Presidente do STJ: “A corrupção está instalada em Portugal”

O presidente do STJ acusa os políticos de não quererem reformar a Justiça e lamenta que, desde o dia em que tomou posse e apesar das suas muitas propostas, não tenha mudado ‘nada’. Uma entrevista de Henrique Araújo ao Nascer do SOL para ler, ver e ouvir.

No dia 23 setembro, completaram-se 190 anos desde que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foi criado e instalado aqui, no Terreiro do Paço, na sequência da reforma da justiça originada pela revolução liberal que estabeleceu a separação de poderes. Quais foram os primeiros processos que aqui entraram?
Na área criminal, há um de 23 dezembro de 1833…

Ainda durante a guerra civil?
Sim, dois meses depois da instalação do Supremo. O acórdão tem quatro linhas (por isso, já se adivinha o interesse que possa ter) e limitou-se a devolver os autos à Relação de Lisboa, para esta decidir os embargos que foram propostos.

Esse acórdão, nos dias de hoje, faz inveja a muita gente.
Sem dúvida. Aos olhos de hoje, era uma fundamentação absolutamente insuficiente. Agora, peca-se por excesso. O segundo também é um acórdão sem grande interesse, mas o terceiro, de 7 de outubro de 1834, é curioso porque toca precisamente nas questões e feridas abertas pela revolução liberal. Referia-se a um preso a quem a Relação de Lisboa aplicara a lei de amnistia do decreto de 27 de maio de 1834, mas em que o Supremo entendeu que não devia tê-lo feito porque o beneficiado fazia parte das hostes do ‘usurpador’ (D. Miguel, portanto). E anulou o processo da Relação.

No discurso que fez durante a cerimónia de celebração dos 190 anos, perpassa uma mensagem sombria. Tem, aliás, alguns pontos em comum com o discurso do Presidente da República no 5 de Outubro. Não sei se combinaram!?
(risos) Não, não combinamos, poderá é haver sintonia de posições em relação a muitas e certas matérias. Isso, acho que há.

Disse que, da parte da Justiça, há um clima de desânimo, na sociedade e na opinião pública há indiferença e por parte dos políticos (que têm o dever de mudar as coisas e tomar medidas) há desinteresse e inação. Parece mesmo concordar com o Presidente quando diz que ou se tomam medidas para mudar as coisas ou alguém as tomará por nós…
Tanto nos discursos que tenho feito pela abertura dos anos judiciais, como nas outras intervenções ao longo do meu mandato, tenho falado em várias questões que me afligem. Porque o que eu quero é que a Justiça funcione bem, em benefício dos cidadãos e da sociedade. E, realmente, tenho assinalado alguns problemas que se mantêm e que, sinceramente, não vejo que haja por parte dos responsáveis políticos a vontade de alterar alguma coisa. Quero dizer, no entanto, que a senhora ministra da Justiça, com quem tenho uma relação institucional excelente, é uma pessoa de diálogo, tem vontade de alterar a situação e quer resolver os problemas. Mas sinto que há algo que a transcende e que poderá estar a impedi-la de levar a cabo algumas das coisas que gostaria. Enfim, penso que o problema reside num aspeto que é central: a Justiça não é uma prioridade para o poder político. E quando falo em poder político não falo ao nível de ministros, refiro-me a nível dos partidos com representação no Parlamento e a nível de quem detém o poder executivo.

Aliás, este Governo tem maioria absoluta e, portanto, todas as condições para fazer uma reforma.
Era isso que eu esperava e que esperavam todos os que estão no terreno. Pensávamos que, com a estabilidade política, estavam criadas as condições para serem feitas as reformas que são extremamente necessárias. E são necessárias, nomeadamente, em três aspetos principais: organização do próprio sistema, funcionamento e financiamento.

Sem independência financeira, como é que um tribunal pode ser independente?
Exatamente. Em termos de organização, penso que seria de aproveitar um estudo notável que foi feito pela SEDES e que consta de um relatório apresentado em 2021. Os aspetos que constam nesse estudo deviam ser explorados pelo poder político, no sentido de se estabelecerem consensos em relação à organização judiciária.

