“O nosso sistema fiscal está completamente distorcido, sem lógica e com remendos”

Numa conversa sobre a origem e criação do Conselho das Finanças Públicas, Eduardo Catroga faz uma análise das propostas económicas para o OE, elogia a CIP e recorda como Sócrates tentou abafar Cavaco.

A CIP propôs a criação de um 15.º mês de salário livre de impostos. O que acha da medida?
Por aquilo que li, a CIP fez um trabalho sério de análise de algumas questões e até procurou envolver os sindicatos. A CGTP não quis participar no processo, mas a UGT sim. Em relação à proposta em concreto, o que digo é que estamos numa situação de excesso de carga fiscal sobre as famílias e empresas que está baseado no excesso de despesa pública para o nosso nível de rendimento. Normalmente, não vejo ninguém a falar em minimizar a carga fiscal e pedir um travão à despesa pública para que não se substitua um imposto por outro ou impostos por mais taxas e taxinhas. No caso dos impostos sobre o trabalho, é evidente que, mais tarde ou mais cedo, teremos de ir à raiz do problema, que é o excesso de fiscalidade, excesso de progressividade do IRS, ao ponto de batermos recordes. Fala-se muito da classe média, que é a grande sacrificada, mas chamo a atenção para o que se passa em relação a Portugal-Espanha. Em Portugal, um trabalhador para levar para casa dois mil euros líquidos, a entidade patronal paga um salário bruto à volta de 4.200 euros, quando em Espanha custa cerca de 3.300 euros. Isto revela que, o custo total em Espanha é mil euros mais baixo. Não conseguimos ajudar a classe média sem baixar a fiscalidade. Admito que para pertencer à classe média em Portugal é preciso ter um salário entre quatro ou cinco mil euros brutos. O nosso sistema fiscal está completamente distorcido, sem lógica, com remendos e contra remendos: contribuições extraordinárias, taxas adicionais, etc., o que exige uma reforma total e completa. Como isso não é viável no atual contexto político, a CIP e outros fazem determinado tipo de remendos, como propor o 15.º mês sem custos fiscais, o que tem o mérito de evidenciar que as pessoas não levam mais dinheiro para casa por causa dos impostos.

Há uma pressão muito grande para o Governo baixar a carga fiscal no próximo Orçamento…
Isso são peanuts e resta saber onde é que vão sem travar a despesa pública. Estamos com uma carga fiscal de dois, três pontos acima do PIB [Produto Interno Bruto] face ao que deveríamos ter para o nosso nível de rendimento. Estamos com 36,7%, quando nunca deveríamos ultrapassar os 34-35%, o que, somando as outras receitas do Estado de 7-8 % do PIB, dará um máximo de despesa pública consoante a fase do ciclo económico de 41-43 % do PIB. Se queremos um sistema fiscal competitivo,  temos de ter uma despesa pública corrente primária três ou quatro pontos mais baixa do que temos atualmente. Os partidos políticos, se quisessem fazer uma reforma fiscal a sério, tinham de começar a definir qual seria a carga fiscal máxima e não ultrapassar, por exemplo, os 34-35% do PIB. A partir daí, cada um fazia as suas escolhas.

Tendo em conta que temos um Governo de maioria absoluta, não seria mais fácil definir esse teto máximo?
Os partidos políticos gostam de prometer às pessoas um aumento da despesa pública e uma redução de impostos, mas são dois objetivos incompatíveis. As maiorias absolutas deveriam servir, como acontecia nos Governos de Cavaco Silva, para fazer reformas e não para uma inação estrutural permanente. Só interessa uma maioria absoluta para fazer reformas do sistema político, do sistema económico, social etc. Reformas que os partidos mais à esquerda do Partido Socialista, como o Bloco de Esquerda, não gostam. Este Governo não sabe como utilizar essa maioria para fazer reformas no bom caminho estratégico, isto é, como tornar a economia portuguesa mais produtiva e competitiva no quadro da União Europeia e no quadro do Euro.

