Num ano assoberbado por efemérides e as celebrações ocas de figuras que se foram deixando semear pelos vasos da cultura oficial, é importante resgatá-las dessa fanfarra e também daquele lirismo de voz trôpega e carcomida que serve a essas cerimónias. Vale a pena destacar a obra poética e ensaística de um dos nossos autores que travou um combate ferocíssimo contra a tentação de se cerrar a porta do futuro e fazer da tradição e da sabedoria acumulada letra morta ou, em alternativa, um mero culturalismo de salão.
Alguma coisa de revoltosamente significativa ainda deverá poder ser dita sobre poesia. E insistimos nessa urgência tomando muito a sério a noção de Wallace Stevens de que “a teoria da poesia é a vida da poesia”, mas que esta ideia vale mais a pena se puder ser invertida como num reflexo e, em simultâneo, nos vier dizer que “a teoria da poesia é a teoria da vida”. Até que seja dito algo de mais decisivo, vivemos aqui aquela idade que vai reunindo o seu ímpeto pela sombra, coleccionando impressões que permitem devolver-nos um reflexo estrondoso, onde a voracidade do rosto se exprime no modo como ele a si próprio se devora.
“Trata-se pois de se ter sentado procurando o olhar/ o olhar da noite que o olha. Longamente o fita –/ Entretanto o vidro sobrepunha imagens das madeiras claras/ dos focos eléctricos e do vaso imitado antigo, tosco e largo,/ réplica exausta da porcelana mais leve que o ar,/ às luzes que campânulas negras deitam/ sobre a água que escurece e obscura projecta o filme/ no céu fechado e húmido, poalha de chuva, jardim aéreo/ vertigem do mínimo: vestígio do fulgor”, eis um bom ensaio deste princípio através de uns versos em que Manuel Gusmão exerce esse impulso de uma solidão que para chegar ao fundo de si mesma arrasta o mundo, tanto mais mundo quanto pode caber e ser embalado num impulso rítmico que se equilibra nocturnamente.
E isto porque a nossa alma excedida de si mesma exige certos rituais encantatórios, sinais encadeados dessa viagem estelar e solitária que qualquer ser necessita para se sentir em casa. E a este respeito, a leitura de um livro de poemas acaba por ser um acto subtilmente instrutivo, por ser algo que se faz “numa espécie de distracção insistente, composta de excursões nocturnas ou silenciosas deambulações em torno de alguns versos mais obsessivos ou de alguns poemas que nos aparecem de súbito numa moldura de perfeição”, como nos diz Eduardo Prado Coelho numa das páginas do seu diário. E para não perdermos demasiado tempo a impulsionar-nos sobre presenças demasiado vagas, podemos recorrer a um dos mais discretos ainda que mais empenhados poetas do nosso tempo, um autor tão competente no exercício da sua profissão de espanto como Manuel Gusmão que vê como o tumultuoso jogo do mundo se “desprende da mesa do escritor/ cuja cabeça se divide/ pelas mãos e seus gestos. Enquanto/ o seu olhar cai em mil pedaços/ vivos.”
Longe do cultismo, esse frenesi da mente académica, não prescinde ainda assim da cumplicidade de certas companhias que permitem defender-se contra o cerco dessa indústria do esquecimento que hoje se vem ocupando cada vez mais do próprio campo artístico. E se essas manifestações correspondem cada vez mais a um regime de frivolidades auto-indulgentes, hoje a arte exigirá que o problema seja colocado ao nível da generosidade. Tudo menos este simulacro covarde de uma arte que está apenas investida enquanto reprodução das fantasias do ego.
Já temos poemas a mais, esculturas, pinturas ou músicas a mais, temos o suficiente para admirar por vários séculos a ligeireza dessa atitude serventuária, dos espíritos que procuram esquivar-se a tudo o que os possa comprometer. E, no entanto, num momento de absoluta descrença e em que a crise da imaginação, mesmo nos discursos que se propõem do lado da criação, mostra como o próprio futuro é uma noção que tem vindo a perder o seu elemento incitante. Daí também essa desistência em relação à busca de novas formas ou maneiras de se exprimir, talvez porque o fechar da porta do futuro nos deixa perante a noção de que o próprio saber reunido ao longo de tantos séculos não é mais do que letra morta.
Assim, damos por esse imaginário descido de todos os céus, quando os que se ocupam da vida artística se enredam em regimes de valorização financeira e de tráfico de favores e influências, mas não parece haver qualquer combate em que a imaginação testemunhe a favor de uma vontade de futuro.