Pode apontar alguns?
Alguns deles têm que ver com a Constituição e deveriam ser alterados. Por exemplo, continuo a achar, muito sinceramente, que não faz sentidos termos tribunais administrativos com uma ordem jurisdicional diferenciada. Nem faz sentido, apesar de ter sido aprovado muito recentemente  a lei orgânica do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, haver outro conselho superior (para além do Conselho Superior da Magistratura judicial). É a minha opinião, não compromete mais ninguém, nem o Conselho Superior de Magistratura, nem os juízes. É evidente que isto não é um assunto pacífico, mas a minha opinião é a de que só traria vantagens. Tal como estamos, duplicamos despesas, meios e energias, quando temos um Conselho Superior da Magistratura que, neste momento, dá resposta com eficiência total aos problemas da Justiça. Repare que temos dois mil juízes, muitos tribunais espalhados pelo país que funcionam todos os dias e não há qualquer quebra no funcionamento. As pessoas podem recorrer aos tribunais porque estão sempre a funcionar. Há uma gestão que tem sido bem-feita apesar da escassez de juízes!

A justiça penal vai andando, enquanto na administrativa, se eu colocar uma ação, sou capaz de ficar duas décadas à espera até ver o desfecho final…
Tem razão. Deveria haver só um conselho e a parte de gestão administrativa podia ser tratada pelo STJ, como acontece em muitos países europeus e não só, com bons resultados. Em termos de funcionamento, o estudo da SEDES refere aspetos sobre a forma como são geridos e supervisionados mecanismos como as plataformas eletrónicas de tramitação processual (que continuam na dependência do Ministério da Justiça, o que eu acho errado) e depois também a questão financeira.

Os tribunais não têm autonomia financeira e, há cerca de um ano, apresentou uma proposta de alteração legislativa que não teve qualquer eco.
Aí, o problema é mais profundo. O poder judicial é um poder separado do Estado. Por isso, tem de se estabelecer também o princípio da separação orçamental e de uma forma completamente diferente da que temos. Quem fornece os meios aos tribunais é o Ministério da Justiça – e isto está errado. Tudo deveria estar concentrado no CSM. O Orçamento do Estado deveria atribuir uma verba ao CSM, que este deveria poder supervisionar. Só assim é que se pode falar em completa separação de poderes. O poder judicial não pode ser escrutinado no sentido em que não responde àquilo que os cidadãos esperam dele se não é o próprio poder judicial que controla os meios para dar essa resposta.

O seu recente discurso na celebração dos 50 anos do Tribunal da Relação de Évora foi igualmente sombrio. Disse que já por várias vezes identificou «a longa lista de problemas» da Justiça, mas que, no caso das Relações, «não existe nenhum avanço, nenhuma iniciativa, nenhum sinal de atenção por parte de quem tem a legitimidade democrática e a responsabilidade política para agir». E, de facto, temos desembargadores com uma experiência muito rica, que vão abandonando os tribunais da Relação. A que se deve essa desmotivação?
Deixe-me apenas desconstruir a ideia de que a minha perspetiva é sombria. Eu sou uma pessoa positiva, só refiro os aspetos mais sombrios do sistema porque são esses que me afligem. E o nosso sistema tem aspetos muito bons, sendo um deles a total independência com que os juízes decidem, que é algo absolutamente notável. Além disso, ao contrário do que as pessoas possam pensar, a forma de eleger os presidentes das Relações e de nomear os juízes é absolutamente exemplar. Há poucos exemplos destes na Europa. Esse meu lado mais sombrio aparece naqueles momentos em que sinto por parte dos colegas algum desânimo. Eu fui desembargador e presidente da Relação do Porto durante 2 anos e meio, sei o que é trabalhar sem qualquer apoio. O presidente da Relação não tem assessorias, tem apenas uma secretária que o ajuda no trabalho administrativo mais básico. Se, de repente, surgir uma questão de direito administrativo ou outras questões mais complexas em termos financeiros, não tem qualquer apoio. E, no entanto, há mais de 20 anos que foi publicado um decreto-lei que concedeu autonomia administrativa e financeira aos tribunais superiores. Foi dito que essa lei entraria em vigor no prazo de 120 dias, mas até hoje não se fez nada. Por isso, percebo muito bem que os desembargadores se sintam muito desanimados, pois o trabalho que têm para decidir os recursos, ao nível da impugnação da matéria de facto, é absolutamente ciclópico. Também sei o que é estar horas e horas a ouvir gravações áudio (porque as salas de audiência ainda não têm gravação vídeo, o que também não se percebe…). O trabalho que os desembargadores têm a rastrear e a reavaliar a prova é um trabalho incrível, de sofrimento. Porque não estão a ver as testemunhas, estão a ouvi-las. E também não tem assessores, trabalham sozinhos. Por isso é muito natural que, mal atingem os requisitos para a jubilação (habitualmente, aos 65 anos), nem pensam duas vezes. Podiam ficar até aos 70 anos, mas não querem, pois estão absolutamente exaustos.

