo na literatura anglo-saxónica nesse segmento. 

Neste livro diz que o sucesso do governo depende do progresso a médio e longo prazo e não de resultados eleitorais e da preservação do poder. São conceitos diferentes, ou totalmente diferentes?

Se nós dizemos que o objetivo de um governo e do seu primeiro-ministro é preservar o poder, é ganhar eleições, então, aquilo que resulta é diferente daquilo que resulta se nós pensarmos que o objetivo do governo e do primeiro-ministro é conseguir para o país progresso económico, social, cultural, ambiental, numa perspetiva de médio e longo prazo, tendo em conta as gerações futuras. E foi isso que eu fiz.


‘Quem só quer ganhar eleicões falha o objetivo’

Mas para ganhar eleições não são as duas coisas necessárias?

Não, um primeiro-ministro que tente sempre ganhar as eleições, muitas vezes acaba por falhar o seu objetivo.

Deixe-me fazer a pergunta de outra maneira: quando era primeiro-ministro, alguma vez achou que por tomar determinadas decisões poderia perder eleições e estava disposto a correr esse risco?

Sim, sim. Eu fiz muitas reformas, muito difíceis e impopulares. Imagina a introdução das propinas nos estudantes universitários?


‘A autoridade e a credibilidade são fundamentais para fazer mudanças’

E na altura achou que poderia perder as eleições por causa disso?

Bem, eu pensava que teria de ter a habilidade política suficiente para explicar aos portugueses a necessidade de fazer as reformas estruturais que fiz, muito difíceis. Por exemplo, a reforma substancial e muito importante que foi a reforma fiscal. Apesar de a oposição toda dizer que os portugueses iam pagar mais impostos, mas eu tinha de ter a habilidade de explicar aos portugueses que era fundamental para o futuro do país. E deixei muitas vezes de lado esse objetivo. Não quer dizer que não pensasse em eleições, custa, talvez, convencer os políticos de hoje, mas, na altura, procurei convencer a população de que o que fazia, apesar de ser talvez impopular no curto prazo, era fundamental para o futuro do nosso país. E foi isso que eu fiz.

Acha indispensável que um primeiro-ministro tenha nos seus objetivos, quando começa em funções no governo, promover reformas? 

Eu acho que é fundamental um primeiro-ministro ter a ambição da mudança. Reformas estruturais é algo que se deve fazer continuamente. Não se termina num momento A ou B, deve estar sempre presente. Deve estar sempre na cabeça de um primeiro-ministro, porque, como primeiro-ministro, devo procurar integrar a atuação do curto prazo, numa perspetiva de médio e longo prazo. Isto é, não pode ignorar os interesses das gerações futuras. Há matérias muito importantes, deixar um stock de capital humano elevado para a próxima geração. Combater aquilo que se passa neste momento, que é a emigração dos jovens licenciados de talento e de espírito inovador que vão para o estrangeiro, ganhar três vezes mais do que aquilo que ganham em Portugal. Reforçar o capital físico produtivo, o que significa investimentos a fazer no presente, para que no futuro a produtividade seja maior. Eu escrevi alguns artigos que aí estão publicados que criticam o atual Governo, porque são todos artigos com a mesma orientação, que é tentar inverter uma situação de Portugal como país de salários mínimos, em que o salário mediano e o salário médio estão próximos do salário mínimo. O empobrecimento relativo em relação aos outros países.


‘Reformas estruturais é algo que se deve fazer continuamente’

Isso tem a ver com o senhor dizer no livro que nos falta o desenvolvimento?