E é por isso que vimos vários países do Leste passarem-nos à frente…
Porque esses já foram vacinados. Se comparar a despesa pública corrente desses países e a sua despesa de investimento, chega à conclusão de que têm mais investimento público e menos despesa corrente primária do que nós. E têm um menor grau de intervenção do Estado, porque já tiveram a vacina anti-Estado, como é exemplo típico esta política de habitação.

Mas em Portugal, quando é preciso ajuda, pede-se ao Estado…
O Estado é o garante da produção de bens e serviços públicos, mas não tem de ser o produtor direto. O Estado é ressegurador de última instância dos riscos sistémicos sobre a economia e sobre a sociedade, mas não tem de estar na esfera da produção, nem da intervenção.

Falou nas políticas de habitação. O que acha das medidas que já foram anunciadas?
Há muitos agentes políticos que não percebem o que é a lei da oferta e da procura, nem percebem o que têm de fazer para que haja mais casas a preço mais barato. O que temos de fazer é dinamizar a oferta e a construção. Na última década, construiu-se 20% do que se tinha construído nas décadas anteriores, logo, tivemos menos oferta, quando a procura se mantém ou até aumentou. Conclusão: os preços explodiram. Além disso, houve uma alteração na classificação de terrenos. Antigamente, eram rústicos, urbanos e urbanizados; depois, passou a haver só rústicos e urbanos. Com menos terrenos disponíveis para construção, os terrenos urbanos que existiam aumentaram o preço.

Há câmaras que já pediram para mudar, numa pequena percentagem, os terrenos rústicos para urbanos…
Com certeza. Há muito terreno rural que não se justifica. E sobre os custos de construção pesam os custos de mão-de-obra, de energia, etc. Havendo falta de mão de obra, os custos também tendem a subir. Os custos dos terrenos dependem do poder político e é aí que ele devia atuar quanto à reclassificação dos terrenos e ter PDM [Planos Diretores Municipais] menos fundamentalistas. Além disso, deveria haver menos fiscalidade sobre os custos de construção e sobre as transações imobiliárias, não é reprimir a oferta que se vai estimular a oferta. Dever-se-ia aproveitar as lições da história económica, porque já se sabe que quando se congela rendas isso tem o efeito contrário. Por isso, é preciso ter uma filosofia da economia de mercado para o mercado de arrendamento. Hoje, há muita gente que não põe casas no arrendamento porque tem medo que o inquilino não pague e está dois anos em tribunal para o conseguir pôr na rua, enquanto nos países desenvolvidos esse processo demora seis meses. No fundo, há que agilizar o processo de defesa dos contratos de arrendamento no sentido de eliminar incumprimentos. E por que é que não há mais habitação pública? Porque os Governos de António Costa, em dez anos, não construíram nada. Isto não é por acaso, puseram o investimento público nos níveis historicamente mais baixos para quê? Por opção política, para poderem repor mais aceleradamente os salários e as pensões para ganharem votos e agora choram que não há habitação. O que é fizeram para haver habitação nos últimos dez anos? Nada. E o lado mais esquerdista do Governo pensa que é o Estado que tem de resolver o problema e que os senhorios são os maus da fita. O Governo tem de fazer política social através de habitação social para as classes mais desfavorecidas. Nos últimos dez anos não se apostou nisso, porque se apostou em outras prioridades.

Como Sócrates quis  abafar Cavaco

Com a morte de Teodora Cardoso, a independência do Conselho das Finanças Públicas voltou a estar em destaque. Um organismo que surgiu pelas mãos de Eduardo Catroga. Estávamos em finais de 2010. O crescimento económico do país não era animador e o clima político também não. José Sócrates liderava um Governo de minoria, quando o economista é convidado por Pedro Passos Coelho para chefiar as negociações de viabilização do Orçamento do Estado para 2011. Catroga aceitou a missão mas impôs condições, uma delas assentava na criação de um órgão independente para a monitorização das contas públicas, no seguimento de uma sugestão feita publicamente pelo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. A ideia era seguir o modelo existente nos países anglo-saxónicos e terminar com as dúvidas que existiam sobre a fiabilidade das contas públicas. Outra exigência passaria por contrariar o abuso das parcerias público-privadas (PPP), assim como a imposição de prazos normais de pagamento do Estado às empresas, como recorda Eduardo Catroga no livro Gestão, Política e Economia, Vivências e Reflexões.

