Isabel Henriques de Jesus: “As mulheres deixaram de ser o objeto da literatura e passaram a ser o sujeito”

Além de dirigir a revista “Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher”, uma publicação científica semestral, Isabel Henriques de Jesus é coordenadora adjunta do projeto “Mulheres Escritoras no Tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo”, que pretende estudar mulheres que publicaram em volume entre 1926 e 1974.

A investigadora explica à Luz que já foram identificadas quase 700 autoras, mas que “não se sabia quase nada sobre elas”. E acredita que ainda há muitos outros nomes por desvendar.

Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís… são pouco mais os nomes de escritoras que ouvimos falar desde que somos crianças, principalmente em contexto escolar. As mulheres não gostam de escrever?
Respondendo à sua provocação, é evidente que as mulheres gostam de escrever tanto quanto os homens e a verdade é que elas sempre escreveram. Uma questão é que elas sempre tenham escrito, outra é que sejam visíveis. E aqui é que está o problema e é por isso que o nosso projeto é importante. Nós percebemos que, quando consultávamos todos os dispositivos de divulgação das obras literárias – como os dicionários ou as histórias da literatura –, praticamente todos os nomes que encontrávamos eram de homens. Uma vez, quando estava a trabalhar a escritora Graça Pina de Morais [1925-1992], dei-me ao trabalho de contar quantas vezes ela aparecia nesses dispositivos de divulgação. Quase nenhuma. Muitas vezes nem apareciam isoladamente, mas sim em conjunto com muitas outras. Eram numeradas. Mas não se sabia quase nada sobre elas. Quando eram referidas, eram sempre as parentes pobres. 

E o projeto “Mulheres Escritoras” nasce da urgência de recuperar estas escritoras.
Fazia todo o sentido criar um projeto para mudar isto. Depois de pensado, foi submetido à Gulbenkian, que aceitou. E continua. É um projeto que não é fechado e que tem o objetivo de tirar do subterrâneo todas as mulheres que nós sabíamos que escreveram. Tínhamos uma ideia de que havia muitas, mas não sabíamos quantas e quem eram. Conhecíamos, evidentemente, as mais canónicas, como disse há pouco, como a Sophia de Mello Breyner [1919-2004], que aparece nos manuais escolares. Todos conheciam uma Natércia Freire [1919-2004], uma Agustina [Bessa-Luís, 1922-2019], uma Fernanda de Castro [1900-1994]… Embora mesmo essas que já se conheciam, conheciam-se em profundidades diferentes.

E além dessa mão quase cheia, perceberam que havia muitas mais.
Chegámos à conclusão de que, para além desses nomes, há muitas outras escritoras em que nós tropeçamos a toda a hora quando estamos a fazer a pesquisa. Deparamo-nos constantemente com outras mulheres que nem imaginávamos. Vamos acrescentando e, com tempo, trabalhamo-las.

O projeto tem um horizonte temporal que vai desde 1926 até 1974. Portanto, Ditadura Militar e Estado Novo…
São elegíveis, para o nosso projeto, escritoras portuguesas ou de língua portuguesa, mas que até podem ter escrito para além do português, que tenham publicado nesse intervalo de tempo, em volume.

Porquê em volume?
Muitas destas mulheres, para além de escritoras – podem ter escrito só um livro – eram tradutoras ou jornalistas, que era muitas das vezes o seu ganha-pão. E, portanto, elas publicavam, muitas das vezes, textos que não em volume, isto é, publicavam em jornais, muitas delas. E apesar de consideramos isso importante, esse não é um critério elegível. Têm de ter publicado em volume durante estes anos.

São centenas de mulheres escritoras que o projeto identificou. Penso que mais de 600.

Neste momento, já identificámos quase 700.

O número choca? Estavam à espera?
Quando nós pensámos no projeto, não tínhamos ideia de que eram tantas. Sistematicamente deparamo-nos com nomes que nem sequer imaginávamos que existiam. Agora, se eu acho que o número ainda vai crescer? Sim. Quando mais se pesquisa, mais se vão encontrando. Não lhe sei dizer quando vamos conseguir acabar o projeto [risos], provavelmente nunca, porque há sempre a hipótese de aparecerem outras, evidentemente com relevâncias diferentes. Mas, acima de tudo, o nosso projeto preocupa-se, em primeiro lugar, com a publicação em volume. Não estamos numa fase de identificar a qualidade das obras, isso é para investigadores futuros. Estamos a fazer um serviço público, que é apresentar às pessoas este mundo. Depois, quem quiser, poderá explorar.

