João Soares foi eurodeputado socialista na década de 90, aceitando entrar numa lista, a convite de António Guterres. Na altura, assumiu funções no Parlamento Europeu com António Vitorino, mantendo, ao mesmo tempo, o cargo de vereador na Câmara de Lisboa. O político reconhece que essa experiência foi uma mais-valia para depois desempenhar as suas funções de autarca e dá, como, exemplo o que aprendeu com os táxis em Estrasburgo e que depois aplicou durante a Expo 98. João Soares lembra ainda que, na altura, os eurodeputados portugueses recebiam menos do que os outros de outras nacionalidades porque o ordenado era pago tendo em conta o salário aplicado no Parlamento nacional. Uma situação que, entretanto, já foi invertida. Em relação ao trabalho desempenhado pelos portugueses no Parlamento Europeu não tem dúvidas: “Ajudou muito do ponto de vista da disciplina da oratória, porque foi uma grande escola”. Quanto aos políticos portugueses reconhece que “estamos sempre do lado da solução e somos pacíficos”.
Como foi a sua experiência como eurodeputado, apesar de ter sido uma curta passagem?
Fui convidado em 1993 por António Guterres para integrar a lista para o Parlamento Europeu. Na altura, era vereador em Lisboa, era o número dois da lista liderada por Jorge Sampaio, na Câmara Municipal de Lisboa. Aceitei o convite de Guterres e a lista foi um pouco polémica como é sempre porque são listas partidárias. Guterres era líder do partido e ainda não era primeiro-ministro, foi eleito em 1995. A lista para o Parlamento Europeu era encabeçada por António Vitorino e fui o número dois. Aceitei o convite porque achei que seria interessante ter a experiência das instituições europeias. Sempre fui um europeísta convicto, sempre fui partidário para que Portugal entrasse na União Europeia, daí ter recebido com entusiasmo a nossa entrada na União Europeia, que foi um pouco antes disso. Compatibilizei essa experiência de eurodeputado com a função que tinha como vereador em Lisboa. Deixei de ter tempo atribuído na Câmara, combinei isso com Jorge Sampaio, deixei de ter salário, porque não tinha tempo atribuído, mas as responsabilidades mantiveram-se as mesmas. Aliás, Sampaio no meio da minha estadia no Parlamento Europeu ainda me deu mais umas competências em matéria de pequenas obras na cidade de Lisboa. Tive casa em Bruxelas e a minha família – a minha primeira mulher e os meus filhos mais velhos – foi comigo. No entanto, vinha todas as semanas a Lisboa e passava uma parte da semana em Lisboa. O Parlamento Europeu pagava as viagens e ainda hoje continua a pagar.
O facto de as viagens serem pagas também facilita a vinda a Portugal…
Isso facilitava bastante as coisas e, por isso, passava três dias cá e três dias lá. Mas nunca faltei a uma sessão plenária. Fiz parte de uma comissão, que era a Comissão de Cooperação e de Desenvolvimento. Nessa altura, o comissário europeu português era João de Deus Pinheiro que tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros, no tempo de Cavaco Silva. Nessa comissão fazia-se trabalhos virados para questões como Timor e também relacionadas com a guerra em Angola. Foi uma experiência curta, mas muito interessante porque percebi e vi melhor com os meus próprios olhos o funcionamento da Comissão, o funcionamento do Parlamento e o funcionamento do Conselho. Aquilo é um mundo um bocadinho autocentrado, porque aquela realidade anda um pouco longe da realidade do que sentimos nas várias zonas da União Europeia, sobretudo em sítios, onde as coisas são difíceis, como aliás se tem provado nos últimos tempos, com aquilo que considero que é um dos desafios mais sérios que a União Europeia enfrenta e que não tem sabido responder, que é a questão da imigração, nomeadamente o que se está a passar no Mediterrâneo e da tragédia das pessoas a morrer naquelas circunstâncias e, em alguns casos, a ser rejeitada. No Parlamento Europeu, com aquelas coisas de arranjos partidários é muito interessante porque também é muito complicado do ponto de vista do seu funcionamento. Por exemplo, nessa altura, na União Europeia só estavam 15 países. Aliás, foi na altura em que entraram os três últimos dos 15 que foi Finlândia, Áustria e a Suécia. E ocupei no Parlamento Europeu um lugar interessante, porque fiz parte de um quadro de cinco pessoas que eram eleitos para ocuparem uma função de tutela política da máquina administrativa do Parlamento. Quer dizer, tínhamos a ver com a tutela do Secretariado, das sessões que se faziam em Estrasburgo, dos serviços