Se nós compararmos com uma Irlanda ou com outros países, nós ficamos muito abaixo. Portanto, nós falhámos um pouco. Conseguimos alguma coisa, mas não aquilo que seria normal conseguir, principalmente dentro da União Europeia. E a consequência qual é? Aquilo que eu já disse, é salários mínimos, é o empobrecimento, são serviços públicos de pouca qualidade. E eu acho que se deve prestar atenção às reformas. Não apenas na parte económica, mas na administração pública, e facilitar a vida das empresas e dos cidadãos na área da justiça. Quando eu falo com o investidor estrangeiro, as duas críticas que fazem mais fortemente a Portugal é uma incerteza jurídica, a outra é a imprevisibilidade fiscal. Não haverá solução para o problema da habitação em Portugal se não for dada confiança aos investidores privados. É fundamental que haja uma oferta pública de habitação, mas sem uma oferta vinda do setor privado, nós, daqui a quatro, cinco anos, estaremos a discutir da mesma forma que discutimos hoje a falta de habitação.

Aumentar o consumo privado, aquilo que as pessoas consomem no dia a dia é um objetivo bonito, mas, se não existir investimento produtivo exterior, se não existirem exportações – e eu espero bem que elas consigam continuar a evoluir positivamente por forma a que em 2030 sejam à volta de 60% do produto –, esse aumento do consumo privado é uma ilusão, porque não é possível aguentar uma economia que cresce a pensar só no consumo privado. Por outro lado, não se pense que se resolvem os problemas de Portugal no domínio dos salários através do aumento da economia portuguesa – do seu crescimento –, só à custa do turismo. O turismo é muito importante para Portugal, mas, não tenho a mínima ilusão, sem o desenvolvimento de investimentos produtivos e inovadores na área industrial não será possível Portugal aumentar a sua competitividade. Nós sabemos – os dados são objetivos – que a produtividade nas grandes empresas é muito maior do que nas pequenas empresas. Portugal é um país de pequenas e pequeníssimas empresas, por isso eu tenho defendido, há muito tempo, que o Governo devia aprovar isenção fiscal para facilitar a fusão de empresas, a aquisição de empresas. Para ganharmos dimensão para o nosso aparelho produtivo, porque sem isso será difícil que Portugal aumente significativamente a produtividade, que é abaixo da média europeia.

Diz que a remodelação é a tarefa mais difícil para um primeiro-ministro…
Eu acho que sim…

Porquê?               

Acho que é um momento de grande solidão para um primeiro-ministro. Ele sozinho, a pensar. Na sua casa ou no gabinete? Devo ou não devo fazer uma remodelação? Que muitas vezes não é porque A, B ou C esteja a atuar muito mal, mas é preciso refrescar um pouco o Governo. É preciso dar um novo impulso, talvez uma imagem de mudança, reforçar um bocadinho. Muitas vezes (a remodelação) não é feita porque o primeiro-ministro está convencido que o ministro A ou B não está a cumprir o programa do Governo. Portanto, ele (primeiro-ministro) está numa grande solidão. Precisa de um grande sangue-frio e afastar considerações de ordem pessoal. Quais são os passos de uma remodelação? O primeiro-ministro tem que decidir que ministros quer substituir. Em segundo lugar, tem de pensar que ministros quer convidar. Dirigir os convites e, depois, falar com aqueles que vão ser substituídos. É uma conversa que não é fácil. Depois, informar o senhor Presidente da República e depois fazer a divulgação pública. O ideal é apanhar a imprensa, a comunicação social e o povo e o país político de surpresa. Eu consegui duas vezes, uma em 1990, substituindo de uma assentada seis ministros, e outra quando faltavam vinte e poucos meses para terminar funções, em 1992, e foram quatro ministros. 


‘O ideal é apanhar a imprensa de surpresa’

De facto, nessa altura foi possível – hoje não o faria talvez – apanhar a comunicação social, o país político de surpresa. Hoje, reconheço, seria muito difícil, estou convencido de que só por milagre apanharia a comunicação social de surpresa.

Diz também que para fazer uma remodelação é preciso que ao primeiro-ministro seja reconhecida autoridade, credibilidade e visão estratégica?