E quem são estas mulheres? De onde eram?
Umas das coisas que eu notei, com alguma curiosidade, foi encontrar em bibliotecas municipais, em vários sítios do país, mulheres que não eram conhecidas na Grande Lisboa ou no Porto. E as bibliotecas municipais identificam-nas. Mas o projeto não se limita nesta base de dados e da recolha das autoras. Tem havido muito trabalho na divulgação destas mulheres também do ponto de vista científico, através de colóquios e de seminários que trabalham estas autoras em particular. Houve vários. O projeto está sediado no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (ILET) e está ligado à Faces de Eva [revista feminina semestral] e aos CRILUS/UR Études Romanes, da Universidade Paris Nanterre. E também temos a parte da publicação. Penso que até ao final do ano será publicado um livro de ensaios sobre a Maria Archer [1899-1982]. O projeto é aberto. Mesmo as fichas de escritoras que ainda não estão completas, estão acessíveis a qualquer pessoa. Até porque pode acontecer haver pessoas que tenham mais dados sobre elas e que queiram acrescentar.

Tendo em conta o horizonte temporal, suponho que muitas delas tenham escrito, de alguma forma, sobre a sua “condição” de mulher, isto é, sobre a falta de liberdade, fosse no espaço público ou privado. 
Muitas delas escreveram sobre questões que lhes são mais subjacentes, que as preocupavam, como é natural. Os escritores escrevem sempre – podem ser questões mais filosóficas ou mais empíricas – sobre as suas preocupações. É natural que as preocupações das mulheres, naquela altura, fossem determinadas pelo tempo em que viveram. É muito interessante porque o que muitas fazem é, de alguma forma, romper esses constrangimentos que elas têm. Repare: escrever naquela altura era um ato de coragem. E penso que é aqui que se dá o grande salto: as mulheres deixaram de ser o objeto da literatura e passaram a ser o sujeito. Não só são autoras, como também são as protagonistas. As mulheres, muitas das vezes, apareciam nos romances como as acompanhantes dos grandes heróis. Elas estavam lá para apoiar os homens. E identifica-se alguma alteração neste paradigma.

E usavam pseudónimos?
Sim, muitas.

Serviam como uma forma de proteção?
É difícil dizer e não pensei muito nisso. Em muitos casos, são pseudónimos femininos. Há uma autora, por exemplo, que ando a trabalhar e que tem também pseudónimos masculinos, mas penso que seja por questões editoriais. Estou a falar da escritora Alice Ogando [1900-1981]. Aliás, ela faz tradução e aparece como tradutora dos seus pseudónimos, que são estrangeiros, mas que no fundo foi ela que escreveu! [risos]. 

Há diálogo com os leitores do projeto? Por ser aberto, como disse há pouco, pode existir um trabalho de equipa com a própria sociedade. Isso acontece?
Sim. Já nos aconteceu. Acontece principalmente depois das situações de maior visibilidade do projeto, como os colóquios ou congressos. Nestas situações, aparecem pessoas que têm informações sobre algumas escritoras. Mas não acontece tanto quanto desejávamos. Este projeto, embora nasça de um centro de investigação científica, pode ser apropriado de pessoas que saibam coisas que não seja necessariamente a nível científico.

Acha que ainda existe um desinteresse geral da sociedade por este ou outro projeto que tenha o objetivo comum de uma maior visibilidade das mulheres? Seja na literatura ou fora dela.
Possivelmente. Nós gostávamos que não existisse, mas possivelmente ainda existe, até porque são coisas que não são vendáveis. E nós sabemos como é que os órgãos de comunicação social são. Agora, e porque acho que era injusto se não dissesse, esta visibilidade maior das mulheres, neste momento, e das mulheres escritoras também se deve aos jornalistas. Tem havido alguns jornalistas a fazerem um bom trabalho sobre estas questões. E esse trabalho tem sido muito importante. Mas é preciso mais, naturalmente.