que funcionavam no Luxemburgo e das questões relacionadas com a logística na perspetiva da tutela política. Era um francês, aliás depois foi ministro e primeiro-ministro da França, que era Jean Pierre Raffarin, penso que ainda está ativo na política francesa. Um inglês trabalhista, eu, um conservador alemão e um comunista português. Éramos só cinco pessoas, mas com aqueles arranjos dos vários grupos políticos calhou estarmos dois portugueses: o Sérgio Ribeiro e eu. Logo, a língua dominante era português dentro desse grupo, sempre com tradução, que é uma das coisas mais interessantes e uma das máquinas mais pesadas do ponto de vista de custos do Parlamento Europeu que é a necessidade de tradução para todas aquelas línguas e, na altura, já se colocava a questão das línguas nacionais, que não eram línguas oficiais, como o catalão e outros que já estavam a reclamar a interpretação em catalão. Nessa altura, com 15 países, havia 11 cabines de interpretação. Sempre procurei ter boas relações com quem trabalhava e ia sistematicamente à nossa cabine de tradução cumprimentar as pessoas, agradecer o trabalho que ofereciam, etc. O trabalho no Parlamento Europeu também ajuda muito do ponto de vista da disciplina da oratória, porque foi uma grande escola. Nós portugueses e os latinos, de uma forma geral, e até os franceses, estamos habituados a falar imenso. Às vezes, só para cumprimentos as pessoas presentes gastamos três ou quatro minutos, mas no Parlamento Europeu, quer no plenário, quer nos trabalhos das comissões só tínhamos três minutos ou cinco minutos no caso de ser uma coisa muito importante, mas pouco mais do que isso.
Exige mais disciplina?
As pessoas habituam-se a ser disciplinares do ponto de vista do que dizem para não perderem tempo em coisas completamente inúteis, como essa histórias dos cumprimentos iniciais, etc. e acabam por ser obrigados a arranjar fórmulas muito sintéticas. É muito interessante porque as famílias políticas, na altura, e continuam a ter algum peso, são as duas grandes famílias progressistas que somos nós socialistas e os conservadores. No entanto, nessa altura, ainda havia um grupo, em que os comunistas tinham algum peso. Havia também já alguns grupos ligados à extrema-direita, nomeadamente Le Pen. Quando entrei em 1993 nessa equipa liderada por António Vitorino lembro-me que a França tinha uma série de vedetas. Estava Le Pen, o Jacques Lang, etc., mas para dizer a verdade, a França não ligava muito ao Parlamento Europeu, só queria que houvesse uma parte das sessões plenárias que fosse para Estrasburgo. Isto é, tinha de se mudar tudo de Bruxelas para Estrasburgo. É interessante esse espaço, porque tem todas as famílias políticas, mas depois tem os do Norte e os do Sul, depois tem os anglófonos, os francófonos, os que falam as línguas latinas. E tem países mais ricos, tem os mais pobres. Naquela altura, houve uma polémica muito grande, mas penso que está resolvida e que dizia respeito aos salários.
Como assim?
As pessoas são muito bem pagas no Parlamento Europeu, mas nessa altura, havia uma grande diferença entre os países do sul – como nós, os gregos, os italianos, etc. – e os outros, porque, o ordenado base era o ordenado do Parlamento nacional. Quer dizer, o que se recebia de ordenado mensalmente era o ordenado base do Parlamento nacional e, na altura, verificámos que o Parlamento português, e penso que continua a ser, era dos mais mal pagos da União Europeia. Penso que era mesmo o mais mal pago dos 15. E depois o que compensava os eurodeputados do Sul, que estavam mais distantes de Bruxelas e de Estrasburgo, era que o Parlamento pagava todas as semanas, fizesse ou não fizesse viagens, uma tarifa ao quilómetro. Ou seja, representava uma tarifa elevada, porque a viagem de ida e volta partia do ponto de Estrasburgo ou de Bruxelas e isso dava uma batelada de dinheiro. A maior parte dos parlamentares que lá estavam, que não tinham responsabilidades na terra deles e, alguns até tinham, recebiam uma verba grande e isso permitia pagar as despesas e até dar algum dinheiro para as poupanças. Os gregos ainda mais do que nós, mas todos os que estavam mais longe de Bruxelas, todas as contas eram feitas a partir de Bruxelas e, como tal, recebíamos mais. E éramos nós e os gregos, embora os italianos também recebessem. Depois havia ainda umas despesas de secretariado, que também eram substantivas e que permitiram ter uma ou duas pessoas. Tive duas pessoas, o Acácio Barreiros que ficou sem lugar aqui no Parlamento