Quando se faz uma remodelação depois de dois ou três anos de Governo, o leque de escolha é mais limitado. E quando se passam já seis anos, ou sete anos, ou oito anos ainda passa a ser mais difícil. Portanto, é preciso que um primeiro-ministro seja visto com credibilidade. Uma pessoa com visão estratégica que sabe enquadrar no curto prazo, uma perspetiva de médio e longo prazo, e que tem autoridade política e autoridade moral. A autoridade é fundamental. Conquista-se no Conselho de Ministros, em que o primeiro-ministro tem de ser muito claro na imposição de duas regras fundamentais: uma é o respeito de todos pelas decisões tomadas no Conselho, as decisões são de todos e não do ministro A ou do B; outra é a confidencialidade.


‘A autoridade e a credibilidade são fundamentais para fazer mudanças’

Tem de ser muito claro que quem viole a confidencialidade e ponha em causa publicamente aquilo que foi decidido pelo Conselho de Ministros,  é um dever, um primeiro-ministro tem de ter a coragem de o demitir. A autoridade conquista-se todos os dias. Conquista-se no Conselho de Ministros, conquista-se nas reuniões com os ministros, conquista-se na palavra pública e nas atitudes para a populaçáo portuguesa, conquista-se no comportamento na Assembleia da República. A autoridade conquista-se regularmente, a legitimidade é diferente. O primeiro-ministro que ganha eleições tem legitimidade. Mas uma coisa é a legitimidade, outra coisa é a autoridade.

Pode ter-se autoridade e não se ter competência?

Sim, mas eu aqui parto da hipótese que o primeiro-ministro procura ter competência para exercer o seu cargo.  Ou melhor, eu faço uma reflexão sobre aquilo que eu devo fazer, mas não estou a analisar nem A, nem B, nem C. Eu não estou a analisar nenhum dos primeiros-ministros portugueses. Nem a mim próprio, nem aqueles que se seguiram. Agora, é muito difícil fazer uma remodelação com sucesso. Significa escolher pessoas capazes. Pessoas com duas qualidades: uma é a competência política e outra é a competência técnica indispensável para perceber dos assuntos do seu ministério.  Outra (qualidade) que eu considero fundamental é o bom senso. Eu acho que muitos problemas que têm surgido em Portugal com ministros resultam de falta de bom senso. Eu próprio escrevi alguns artigos que constam desse próprio livro, em que a dificuldade – aquilo  a que se chamou os casos e casinhos – resultou da falta de bom senso dos ministros.

E acha que um ministro deve ser demitido quando manifesta essa falta de bom senso?

Se um ministro manifesta constantemente falta de bom senso, tem atitudes mentirosas com frequência, não é leal com o primeiro-ministro, tem uma linguagem que reflete falta de boa educação, insultuosa para os adversários e para os jornalistas e para outros agentes, o primeiro-ministro, nessas condições, tem de esquecer todas as ligações pessoais, todo o bom relacionamento que tem ou que teve com esse ministro e tem de propor ao Presidente da República a sua exoneração.

A demissão é uma forma de o primeiro-ministro se descartar do que se fez de mal?

 A mudança de ministros pode ser por duas razões, repito, ou porque o ministro seja incompetente – é um caso claro de incompetência um ministro que invoca o Governo anterior seis meses depois de estar no poder. Sá Carneiro sublinhava claramente, e eu lembro-me muito bem: ao fim de seis meses, ninguém neste Governo pode estar a culpar o Governo anterior, deve sim, mostrar aquilo que já fez e aquilo que pensa fazer. E eu digo o mesmo. Passado um ano, o ministro que ainda invoca os Governos anteriores, então a sua incompetência é demasiado visível e óbvia. É um erro tremendo do primeiro-ministro não o pôr na rua. A outra razão para substituir um ministro é, como já disse a necessidade de refrescamento, de criar um novo impulso, um novo ciclo governativo. Todas estas razões devem ser ponderadas, para perceber em cada momento o que é melhor para o país. E essa é uma tarefa muito exigente do primeiro-ministro.