Lembro-me de que no ensino obrigatório foram poucas as mulheres que estudei. Já que falou do cânone, há pouco, pergunto: este é ainda feito pelos homens?
Eu acho que ainda existe um preconceito. E acho que ainda existe o argumento de que não se fala tanto das mulheres escritoras porque elas não tinham tanta qualidade. O cânone aparece de uma forma muito rígida na maior parte dos casos. Eu até posso aceitar que algumas escritoras possam não ter muita qualidade, mas não posso aceitar que os homens que aparecem tenham todos qualidade e elas não. Isto deve-se tudo ao facto de serem menos, isto é, de não terem sido tão conhecidas e é um preconceito que leva tempo a desaparecer. As mentalidades levam tempo a mudar. Durante muitas décadas as mulheres não apareciam no cânone e, portanto, não valia a pena serem trabalhadas nas aulas. Nem se conheciam quem eram. Agora, que se conhecem, é preciso que haja um trabalho. Por isso é que eu digo que o trabalho da investigação científica e dos jornalistas é muito importante.

E nas escolas existem professores e professoras mais atentas a esta questão.
Embora talvez não estejam nos programas, acho que existe alguma vontade das professoras e também dos professores, sim, de incluir escritoras para que os alunos as trabalhem. Agora, isto não é a maioria. A maioria não faz isto. Havia algumas razões que afastavam as mulheres da escrita e eu penso que ainda estão muito nítidas nas pessoas. Ou mesmo que elas escrevessem, não se considerava que era importante.

Eram desencorajadas.
E esse desencorajamento, possivelmente, faz-se agora para que elas não apareçam nos manuais. E a própria negação da autoria, como os pseudónimos que falávamos há pouco. Achava-se que as obras não tinham sido escritas por elas, porque elas não tinham essa capacidade. Depois, quando escreviam, havia sempre um desprezo da sua própria escrita. Era coisa de segunda categoria. De seguida, dava-se um isolamento da obra. E nunca mais se falava sobre isso. É muito interessante analisar aquilo que os críticos literários da altura escreviam. Às vezes, diziam qualquer coisa sobre as obras escritas por mulheres e, de seguida, caíam no esquecimento. Acho que há ainda outra questão muito pouco falada e que é preciso salientar: às vezes, quando as mulheres escreviam e saía de fora daquilo que supostamente elas podiam escrever causava escândalo. Era completamente escandaloso quando as mulheres escreviam sobre sexualidade, mas os homens já podiam. Um exemplo disso são as Novas Cartas Portuguesas [obra literária publicada conjuntamente pelas escritoras portuguesas Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa em 1972], que tiveram a história que tiveram. Por mais que não queiramos, há questões desta natureza que ainda continuam muito arreigadas. Levam tempo a mudar e têm de ser mudadas.

E a sociedade está a fazer esse caminho? 
Eu sou muito positiva. Eu penso que se está a fazer um caminho. E a investigação científica na literatura está a ter um papel importantíssimo. Estas coisas precisam de ser mudadas e as mulheres precisam de aparecer como autoras. Porque elas foram, são e continuam a ser.

E as mulheres, das letras e de outras áreas, têm acompanhado este projeto? Existe esse interesse?
Sinceramente, penso que não tem havido tanto quanto nós desejaríamos. O projeto também precisa de uma divulgação maior. Quando organizamos colóquios e eventos nos quais estão presente pessoas com responsabilidades nestas áreas, sim, temos um feedback muito positivo. Mas é um pouco como tudo, cai um bocadinho no esquecimento. Temos nós de ter a energia e a vontade para que ele continue a ser divulgado.

Qual seriam as escritoras que gostaria que fossem trabalhadas e estudadas no ensino obrigatório?
Eu não tenho muito conhecimento sobre os atuais programas. Lembrei-me agora da Natália Correia, por exemplo, que penso que não faz parte das autoras trabalhadas. Lembrei-me dela porque este ano faria 100 anos. Mas as Novas Cartas Portuguesas (NCP), certamente. Aliás, penso que há muitas pessoas nos dias de hoje a trabalhar nas Novas Cartas Portuguesas. Mas penso que era muito importante introduzi-las mais formalmente. A Maria Velho da Costa [1938-2020], que é uma autora difícil, seria importante. Penso que só se fala dela através das NCP, o que é uma pena, porque ela tem uma obra muito importante, assim como a Maria Teresa Horta. A [Maria] Isabel Barreno [1939-2016] também, embora noutro perfil. Acho que é um bocadinho injusto dizer quais é que deveriam ser trabalhadas. Não faria uma escolha muito rígida, preferia que falassem de várias.

Não adotar uma perspetiva tão individualista…
Exatamente. Dar a conhecer que elas escreveram, acima de tudo. Que elas estiveram presentes. E, claro, escolher algumas, mas isto compete aos professores do ensino obrigatório.