A cláusula mais difícil do contrato

Encontrar os gatafunhos no final do livro não foi apenas frustrante: foi como comprar um apartamento minimalista e descobrir que tinha um graffiti horrível a desfigurar as traseiras.

A caça ao livro é um passatempo como outro qualquer, umas vezes empolgante, outras vezes aborrecido. Temos uma lista de livros que gostaríamos de adquirir, mas que se encontram esgotados ou são demasiado caros – e de tempos a tempos lá vamos nós à procura de um exemplar a um preço razoável. Durante dois ou três anos, o número 1 dessa lista dos mais procurados foi Escritos sobre Arte, de Paul Klee. Até que certo dia, como já tinha feito tantas vezes antes, voltei a fazer uma pesquisa online e, como que por magia, lá estava um exemplar à minha espera.

Penso que já alguém comentou como estes livros longamente desejados, quando finalmente lhes deitamos as mãos, nos parecem afinal banais. E também este, depois de o tirar do envelope, já não se me afigurava assim tão merecedor daquela reverência que nos suscitam as coisas raras.

A lombada vinha um pouco engelhada, mas isso era o menos. Não sou assim tão comichoso. Era o facto de estar ali ao meu alcance que lhe roubava uma certa aura solene.

O que eu não adivinhava é que este exemplar trazia uma surpresa escondida. Pois claro: uma surpresa é por definição algo de que não estamos à espera.

O_que encontrei lá dentro, na face interior da contracapa? Um contrato. Um contrato, a avaliar pelo coração trespassado por uma seta, entre cônjuges ou namorados. Desculpem, mas não resisto a transcrever:

«Condições gerais para aquisição de PS4:

– Deveres do Tiago:

1. lavar a loiça sempre depois do almoço ou do jantar durante 12 meses a contar desta data.

2. acender o lume diariamente enquanto necessário.

3. não convidar ninguém sem o meu consentimento prévio.

4. utilização limitada a 3 vezes por semana.

5. arrumar a roupa diariamente.

– Deveres da Luísa:

1. esforço para ser simpática para os amigos do Tiago.

2. não ser manipuladora.

3. ir passar férias com o Tiago […] em Abril e Junho.

4. agradecer ao Tiago e mimá-lo de vez em quando.

5. amar o Tiago mais do que a ela própria.

6. passar a ferro de vez em quando.»

Este contrato tem vários aspetos curiosos. Um deles é o facto de Tiago ter de «lavar a loiça sempre depois do almoço ou do jantar», de «acender o lume diariamente» e de «arrumar a roupa diariamente», enquanto Luísa só tem de «mimá-lo de vez em quando» e de «passar a ferro de vez em quando». Não é difícil perceber quem dita as regras lá em casa. Mas suspeito que a cláusula mais difícil de honrar terá sido a segunda: «não ser manipuladora». A avaliar pela amostra, essa característica está para Luísa como uma segunda pele.

Encontrar estes gatafunhos no final do livro não foi apenas frustrante:_foi como comprar uma casa minimalista e descobrir que tem um graffiti horrível a desfigurar as traseiras.

O_contrato termina com esta declaração: «o não cumprimento de qualquer uma destas regras dá à outra parte o direito de partir a PS4». Ou muito me engano ou, para isto me vir parar às mãos, é porque a coisa não acabou da melhor forma.

P.S.1: Por uma questão de discrição, os nomes dos signatários foram alterados e o local de férias omitido.

P.S.2:_O livro n.º 1 da lista dos mais procurados é agora Ornamento e Crime, um título que tem tudo a ver com a funesta descoberta no final de Escritos sobre arte.

P.S.3:_Para quem não sabe, uma PS4 é uma consola de videojogos.