Convidou José Manuel Durão Barroso para apresentar o seu livro. Foi seu ministro, colaborou consigo durante muitos anos e, por aquilo que percebi quando se referiu a ele, considera que o país não dá o devido valor às funções que exerceu na Europa e não reconhece o papel que ele desempenhou. É isso? 

Eu acho que é, acima de tudo, uma questão de inveja. Existem alguns políticos em Portugal que, pelo facto do Dr. Durão Barroso ter sido escolhido – e ainda bem que aceitou o lugar, o mesmo acontece em qualquer outro país da Europa –, quando um seu político é convidado para presidente da Comissão Europeia, e depois, como Jaques Delors, foi reconduzido por dez anos –, não há um outro português que tenha ocupado funções executivas, que tenha alcançado tão grande influência na cena internacional. Mas em Portugal a inveja tem levado a que alguns políticos, eu sublinho, apenas alguns, tentem denegrir a imagem do Dr. Durão Barroso. E eu, como Presidente da República, posso testemunhar e escrever, como nos momentos difíceis para Portugal – passou-se no tempo da troika em que o resultado do Governo presidido pelo senhor engenheiro José Sócrates conduziu o país à bancarrota –, o Dr. Barroso, como presidente da Comissão, nos ajudou neste momento extremamente difícil e, portanto, custa-me às vezes a campanha que alguns – não sei onde é que está o seu conhecimento, ou a sua competência – fazem do trabalho que Durão Barroso fez como presidente da Comissão Europeia. 

https://www.youtube.com/watch?v=kaGd8DPgbFE

Durão Barroso disse, por seu lado, que lhe custa ver quem queira decretar a sua morte cívica em Portugal, de cada vez que o senhor fala ou escreve?

Eu escrevi um artigo, Fazer mais e melhor do que Cavaco Silva, que me permite precisamente dizer que estou retirado da vida política ativa. Isso é claro, mas não perdi os meus direitos cívicos. E é por isso que eu escrevo um artigo, às vezes, de três em três meses. Mas devo dizer que a minha atividade fundamental como leitor assíduo da imprensa internacional e também nacional, é como investigador. Mas não perdi os meus direitos cívicos, enquanto a cabeça funcionar bem, continuarei a ter intervenção cívica seletiva. 

Como é que interpreta as críticas que lhe fazem de cada vez que fala? Acha, também, que é inveja?

Há muitos que dizem que sim, mas eu, como sou muito seletivo naquilo que leio e como não conheço nada de redes sociais… na Presidência da República, os serviços de documentação que acompanham os (ex) Presidentes, enviam-me todos os dias para o meu computador informação sobre o que os jornais, as rádios, todos dizem. Mas, inicialmente, perguntaram-me o que é que eu queria receber; e eu disse: tudo, exceto aquilo em que falam de mim. Ficam desde já proibidos de mandarem para o meu computador artigos ou entrevistas que falem sobre mim. Isso não preciso. Por isso, não me preocupo. Sei aquilo que devo ler e aquilo que não devo ler da imprensa nacional.

Diz ter escrito este livro por estar preocupado com as gerações futuras. Porquê?

A minha preocupação neste momento é muito com as gerações futuras. Então, repito, três razões fundamentais, a tendência é para uma tendência negativa no que se refere ao capital físico, produtivo, inovador, que transmitimos para as gerações futuras. A tendência negativa para o capital humano que fica em Portugal, o envelhecimento da população. Muita preocupação em relação à baixíssima taxa de poupança em Portugal. Significa que essa geração futura vai herdar um país com dívida muito elevada. Preocupa-me muito se não ocorre uma inversão em matéria de reformas estruturais no nosso país. A minha sensação, neste momento, é que, enquanto há dez ou quinze anos se dizia ‘os nossos filhos vão viver melhor do que nós’, agora, o que se diz é que ‘os nossos filhos vão viver pior do que os pais’. É fundamental que um primeiro-ministro de Portugal seja o motor da mudança.