As Finanças do Estado, os impostos, a saúde e a escola pública concentram há muito tempo as atenções do país. Os professores estão descontentes, os médicos estão descontentes, mas da Justiça não se diz nada, parece que está tudo bem…
Não, na Justiça não está tudo bem. Como já disse, há muitos aspetos a melhorar, mas é preciso que a Justiça seja uma prioridade. Por exemplo, na questão dos megaprocessos e na das alterações das leis processuais, há imenso trabalho para fazer, mas eu tenho a certeza de que a Justiça não é uma prioridade. E até certo ponto compreendo porque, neste momento, nós vivemos numa ditadura da economia: a economia é que comanda e dita quais são os termos da intervenção do poder político. E, quando falo de economia, estou a referir-me ao Ministério das Finanças. Há sempre esse travão que impede que se possa fazer mais alguma coisa. O país não tem recursos por aí além, mas a Justiça tem de ser vista como algo absolutamente fundamental para o desenvolvimento do país, para a liberdade e proteção das pessoas. Eu sei que a ministra da Justiça tem vontade de mudar de agulha, mas esbarra sempre com o problema do dinheiro.

Um governante não pode ficar apenas pela boa vontade!
Claro. Aliás, aquilo que sobra à ministra da Justiça em vontade falta depois em termos de realização e eficiência. Mas o problema poderá transcendê-la.

Ficou surpreendido com o âmbito da amnistia decidida para celebrar a vinda do Papa a Portugal?
De forma geral, inscreve-se no âmbito das amnistias que costumam anteceder uma visita papal ou outro acontecimento de relevo. Só me surpreende um aspeto e pela negativa: a amnistia das infrações disciplinares que correspondem a penas de suspensão (e estou a falar apenas na questão que diz respeito ao CSM e aos processos disciplinares que tínhamos em relação a juízes que cometeram infrações graves e muito graves). Esta lei, ao amnistiá-los, apagando essas infrações, está a dar um péssimo sinal à sociedade e para nós juízes isso também não é bom. Somos 1.928 juízes em exercício, mas basta que um tenha um comportamento negativo para que toda a sociedade deixe de acreditar no sistema. Basta um! Porque a sociedade considera os tribunais ainda como o último reduto da defesa dos seus direitos e, apesar de tudo o que se diz de negativo, confia neles e nos juízes. Todos nos lembramos do caso Operação Lex. Tivemos ultimamente dois ou três casos muitíssimo graves de atuação de juízes que mereceram penas graves e que destruíram a imagem dos tribunais.

Quantos inquéritos foram arquivados por via da amnistia?
Nove casos de infrações graves e muito graves. É pouco, mas é muito significativo por causa dessa confiança que continua a haver por parte da sociedade.

A greve dos funcionários judiciais está neste momento suspensa (por causa das negociações entretanto em curso), mas durou quase um ano. Que efeitos teve?
É uma das situações que mais me preocupam neste momento. Foi entregue uma proposta de estatuto aos sindicatos e espero que possa haver uma solução para breve que seja compatível com os interesses dos senhores funcionários, que têm razão em muitíssimos aspetos (ou quase todos), o que seria bom para o funcionamento dos tribunais. O dano provocado por esta greve já é muito superior àquilo que resultou da pandemia. Temos aqui situações que só vão ser recuperáveis, talvez, ao longo dos próximos dois anos. Esta é uma das situações que não compreendo e uma das críticas que faço ao Ministério da Justiça: já poderia ter sido encontrado, independentemente da aprovação ou não do estatuto, um ponto de equilíbrio. Os funcionário judiciais são pessoas que se esforçam mesmo para que os tribunais funcionem bem e não merecem este longo tempo em que não lhes foi dada uma luz de esperança.