Eduardo Lourenço lembrou em tempos que o apocalipse não nos vem do exterior, mas que somos nós quem o transporta. Ora, numa época que se deixa abater pelos efeitos da repetição, em que o indivíduo diante do mundo apenas afina a sua condição de impotência, e se deixa arrastar seja pelo que for como uma espécie de moribundo existencial, é importante lembrar que “uma grande parte da aventura moderna provém desse cansaço fabuloso”. E Lourenço frisa ainda que o criador moderno obedeceu menos a miríficas exigências de “arte pela arte” do que à necessidade semelhante à sede e à fome, de ter de mudar o aspecto do universo para poder descansar.
Entre nós, talvez nenhum poeta tenha sido capaz de um tão exultante diálogo, tão denso através do próprio corpo da tradição, das raízes à flor e ao fruto, na sua graça reprodutiva, introduzindo um novo alcance, um outro olhar, como o foi fazendo Manuel Gusmão. E isto rejeitando esses modos de se inscrever de acordo com uma dada frequência cultural, os esquemas de intertextualidade que têm tanto de postiço, e que surgem em linha com esse efeito de cloroformização da vida escrita, das palavras e dos gestos que nela se fazem.
Pelo contrário, Manuel Gusmão oferece-nos um ideal de desmesura, e ao invés de ficar intimamente retraído, mostra-se capaz dessa desenvoltura quase indecente que se espera da poesia. “Julgas nocturno saber de noite que isso é o que te prende à repetição de ti em que te perdes;/ quando o que quererias seria talvez dissolver-te/ água do mundo/ Habitando a fenda, a fracção ou a fractura do tempo/ voltas ao princípio; um olhar não vale o outro;/ nem simetria há. E de facto não se enfrentam./ Só se encontram lá/ onde um terceiro olhar os olha./ Perguntas: quem é o mundo?/ será que o mundo nos vê?/ nos vê ali? Ou ninguém?/ Pessanha traduziu Ou Mun para um não lugar/ uma concha acústica onde vibra o mundo limiar:/ a água do luar: pedra, uma espécie de primavera/ ou um outono de tinta da china./ Ela então disse: estava ali um anjo –/ o terceiro incluído – e não nos viu, ou –/ mas eu sei que lhe tocaste/ porque a tua mão atravessou a minha/ e isso era a noite olhar-nos aos três.”
Assim, o que aqui está em causa é esse “meio” que a literatura usa para nos conduzir a algo que, no interior das palavras só pode ser o exterior da literatura, e que reforça a noção de que a literatura para ser pregnante, e afirmar o seu poder de mudar o aspecto do universo, ainda que o faça apenas ao nível da percepção, precisa de afirmar-se como um lugar de passagem, e não um enredo labiríntico onde qualquer um entra para fazer funcionar essa profecia desgastante de uma existência sem saída.
Eduardo Prado Coelho recordava a este propósito a insistência de Deleuze em que todo o verdadeiro escritor ao escrever tem como objectivo tornar-se um não-escritor, e acrescentava que nada há de mais patético ou pungente que um escritor que pretende apenas ser escritor. E esta é cada vez mais a condição dos poetas, que acatam todas as orientações e representam o seu papel numa fastidiosa encenação do que se supõe que sejam os vícios mais comuns dessa prática. É, portanto, um exercício assumido nos seus elementos de aparência, e em vez de estarem comprometidos com uma necessidade de submeter a compreensão do real a uma outra escala, fazer a realidade atravessar uma gramática instável e que produza variações inquietantes, vemos como tudo o que os poetas pretendem é ver-se reconhecidos enquanto tal.
Há uma imagem perfeita para isto que podemos recolher no livro de Gusmão “Migrações do fogo”, quando o poeta nos fala de uma “música num espelho longe”. Atente-se na força de diagnóstico deste quadro: “O espelho está lá mas ninguém lá está/ É uma cena deserta. O piano e a estante de música/ estão vazios; são contornos da sombra/ Do lado direito de quem olha daqui, há/ uma ampla porta-janela que dava para/ uma varanda que daria para uma selva imaginada.// A música que ouves não vem desta sala/ Nasce e vem do maciço de árvores escuras/ que brilham mais no escuro da noite ultramarina./ Vem do mar que está depois da selva que/ está a seguir às árvores de um parque/ que é uma memória de pedra que já começou a ruir.” E um pouco depois vem essa espécie de retrato dilacerante da condição geral dos que se arrogam desses títulos enfáticos mas que, por outro lado, cada vez menos, significam uma relação desafiadora com o que já se sabe e se vai repetindo até atingir a plena difusão do lugar-comum. “Eram já extremos conspiradores sem conspiração,/ de si mesmos exilados, perdida a juventude,/ perdidos dessa selva em que teriam sido feras/ e fora já a sua própria memória. A maturidade/ apodreceu-os como uma floresta que se desfaz/ na água nostálgica do desejo. A música// essa música num espelho longe foi o que sobrou/ fala de um crime passional em que ninguém afinal/ morreu”.
