Que balanço faz destes quase dois anos de maioria absoluta do Partido Socialista?
Faço um balanço perturbador ao nível da bolha político-mediática. Uma coisa é a opinião publicada, expressa nas televisões e nas redes sociais; outra é aquilo que eu sinto falando com as pessoas, com os meus vizinhos, com os meus amigos, com gente que trabalha no campo, que trabalha em pequenas oficinas, etc. É completamente diferente daquilo que a gente ouve na opinião da bolha…
E as notícias de serviços e urgências fechados por todo o país?
Acho que talvez tenha havido inabilidade da parte do Governo. Mas tenho esperança que este ministro da Saúde [Manuel Pizarro] seja capaz de resolver os problemas, porque ele próprio é um médico e um médico de família, com uma experiência grande e é um homem pragmático. Não percebo por que razão não se dá satisfação àquilo que os movimentos sindicais dos médicos têm estado a exigir. Agora, é preciso passar às coisas mais substantivas. Eu fui autarca na cidade de Lisboa. Tenho uma especial sensibilidade para isso. E não é só em Lisboa que o número de sem abrigo aumentou, e o problema da habitação é um problema também muito sério. E isso tem de passar, evidentemente, por construir mais casas. Não há que ter ilusões sobre essa matéria. Não é acabar com o alojamento local, nem acabar com os Golden Visa [Vistos Gold], que isso também me parece um disparate.
É crítico em relação ao pacote Mais Habitação?
Em relação a esses aspetos, acho que o que é fundamental é que haja uma oferta pública que tem de ser feita com os privados, mas uma oferta pública de mais habitação. Nós estamos a receber muitos milhares de migrantes que estão a viver em condições miseráveis, pré escravatura por esses campos fora, e nas grandes cidades. Há pessoas a dormir dentro do porta-bagagens do carro, é preciso ter noção.
Está preocupado com a degradação das relações entre o Presidente da República e o primeiro-ministro?
Nada. Temos tido um belíssimo Presidente da República. Eu, que nunca esperei vir a apoiá-lo, apoiei nesta segunda candidatura e não me arrependo, pelo contrário. Não houve degradação nenhuma. Essa é outra daquelas ficções políticas que se constroem na chamada silly season.
Mas a verdade é que, do ponto de vista da sua ação pública, o Presidente tem sido bastante mais crítico do Governo do que foi anteriormente?
Houve ali um incidente em que eu acho que o Presidente teve razão. No contexto do que se passou à volta do Ministério das Infraestruturas. Depois daquele incidente grave, fazia todo o sentido que o ministro responsável tivesse sido substituído.
Acha que o Presidente da República tinha razão?
Acho que tinha razão na parte substantiva. Porque, evidentemente, o ministro ficou muito debilitado. Aliás, nem temos dado muito por ele, não é? Mas o Presidente da República devia ter dito discretamente ao primeiro-ministro o que achava. Agora, eu acho que eles se dão muitíssimo bem.
Há quem diga que são dois estrategas e que, portanto, se medem muito bem um ao outro e avançam e recuam conforme as circunstâncias?
Eu acho que ambos são muito táticos. Eles já têm um balanço altamente positivo dos anos de mandato que têm tido, conhecem-se muito bem E veja que não houve dessintonias substantivas nas questões que verdadeiramente interessam, nem do ponto de vista do que são as grandes opções económicas que foram feitas, e do desenvolvimento.
Acha preferível um Governo de maioria absoluta do Partido Socialista, o senhor que foi um grande defensor dos entendimentos à esquerda?
É a solução que existe e é com esta que temos de trabalhar. E eu acho que há todas as condições para que se a oposição… quer dizer, eu quero que haja alternância. A última coisa que eu quero na vida é querer que o PS esteja no poder todo o tempo. Isso é uma coisa insuportável…
Até porque conduz a uma ocupação da máquina do Estado?
Não é benéfico, mas vamos lá ver uma coisa – e eu acho que o Costa nisso tem sido também sempre límpido –, os mandatos são para se cumprirem. No fim do mandato faz-se uma avaliação. O pior de tudo é haver álibis permanentes para não se cumprir o mandato.
Não acha que pode haver uma alteração a esse calendário por causa das eleições europeias?
Acho que não. Nem creio que o grande problema seja esse, sinceramente – e não estou a dizer isto porque sou do PS –, o problema é que não há Oposição.
E o Partido Socialista não contribui para isso ao usar o Chega como um instrumento para enfraquecer o PSD?
Não, não acho nada disso. Aliás, acho que o PS, nisso, tem sido claro, até às vezes em demasia, porque aquilo não é um partido fascista nem vem dali uma ameaça fascista. Aquilo não tem ninguém, tirando o líder que é o André Ventura. O André Ventura, que é um tipo com pose e com capacidade oratória indiscutível e experiência e tal, fora isso, aquilo não tem ninguém. Agora, o problema é o PSD não se deixar chegar a uma situação daquelas. Não digam que a culpa é do PS.