Quais são, atualmente, os grandes estrangulamentos na Justiça?
São as leis de processo, civil e penal. Neste, em particular, é necessária uma clarificação urgente sobre a fase de instrução. A fase de instrução não deve servir para aquilo a que assistimos nalguns processos mais mediáticos, uma espécie de pré-julgamento, em que são ouvidas dezenas de testemunhas, de uma forma absolutamente inaceitável. Aliás, o CSM criou no último plenário um grupo de trabalho para fazer um estudo de alterações ao Código de Processo Penal, designadamente, no âmbito da fase de instrução, para depois ser enviado como proposta de alteração legislativa.

Já fez tantas propostas de alteração de legislação, por acaso teve alguma resposta da ministra da Justiça?
Pois é, o problema é esse! É que estas propostas de alteração são enviadas para o Ministério. Por exemplo, o trabalho que foi feito e que é conhecido como o das ‘portas giratórias’ (nomeação de juízes para cargos fora dos tribunais), foi enviado em março deste ano. Mas há outros que continuam em análise no Ministério, provavelmente por já não existirem gabinetes de estudos.

Não será antes indiferença ou mesmo má vontade?
Não sei, talvez. Eu sinto que, no diálogo, há abertura para tratar dos assuntos, mas depois, de facto, não vejo realizações nem sinais claros de que vai ser feita alguma coisa. Mas não podemos deixar de fazer esse trabalho, pois nós somos a parte que tem mais interesse em que o sistema funcione.

A Associação Sindical dos Juízes Portugueses fez também propostas concretas para uma reforma estrutural da Justiça, editadas até em livro, e já na altura o senhor disse, depois de elogiar a obra, que duvidava bastante que houvesse resposta do poder político. Afinal, parece que não acredita mesmo nos principais responsáveis do Ministério da Justiça!
Como lhe disse, acredito na vontade e sei que a vontade existe. Não em todas as matérias, obviamente que não. Sei que em relação aos edifícios, por exemplo, e à autonomia administrativa e financeira, existe essa vontade. O que não se vê são os resultados. Sou uma pessoa otimista por natureza, mas, como vejo que não são obtidas as realizações correspondentes àquilo que é preciso fazer, nos momentos em que me é dado tempo para falar desses assuntos, tenho de as assinalar, para que não caiam no esquecimento. Poderá dizer, ‘mas então não se pode fazer nada’? Claro que sim! E há coisas que podem ser feitas muito rapidamente, mas não podem ser feitas apenas pelo Ministério da Justiça. O Parlamento também tem responsabilidade. No debate parlamentar não se vê a Justiça como uma prioridade. Isso é notório.

E por que será? Acha que alguns processos mediáticos, que têm atingido alguns setores políticos, é que provocam essa falta de vontade para alterar a legislação? Há por aí gente muito vingativa…
Não sei qual é a razão. Sei – e isso é um facto, basta assistir aos debates parlamentares – que a Justiça não faz parte das prioridades. E há aspetos que são muito simples de resolver. Por exemplo, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que é interposto sistematicamente por quem tem capacidade económica para recorrer ao Tribunal Constitucional: tem efeito suspensivo e isso não pode ser assim. É facílimo de alterar para efeito devolutivo. O que é que isto custa? Dá-me ideia de que não há interesse em que a Justiça funcione bem. A Justiça não pode ser bode expiatório para ninguém. É claro que eu continuarei a pregar para o deserto.