A equipa foi sendo alargada. Carlos Moedas e Manuel Rodrigues foram colocados à disposição do economista por Passos Coelho e a eles juntaram-se Miguel Frasquilho e Orlando Caliço, a seu pedido, apesar de reconhecer na sua obra que havia «uma pequena probabilidade de sucesso». Cavaco Silva estava a preparar o lançamento da sua recandidatura a Belém.

As negociações entre Eduardo Catroga e Teixeira dos Santos, na altura ministro das Finanças, arrancaram imediatamente. Estávamos a 23 de outubro de 2020 e em relação à exigência em torno do conselho de monitorização das contas públicas não houve qualquer resistência por parte de Teixeira dos Santos. No livro, o economista recorda que foi sugerido encontrarem-se apenas os dois. O encontro foi agendado para o dia seguinte na Assembleia da República. «Às dez da manhã do dia seguinte apresentei uma segunda versão do memorando de entendimento, deixando apenas algumas questões em aberto, que eram, naquele momento, o aumento do IVA como contrapartida da TSU e a criação da comissão sobre as PPP, com a suspensão de novos contratos. Às tantas, por volta do meio-dia, estávamos num novo impasse. Eu disse-lhe: ‘Preciso de saber se temos fumo branco ou não’». Teixeira dos Santos abandonou a sala, deixando-o horas à espera porque tinha de consultar Sócrates.

Às quatro da tarde, o economista foi surpreendido com um telefonema de Passos Coelho. «Tenho conhecimento de que o Governo está a atrasar essa sua conversa para se aproximar do fim da tarde e da hora do telejornal e, então, romper as negociações para estragar mediaticamente a apresentação da recandidatura de Cavaco Silva. Na realidade, se fizessem a rutura ao fim da tarde, o evento seria a abertura dos telejornais, prejudicando o lançamento mediático da recandidatura, que estava prevista para o fim dessa mesma tarde».

Com essa informação, Catroga abandonou o Parlamento, justificando a sua saída com uma desculpa pessoal. «Só por volta das seis da tarde recebi um telefonema de Teixeira dos Santos a dizer que já estava em condições de retomar as negociações. Eu respondi-lhe que, face ao problema familiar, não poderia nesse dia e propus-lhe as nove horas da manhã seguinte, na Assembleia da República. Ele não teve alternativa senão aceitar. Com a informação de Pedro Passos Coelho, anulámos a estratégia de Sócrates de tentar esvaziar o anúncio da recandidatura de Cavaco Silva», recorda na obra.

As conversas foram retomadas no dia seguinte, na Assembleia da República, mas com Teixeira dos Santos a dizer que não aceitaria as propostas. Foram retomadas em menos de 24h depois, mas já em casa de Catroga, só Passos Coelho estava a par. «Encontrámo-nos na minha casa por volta das cinco da tarde. Teixeira dos Santos chegou com o seu assessor económico, só levei o Carlos Moedas. Tinha um memorando de entendimento já preparado, com os pontos que estavam em aberto. A partir daí, senti que Teixeira dos Santos tinha pressa em chegar a acordo».

O acordo foi assinado às 23h19 e o momento foi registado em fotografia tirada por Carlos Moedas. O Orçamento de 2011 acabou por ser assinado, mas com a abstenção do PSD. Quando a Comissão Europeia impôs a criação deste organismo já ele tinha avançado.

sonia.pinto@nascerdosol.pt