Então, não lhe fazia impressão se o PSD se coligasse ao Chega, numa situação semelhante àquela em que o Partido Socialista se coligou com a esquerda?
Vou-lhe dizer uma coisa que é mal vista se eu disser lá no meu partido, mas eu sempre pensei pela minha cabeça. Eu acho que não é ameaça nenhuma. Aquilo até dá vontade de rir, porque é o André Ventura, não há nenhuma outra figura capaz.
‘Centeno seria um excelente candidato’
Acha que o Almirante Gouveia e Melo daria um bom Presidente da República?
Não daria um mau Presidente da República, é a minha opinião. Mas também não entro nessa coisa de intriga, porque senão daqui a pouco vão dizer: o João Soares já está a propor o Gouveia e Melo. Eu acho que o que faz sentido é que as grandes famílias políticas devem fazer propostas nessa matéria. Há várias hipóteses possíveis. Agora, acho que é cedo, por enquanto.
Mas quem é que vê como possíveis candidatos?
Hoje há um nome, alguém que manifestamente tem vontade, que é o atual presidente da Assembleia da República, que tem todas as condições, é um homem inteligentíssimo e cultíssimo, etc. E com uma larguíssima experiência. Eu penso que não haverá ninguém que tenha desempenhado tantos postos governativos como o Santos Silva, o presidente da Assembleia da República. Agora, há mais. Há uma figura de que eu gosto muito, tive o privilégio de o conhecer quando estive muito fugazmente no Governo, que é o atual Governador do Banco de Portugal, que eu acho que é um homem excelente, que teria todas as condições para ser um candidato a Presidente da República para ter o apoio da esquerda e não só, porque é preciso ter o apoio da esquerda e não só. Agora, vamos ver quem é que sai à direita. E, sobretudo, não estarmos a ter o espetáculo a que temos assistido do lado da direita, com o dr. Marques Mendes a pôr-se em bicos dos pés e o Santana Lopes a dizer que estão a atacar uma cidade que é vizinha de Coimbra… acho que é cedo.
‘Guterres devia ‘fazer as contas’ depois de declaração infeliz’
Como avalia as declarações do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que indignaram Israel?
Com tristeza. Pela primeira vez desde há muitos anos, não me revejo em algo que diz o secretário-geral das Nações Unidas, que é uma pessoa por quem tenho imenso respeito, de quem sou amigo pessoal e que apoiei sempre, nas batalhas do Partido Socialista e no plano internacional. Acho que aquela frase infeliz – e ele é um homem com um domínio fantástico da palavra – presta-se a más interpretações, que são indesejáveis e que não ganham nenhum terreno para aquilo que é seguramente o objetivo dele – e por isso ponho as mãos no fogo, que é o de todas as pessoas que têm consciência e que não são fundamentalistas – que é a conquista da paz. Agora, qualquer paz com dignidade não se faz contra Israel e com aqueles que querem destruir o Estado de Israel, que infelizmente é uma constante desde a sua fundação em 1948. Eu sou um apoiante indefetível do Estado de Israel, que aliás é o único Estado democrático daquela região.
Acha que o secretário-geral foi mal interpretado ou acha que ele teve intenção de dizer o que disse?
A declaração foi infeliz e, conhecendo-o como o conheço, tenho a certeza que ele eventualmente não esperaria aquelas reações, mas todos temos momentos de infelicidade. É caso para dizer, citando-o: faça as contas, ao que ganhou e ao que perdeu.
E acha que as coisas ficam agora mais complicadas para o papel que as Nações Unidas e o secretário-geral podem desempenhar, até porque Israel pediu a demissão do secretário-geral?
Não vou tão longe. O que eu penso é que ele tem um lugar que permite, pelo menos ser ouvido, e ser ouvido nas mais diversas circunstâncias. É muito importante ser ouvido pelo mais importante parceiro que na minha perspetiva existe no Médio Oriente, que é o único Estado democrático. Há aqui uma campanha contra a existência do Estado de Israel, porque o que se está a pôr em causa é a própria existência do Estado de Israel. Como disse a Golda Meyer e bem: «Se os israelitas baixarem as armas, Israel será destruído. Se os árabes baixarem as armas, haverá condições para fazer a paz». A questão das fronteiras é uma questão completamente secundária. As fronteiras resultaram das asneiras que os Estados árabes e os palestinianos fizeram depois de 48, porque Israel nunca atacou nenhum Estado vizinho, Israel respondeu a ataques vindos de Estados vizinhos e, nomeadamente, no que diz respeito à faixa de Gaza que foi reentregue por Israel ao senhor Arafat da Autoridade Palestiniana. O então Presidente da República de Portugal visitou o Estado de Israel e depois a Faixa de Gaza em 1995. Foi recebido pelo Arafat na Fiaxa de Gaza e nessa noite foi assassinado o Ytzac Rabin. Lembro-me de o Presidente da República – que era um home com quem tinha relações [o pai, Mário Soares] – me ter contado que, naquelas horas, a grande angústia de Arafat era que o Rabin tivesse sido morto por um palestiniano, facto que não se confirmou. Isto é para dizer que a paz faz-se com homens como Ytzac Rabin e Yasser Arafat, não é com terroristas que querem destruir a única democracia da região, que tem eleições livres, liberdade de imprensa, liberdade religiosa e alternância no poder.
