Lenine, ainda no exílio e antes da revolução de 1917, terá dito que há décadas em que nada acontece e semanas em que acontecem décadas. Um século depois, também vivemos tempos em que a história se precipita ao ritmo a que se desfazem consensos e ilusões. Pode ser um ponto de inflexão no Médio Oriente. A escalada do conflito israelo-palestiniano ameaça o já conturbado status quo da região, com consequências geopolíticas e geoeconómicas. Neste momento, existem três cenários possíveis: o primeiro é o de uma contenção que, ainda assim, comporta enormes custos humanos. Trabalham-se soluções para mitigar esses custos, nomeadamente a criação de corredores humanitários, mas mantem-se a recusa perentória, do Egito e da Jordânia, em receber refugiados palestinianos. O segundo cenário, cada vez mais provável, é o do alastrar do conflito para a Cisjordânia, o que poderia rapidamente materializar-se no terceiro cenário, com o envolvimento direto do Líbano, Síria e Jordânia, numa vitória geopolítica para o Irão.
Os EUA seriam forçados a envolver-se diretamente, processo que já está em preparação com o envio de porta-aviões e caças para o Mediterrâneo e com um grupo de soldados da marinha pronto para ser enviado para o Médio Oriente. No quadro geoeconómico, este terceiro cenário levaria ao aumento significativo do preço do petróleo, afetando ainda mais a já fragilizada economia global. A Goldman Sachs prevê uma subida para os 105 dólares por barril, e a Bloomberg aponta para os 150 dólares.
Biden em Israel
Washington esforça-se por mediar o conflito, mas a Administração Biden pode estar a pagar o preço de ter ignorado a prioridade estratégica do Médio Oriente. Depois de Israel ter aceitado a abertura de um corredor humanitário, Biden deslocou-se ao país, e esteve com Nethanyahu. Mas a visita à região falhou um dos objetivos principais: a cimeira com os líderes árabes foi cancelada na sequência da explosão no Hospital Al-Ahli em Gaza. Joe Biden afirmou, no encontro com o primeiro-ministro israelita, que o ataque foi da autoria «da outra equipa». Este encontro aconteceu numa altura em que Israel prepara a fase final da ofensiva terrestre em Gaza. Em declarações ao Politico, David Petraeus, que comandou as intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, disse que esta ofensiva poderia «rapidamente transformar-se num Mogadíscio em esteroides». Em 1993, 18 soldados americanos ficaram encurralados e foram mortos na capital somali, e os seus corpos posteriormente arrastados pelas ruas. A elevadíssima densidade populacional em terreno urbano, a extensão de túneis do Hamas e o facto de manterem centenas de reféns tornam esta operação particularmente perigosa para o exército israelita, pouco treinado em guerrilha urbana.
Por agora, o quadro de risco e volatilidade reflete poucas (e velhas) certezas. Como refere Jose Miguel Alonso-Trabanco num artigo publicado na Geopolitical Monitor, a da ausência de uma ordem assente em regras, a de que as variáveis da guerra são intermináveis e a de que a geografia é fio condutor do conflito. E, como naquele 28 de junho de 1914, os ataques do dia 7 de outubro de 2023, e as reações em cadeia que continuam a provocar, poderão levar a profundas reconfigurações geopolíticas e políticas, muito além do Médio Oriente.
O conflito toca feridas antigas e aprofunda e suscita emoções, reações, e alinhamentos não apenas no mundo árabe, mas também em outras latitudes.
Na Europa, o ataque do Hamas voltou a expor vulnerabilidades. Primeiro, numa sucessão de declarações contraditórias, que começariam com um anúncio da suspensão da ajuda à Palestina, para terminar com a promessa de triplicar a ajuda atual. Num tempo implacável que exige convicções enraizadas, declarações firmes e soluções rápidas, a UE falhou em condenar, a uma só voz, o ataque do Hamas. Isto não resulta apenas da ausência de chão e posição comum, mas também da consciência de que uma condenação forte e inequívoca poderia ter consequências no espaço europeu.
Khaled Meshaal, ex-líder do Hamas, apelou à população dos países vizinhos para que se juntasse na luta contra Israel, e à realização de um dia de protestos, na sexta-feira dia 13, nas ruas dos países árabes e muçulmanos. E declarou a todos os que ensinam e aprendem a jihad: «Este é o momento para a aplicação das teorias».
De Paris a Londres, de Berlim a Lisboa, houve manifestações de apoio à Palestina e, em alguns casos, confrontos com a Polícia. Ao mesmo tempo, a ameaça do terrorismo volta a ser notícia na Europa. Em Arras, um professor foi morto à facada por um homem gritando Allah Ahkbar. Durante a semana, na sequência de ameaças de bomba, o Louvre, o Palácio de Versalhes e seis aeroportos franceses foram evacuados. Em Bruxelas, um ataque terrorista por outro ‘lobo solitário’ originou a morte de dois cidadãos suecos. Em entrevista à Euronews, Claude Moniquet, especialista em terrorismo, referiu que «haverá um choque terrorista que acompanhará o que se passa no Médio Oriente».
E voltaram a ouvir-se cânticos antissemitas nas praças e avenidas das cidades europeias. Em Berlim, foram arremessados coquetéis molotov para uma sinagoga e casas habitadas por judeus foram marcadas com a Estrela de David.
Um mundo que já mudou
Os conflitos e tensões acumulam-se. A situação na Ucrânia denuncia o cansaço provocado por um conflito sem fim à vista. No Nagorno-Karabakh há receios de uma limpeza étnica. No norte do Kosovo continuam sintomas de velhas tensões que não desapareceram. A violência crónica reivindica cada vez mais vidas e oportunidades no Sahel. E, a Oriente, Pequim permanece determinada no desígnio de uma só China, pairando sempre a ameaça de um ataque a Taiwan.
Neste quadro de volatilidade e antagonismo, formam-se novas alianças, de uma geometria variável que escapa às certezas do fim da História, e num contexto em que a hegemonia americana deixou de ser certa. Esta semana, em Riade, o Príncipe Mohammed bin Salman deixou o secretário de Estado Anthony Blinken à espera durante horas, num gesto que foi interpretado como uma forma de ‘humilhação’. Ao mesmo tempo, surgem novas potências de escala mundial ou regional pouco alinhadas com os ditames do liberalismo internacional. Em Pequim, Viktor Órban encontrou-se pessoalmente com Vladimir Putin, que foi recebido com honras e distinção por Xi Jinping no âmbito da celebração do décimo aniversário da Nova Rota da Seda. O evento reuniu, nesta semana em que se passam décadas, vários líderes internacionais na capital chinesa.
Atores como a ONU, tidos como alicerces da ordem internacional liberal, são confrontados com bloqueios constantes que denunciam uma crescente irrelevância. A União Europeia, a braços com uma crise económica e novas clivagens políticas, esforça-se por manter influência num mundo que volta a falar a linguagem do poder duro e onde a geografia continua a importar. E arrisca-se a ficar isolada entre a guerra a leste, a sul e, agora, a oriente.