Vamos comemorar os 50 anos do 25 de Abril e continuamos a ter uma Justiça a duas velocidades: uma para ricos e outra para pobres.  Não há nenhum processo com um arguido famoso que se resolva rapidamente.
A questão da morosidade prende-se mais com a criminalidade económico-financeira – é aí que, realmente, há grande dificuldade. Em primeiro lugar, porque a investigação é extremamente difícil. A possibilidade que hoje existe, por exemplo, de transferir quantias avultadas para offshores e para agências bancárias internacionais dificulta muito a investigação. Em segundo lugar, há questão da cooperação internacional, que precisa de mais diplomacia por parte dos agentes judiciais portugueses. Se houvesse uma pressão diplomática por parte dos nossos magistrados em relação ao cumprimento dos tratados internacionais de cooperação e colaboração das instituições europeias, acho que se obteria uma resposta mais rápida. Há cartas rogatórias que estiveram meses ou anos para serem devolvidas.

A Operação Marquês não se arrastou mais tempo porque foi usada essa diplomacia.
Exatamente.

E, no entanto, a investigação iniciou-se em 2013, a primeira carta rogatória chegou apenas em 2015 – o que abriu outra vertente na investigação relacionada com o envolvimento do BES. A carta rogatória que envolvia Helder Bataglia só foi respondida e chega em 2016. E a PGR, pelas mesmas razões, por duas vezes, aceitou o pedido dos magistrados para prolongar o prazo para elaborarem a acusação. Por isso, quando alguém fala em acabar com os megaprocessos, não sei muito bem como…
Quando há intervenção de entidades estrangeiras, mesmo no espaço europeu, há muita dificuldade em a investigação prosseguir a bom ritmo. Mas não é só aí que há problemas. Quem tem capacidade económica para fazer arrastar os processos nos tribunais consegue-o. Se tiver escritórios de advogados tecnicamente muito dotados, que conhecem bem os mecanismos e as possibilidades de fazer retardar o processo aqui ou ali, através de incidentes ou de recursos, consegue isso. Mas isso é na criminalidade económico-financeira.

O presidente da Associação Sindical de Juízes, Manuel Ramos Soares, criticou que fosse possível um advogado colocar 20 incidentes de escusa de juiz no mesmo tribunal – que, por acaso, era o STJ.
A lei processual permite isso. Portanto, é preciso fazer alguma coisa! Os expedientes dilatórios de que eu tenho falado sistematicamente, o excesso de garantias a que me referi várias vezes. Não são as garantias constitucionais. Porque essas estão lá, e muito bem. Agora, garantias processuais de defesa que acabam por redundar nestes atrasos são incompreensíveis para o cidadão. Mas os tribunais têm de as aceitar porque é o que a lei diz.

Ou seja, para acabar com isso, só legislando?
Claro. Há que legislar e simplificar. E há acima de tudo que instituir maior oralidade nos julgamentos, tanto nos processos da área cível como na área penal, sobretudo nestes. E o juiz tem de ter capacidade de poder decidir incidentes mais banais, chamemos-lhes assim, de uma forma também menos fundamentada, mais simples. Isto leva-nos ao que falamos há pouco sobre a fundamentação do primeiro acórdão que chegou ao STJ, que tinha quatro linhas. Hoje em dia, um acórdão tem 40, 50 ou 80 páginas porque a exigência de fundamentação é completamente extraordinária. E depois – a verdade também tem de ser dita – há juízes que exageram na fundamentação e ainda existem muitos juízes com uma grande preocupação em mostrar erudição, o que não interessa de todo à Justiça. O que interessa para a Justiça é que a decisão seja percetível para o cidadão.

Às vezes, são preferíveis os provérbios. Há um muito interessante que é aquele que diz “quem cabritos vende…” e “cabras não tem”…

“… de algum lado…”

“… lhe vem”.

O senhor presidente prefere este tipo de linguagem, mais direta?
Sei ao que se está a referir (risos), mas não vou comentar.

[O provérbio vinha citado num dos acórdãos da Relação que decidiu um recurso do processo Marquês.]