Como é que vê a atual situação internacional, com uma nova guerra no Médio Oriente, entre Israel e o Hamas, a juntar-se à guerra na Ucrânia. Acha que há o risco de o conflito no Médio Oriente se poder alastrar a uma dimensão regional ou pior?
Eu acho que não há ninguém com um mínimo de equilíbrio e bom senso que possa prever o que é que pode acontecer, porque tudo pode acontecer e a situação tornou-se profundamente instável. Eu diria que há ali um ponto que marca, do meu ponto de vista, uma viragem importantíssima, no sentido do desequilíbrio das coisas, que é aquela agressão inenarrável que a Rússia comandada pelo senhor Putin faz à Ucrânia e que se transforma numa invasão que tem sido uma coisa absolutamente brutal e que tem banalizado a brutalidade. E, por outro lado, não há dúvida de que aquilo trouxe um desequilíbrio à vida política internacional, e as decisões que são tomadas aos mais variados níveis são de uma forma que não é passível de permitir expectativas razoáveis, porque há ali uma falta de razoabilidade imensa. O que se está a passar no Médio Oriente também tem que ver com esse outro conflito que já estava em curso, que é o da Ucrânia e da agressão da Rússia à Ucrânia. Não há dúvida de que, mesmo para as opiniões mais isentas – o senhor Putin, que é um autocrata impiedoso e que, é bom lembrar, foi um alto quadro do KGB durante dez anos –, os grandes fornecedores das armas de que o Hamas se serviu naquele ataque miserável que fez no dia 7 de outubro foram os iranianos, que também são grandes fornecedores de drones e de mísseis para a Rússia. Obviamente que o senhor Putin é um dos grandes beneficiários. A guerra da Ucrânia estava a concitar as simpatias de todo o mundo ocidental e não só, no sentido de se procurar encontrar uma solução que fosse uma solução equilibrada e que preservasse a independência e liberdade da Ucrânia. E agora todos os olhares se desviaram para o Médio Oriente, que é o conflito primordial.
E, assim sendo, o que acha que pode acontecer?
Quer dizer, aquilo é uma coisa de quem obviamente não quer soluções equilibradas e que possam conduzir à paz, nem ali, nem em lado nenhum. É um ataque miserável de quem afirma com toda a clareza – e nesse plano, pelo menos, eles são claros e sinceros – que quer destruir o Estado de Israel. Ora, acontece que o Estado de Israel, por muito que desagrade a muita gente da esquerda – em que eu me coloco –, e da direita, é o único Estado democrático da região. É o único Estado onde há liberdade de imprensa, onde há alternância política por via eleitoral, onde há liberdade de formação de partidos políticos, onde à liberdade religiosa, é o único Estado onde você tem sinagogas, mas tem também igrejas católicas, tem também mesquitas muçulmanas, tem uma liberdade de culto perfeita.
Mas agora, com a situação que está criada, Israel está obrigada a responder. A questão é se esta resposta tem um fim e vai manter-se naqueles limites geográficos?
Temos que reconhecer o trabalho do Presidente dos Estados Unidos, que é um excelente Presidente – está velhote, mas é um excelente Presidente –, tem-se visto como é que ele tem lidado e como é que ele próprio foi a Israel, à Jordânia e ao Egito, e como procurou encontrar soluções que evitassem que se responda ao terror com o terror. Tem trabalhado com a generalidade dos líderes ocidentais. Nalguma medida, eles estão a tentar garantir que há ali alguma contenção na resposta. Mas a resposta tem de ser evidentemente violenta. E obviamente que aquilo tem de ter uma resposta. Porque o que eles querem é acabar com o Estado de Israel. E esse é que é o problema de fundo. Depois, haverá outras questões que se podem colocar em relação aos colonatos que têm sido estabelecidos na Cisjordânia e os disparates políticos do senhor Netanyahu. O senhor Netanyahu esteve debaixo de fogo durante nove meses, com manifestações da sociedade civil israelita, centenas de milhares de pessoas na rua…
E por isso mesmo há quem diga que está a aproveitar esta situação para fazer uma fuga para a frente?
Parece óbvio, ele está a fazer tudo para aproveitar esta situação, para se manter no poder. Mas isso é uma ilusão, o senhor Netanyahu não tem qualquer hipótese, mas neste momento essa não é a prioridade para Israel, a prioridade agora é defender o país daqueles que o querem destruir. Mas não há dúvida que o Sr Netanyahu só tem feito disparates e por isso os israelitas, que são um povo livre, fizeram-lhe uma contestação sem tréguas. Agora, as sondagens israelitas recentes dizem que a seguir à guerra, 70% dos israelitas dizem: este tipo tem de se ir embora. Ele vai ter de se ir embora.
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