português e que me acompanhou. E tive uma jovem que lá ficou como quadro europeu que é a minha amiga Daniela. Nunca fiquei com um tostão do secretariado, mas havia muitos deputados que ficavam com o dinheiro do secretariado, em que metiam familiares muito chegados, nomeadamente mulheres ou filhos. Sempre achei uma coisa horrível e nunca entrei por aí. Mas também não condeno. E isso começou a dar polémicas, nomeadamente com os alemães e com os ingleses das várias famílias políticas, porque havia eurodeputados – também tínhamos um ou outro caso – que viviam em Bruxelas e em vez de irem para os seus círculos iam de Estrasburgo para Bruxelas, mas ficavam em Bruxelas aos fins de semana, mesmo recebendo o dinheiro das viagens como se as tivessem feito, quando o princípio do Parlamento é que se desloquem aos sítios onde são eleitos para manter o contacto. Isso criou uma grande polémica, mas sempre disse o que pensava porque estava à vontade nessa matéria. Além disso, o Parlamento Europeu pagava as viagens que quisesse fazer intercalares em classe executiva. Logo tinha direito a comprar um bilhete para vir de manhã ou à noite de Bruxelas e partir no outro dia de manhã se assim o entendesse Mas como isso deu uma grande polémica penso que adotaram um esquema de pagar as viagens à peça e, por outro lado, optaram por uniformizar os salários. Isso foi visto como uma maneira de resolver esses problemas. Não podia ter os italianos e os alemães a receberem 10 mil euros por mês e depois ter os portugueses a receberem 400 euros por mês.
Faz então um balanço positivo da experiência?
Foi uma experiência bastante rica, porque a negociação é sempre uma negociação plural, não há aquelas coisas que são muito nossas que é branco e preto. Sou de esquerda, sou de direita, gosta ou não gosta. Ali tem de negociar com os do Norte e os do Sul, com os socialistas, com os de direita, com os que falam francês ou falam inglês. Nós como povo somos muito desenrascados e acho que sempre tirámos vantagem disso, porque falávamos com toda a gente e dávamo-nos bem com toda a gente. Isso é uma mais-valia que temos. Procuramos ser sempre parte da solução e não parte do problema. Isso é uma característica muito portuguesa. Às vezes pomos os afetos e desafetos pelo meio, mas estamos sempre do lado da solução e somos pacíficos.
Então por que é que a sua experiência foi encurtada?
A minha paixão era o trabalho na autarquia de Lisboa, aquilo foi um complemento que aceitei para enriquecer o trabalho que fazia e que foi útil depois como autarca. A minha principal preocupação era a responsabilidade em Lisboa. Saí antes das eleições legislativas que o PS ganhou com Guterres como líder, O Vitorino também saiu, mas saiu a seguir às legislativas, quando ganhámos e foi um dos ministros mais importantes do primeiro Governo de Guterres. Mas fiz questão de sair antes das legislativas porque já tinha a experiência de eurodeputado, mas a minha principal preocupação era o trabalho em Lisboa. E saí antes de Jorge Sampaio renunciar à presidência, porque ia ser quase inevitável, embora tenha tido muitas hesitações, de renunciar à presidência da Câmara, porque se assumia já na altura como candidato presidencial. Renunciou à presidência da Câmara em 1995. A minha experiência foi interessante, divertida, gostei muito e já gostava de Bruxelas. Via Bruxelas com uma cidade simpática, assim como Estrasburgo. Mas vou dizer uma coisa que foi muito importante para o período da Expo, quando era presidente da câmara, que foi a questão dos transportes públicos. Estrasburgo tem uma bela rede de transportes públicos com elétricos rápidos e fiz muita pressão na altura na Carris para que se adotasse aqueles modelos elétricos, etc. E uma coisa muito importante, Estrasburgo tinha táxis a mais – tínhamos o direito a andar de táxi o que quiséssemos e apresentávamos a fatura, desde que circulássemos dentro das cidade na semana em que lá estávamos – porque tinha a população normal, mais os turistas que a visitam e mais a semana no Parlamento. Comecei a andar de táxi, falava com os taxistas e diziam-me que durante três semanas não tinham trabalho nenhum, Quando foi a Expo diziam-me que queriam autorizar mais táxis, aí disse que autorizava os taxistas dos arredores a virem para cá trabalhar durante este período, porque iria haver mais gente por causa da Expo, mas ficar com mil táxis a mais em Lisboa seria uma coisa louca. Também vi muitas coisas ligadas ao tratamento de resíduos sólidos, quer em Bruxelas, quer em Estrasburgo.