Já defendeu publicamente a criação do crime de enriquecimento ilícito. Quer dizer que o que foi aprovado em 2021, que altera a legislação sobre as obrigações dos políticos e titulares de altos cargos públicos nas suas declarações de património não é suficiente?
Acho que o enriquecimento ilícito  justificado seria um bom instrumento para combater o fenómeno da corrupção que está instalada em Portugal e que tem uma expressão muito forte na administração pública. Isto não é uma simples perceção, é uma certeza! E o que tem sido usado para a combater não é suficiente. Sabemos que os casos de corrupção têm aumentado e, apesar de a investigação a este tipo de criminalidade ter aumentado, os resultados ficam muito aquém daquilo que se sabe que existe. O enriquecimento ilícito não injustificado, no meu ponto de vista, faz sentido e é possível criá-lo, mas é preciso contornar obstáculos de ordem constitucional. A convenção das Nações Unidas contra a corrupção, já em 2023, instituiu esse ilícito sem prejuízo dos ordenamentos jurídicos se compatibilizarem ou não com ele. Em Portugal, não se tem compatibilizado porque os acórdãos do Tribunal Constitucional, de 2012 e 2015, nas duas únicas tentativas de criação da tipicidade do crime, consideraram isso inconstitucional. Mas eu acho que se deveria continuar a trabalhar nesse tema, inclusivamente através das declarações de voto que foram expressas nesses dois acórdãos e também através de uma declaração de voto vencido, no acórdão de 2012. O Tribunal Constitucional recusou aprovar a lei por duas questões: a presunção da inocência e por entender não estar identificado o bem jurídico a proteger pelo tipo de crime. Mas a verdade é que a lei geral tributária também tem presunções (bem sei que todas elas podem ser contrariadas, mas têm sempre) e, quando o património é muito superior àquilo que é declarado, fazem uma ilação indireta do património – e nunca vi cair o Carmo e a Trindade por causa dessa situação. Porque é a Autoridade Tributária que o faz, claro. Todos os instrumentos que tivermos para combater a corrupção nunca serão suficientes. É um fenómeno que está enraizado na nossa cultura e é muito difícil exterminá-la.

É como as cabras, não é verdade?
Sim.(risos)

Voltando ao tema das ‘portas giratórias’: como vê os advogados que exercem diariamente nos tribunais e são deputados, participando na elaboração de leis? E juízes em clubes e organizações desportivas ou juízes que entram e saem do Governo?
Tenho uma posição muito radical nessa matéria. Acho que quem escolhe a magistratura deve manter-se magistrado até ao fim da sua vida profissional. Esta minha posição de princípio esbarra com outras sensibilidades e, quando se tem uma posição tão radical como eu, tem de se estar aberto a algumas nuances. No CSM, foi criado um grupo de trabalho, chegámos a uma situação de compromisso que deu origem ao projeto de alteração de estatuto dos magistrados judiciais e que se pode resumir a isto: o magistrado pode exercer cargos políticos ou públicos, mas, para esse efeito, tem de pedir uma licença sem vencimento ao CSM. Faz o seu trajeto político ou público por um período máximo de 12 anos e, quando regressar, se for juiz conselheiro, por exemplo, vai para a secção de contencioso durante três anos; se for juiz desembargador, assessora juízes conselheiros e, se for juiz de primeira instância, assessora juízes desembargadores. Tudo isto durante três anos que é considerado o ‘período de nojo’. A proposta está feita, vamos esperar que tenha seguimento.

Preside ao STJ (e ao CSM, por inerência) há 2 anos e meio. O que mudou na Justiça de verdadeiramente importante desde que aqui chegou?
O que mudou eu posso dizer-lhe: nada! Piorou a distribuição de processos eletrónica, que é uma autêntica originalidade portuguesa: obrigar a estar diariamente numa sala, a olhar para um ecrã, um magistrado judicial, um magistrado do MP e um funcionário; os advogados podem ir ou não, é conforme queiram. Isto não existe em mais nenhuma parte do mundo. Mais original ainda é essas três pessoas estarem numa sala à espera que o algoritmo criado e produzido pelo Ministério da Justiça diga qual é o resultado da distribuição. Ou seja, não há nenhuma interferência por parte do poder judicial na distribuição processual, o que é inadmissível! E radica num princípio perverso que é o de haver desconfiança em relação aos juízes por parte de alguns responsáveis da política nacional, porque são eles que fazem as leis.