É claramente esta a condição da poesia no nosso tempo, tendo-se perdido de vista até um elemento anterior, um efeito decisivo do próprio processo essencial da escrita enquanto “meio” para nos devolver ao exterior, na forma como “ela acrescenta uma diferença que multiplica e intensifica os nossos aparelhos de percepção e reconfiguração do mundo” (Gusmão). Pois se a escrita tem algum poder é como um processo através do qual, no interior de nós próprios, se torna possível ir afirmando certas coisas, e, mesmo contra o temperamento cínico de uma época, extrair um monumento positivo, luminoso e irradiante, essa vida que se escreve, e alcança um teor luminoso enquanto tal, musical e irradiante como só a escrita consegue, “na medida em que a escrita incorpora e dissolve no seu trabalho obstinado a erosão da dúvida, e neste movimento inventa a sua própria soberania, que é a da felicidade da literatura” (Eduardo Prado Coelho). E isto faz-nos ver como a escrita implica antes de mais um uso produtivo do cansaço, e tantas vezes uma reviravolta sobre esses momentos de pura astenia.
Se o peso do mundo deve ser calculado a partir desse efeito de impotência que em nós gera, Eduardo Lourenço vincava que não podemos conhecer nem um nem outra sem o combate que os associa. Este pensador que, por estes dias, e a propósito do seu centenário, se vê uma vez mais no centro de celebrações tão efusivas quanto redundantes e inócuas, assinalava a importância de franquear a porta do futuro, e como deve ser objectivo de qualquer criador “passar da impotência formal fundamente sentida à suprema liberdade de se dar o mundo por alusão, transfigurar o espaço como Destino inflexível em mar múltiplo e ilimitado, ao mesmo tempo espaço real e de sonho, elemento indestrutível e familiar da viagem arquétipa”.
Não é difícil ver na obra poética de Manuel Gusmão, mas também na esplendorosa força dos seus ensaios, esta necessidade de responder a um certo efeito de deflação, como se a desgraça do sentido utópico e a imensa desolação que se cumpriu nas últimas décadas do século passado tivesse levado a que a cultura ficasse impregnada, não apenas da sensação de fim de século, mas de um esvaziamento pulsional que parece prenunciar um fim de mundo. Ora, este poeta consegue reagir a isto sem deixar de compreender os efeitos do próprio devir histórico, mas absorvendo a dúvida e até o desespero, e corresponde de forma heróica à exigência que Max Horkheimer deixou aos vindouros: “É verdade, o indivíduo não pode mudar o curso do mundo. Mas, se a vida inteira não for o selvagem desespero que se revolta contra isto, o indivíduo não chegará a realizar o pouco de bem, infinitamente pouco, de que é capaz enquanto indivíduo.”
E, assim, sentindo-se interpelado, e como em resposta, Gusmão escreve: “– Perder é uma falha/ na ordem do mundo contíguo ao meu corpo/ à mão que escreve a minha voz.// Essas coisas caem como coisas caindo, porque é/ da natureza das coisas o caírem na estação antepenúltima/ e ardente, naquela sazão que ardendo se enfria. (…) Essas coisas do mundo, no mundo as perdia;/ porque só há o mundo: os mundos – isso que nos faz/ e nos sonha e por vezes nos perde. (…) É assim: perdes uma coisa – ela cai de ti/ e caindo como uma pedra numa página de água/ o mundo estremece acende-se e ressoa como/ se fosse uma caixa de música, um pouco grande/ um pouco antiga. Uma caixa de música que fosse/ a verdadeira fórmula do mundo, a pequena forma/ como em sonhos ele a si próprio se vê, e não a ti./ Tu que de facto o ouves como se ele fosse// essa caixa de música: uma imagem da tua/ da nossa infância de todos,/ já um pouco tarde demais pelo século XX dentro./ Pelo século XX fora. – Fora! Fora!/ Se fosse hoje um século e trinta anos antes; ou/ depois de hoje o tempo que for; tivesses agora 20 anos/ e a alma grande e livre de um carregador de pianos/ tu: eu plantaríamos essa caixa de música no cimo dos Alpes.// E então ela soaria só para ti e para os bárbaros deles:/ os migrantes que acampando invadem submergem/ e conspurcam os jardins suspensos da Europa:/ os antigos e magnificentes hipermercados (…)”.