O Presidente da República tem nas mãos um decreto-lei do Governo para promulgar, que está sob suspeita na Operação Influencer. O projeto do decreto – que foi até referido por António Costa na sua comunicação ao país no sábado passado e é normalmente designado como ‘Simplex Industrial’, por simplificar os procedimentos dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria – foi elaborado por João Tiago Silveira, antigo secretário de Estado socialista e atual advogado numa das maiores sociedades do país, que é arguido na Operação Influencer por suspeita do crime de prevaricação.
Os factos em causa, ocorridos em outubro, envolvem Tiago Silveira, João Galamba, Afonso Salema, CEO da Start Campus, e o administrador Rui Oliveira Neves. No despacho de indiciação, o Ministério Público relata, com recurso a escutas telefónicas, como, nas vésperas do Conselho de Ministros em que o ‘Simplex Industrial’ ia ser discutido e aprovado, os responsáveis da Start Campus foram instados por Galamba a enviar-lhe propostas para incluir no diploma, que possibilitassem o desenvolvimento do megaprojeto de data centers que a empresa está a construir em Sines. O pedido para fazer estas alterações de última hora chegou a Tiago Silveira – advogado na mesma sociedade de Rui Oliveira Neves, a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados -, que, segundo as escutas telefónicas, acedeu fazê-las. As alterações ainda chegaram a João Galamba, mas demasiado tarde: o Conselho de Ministros já estava a decorrer e ele não conseguiu aprová-las.
‘Suspeita inultrapassável, PR deve vetar’
«Este decreto-lei está sob uma suspeita inultrapassável. O Ministério Público documentou, a partir de escutas telefónicas, uma enorme permeabilidade do Governo, a começar por João Galamba, e do responsável pelo Grupo de Trabalho para a Reforma dos Licenciamentos, João Tiago Silveira, para fazerem regras à medida de interesses particulares. Esta suspeita é pública, está documentada, e exige, só por si, que o Presidente vete o diploma. Independentemente de os factos alegados virem ou não a ser provados, um decreto-lei que nasce sob suspeita mancha a autoridade do Estado e não pode ser promulgado enquanto a suspeita persistir. A mais básica prudência na defesa do interesse público aconselha o veto político», defende João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica e consultor em políticas de anticorrupção.
O especialista vai mesmo mais longe, considerando que, «mesmo que esta suspeita não existisse, o decreto-lei deveria ser vetado», até porque «a queda do Governo está diretamente ligada a suspeitas relativas ao licenciamento de projetos industriais, o que torna mais ilegítimo o diploma».
Mas há outras razões, segundo Batalha. «O Governo que elaborou o decreto-lei está demissionário e um Governo demissionário não deve legislar (mesmo que, por escolha do Presidente da República, estejamos hoje a viver uma ficção jurídica e constitucional, em que um Governo demitido se mantém com plenos poderes, por conveniências de agenda»). Além disso, «o primeiro-ministro citou especificamente este decreto na comunicação e na conferência de imprensa» de sábado passado, em que procurou justificar os factos sob suspeita neste processo.
Por outro lado, «é perfeitamente natural que, face às circunstâncias que ditaram a demissão do Governo e a convocação de eleições antecipadas, um futuro Executivo queira ter a liberdade de rever este decreto e alterá-lo».
O dirigente da Frente Cívica aponta ainda um outro problema a esta legislação que o PR tem para promulgar: «Este decreto-lei sofre do mesmo pecado original que atravessa muita da legislação mais relevante em matérias de grande valor económico em Portugal, desde o urbanismo e ordenamento do território ao licenciamento de atividades económicas, cuja elaboração é subcontratada a um grande escritório de advogados, cujos conflitos de interesses, reais, potenciais ou aparentes, são impossíveis de identificar».
E acrescenta:
«As grandes sociedades de advogados são verdadeiros poderes acima do poder em Portugal. São simultaneamente litigantes (nos tribunais), legisladores (através de contratos para a elaboração de estudos e projetos legislativos) e lobistas. Sociedades como a Morais Leitão têm uma presença transversal nas várias áreas de intervenção do Estado, assaltando até a própria noção de separação de poderes. Dado que os seus clientes particulares e os serviços que lhes são prestados estão protegidos por sigilo, é impossível escrutinar se a legislação está a ser feita em defesa do interesse público ou ao serviço dos interesses privados dos clientes particulares da sociedade de advogados». Para Batalha, a conclusão é simples: «O poder político, incluindo sucessivos presidentes da República, tem sido demasiado complacente com legislação produzida debaixo desta mancha de opacidade, que tem configurado uma verdadeira captura silenciosa do Estado».
‘O espírito é aceitar’
Segundo os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que lideram a investigação Influencer, estamos perante um «plano criminoso», urdido, entre outros, pelo melhor amigo do primeiro-ministro, para conseguir do núcleo duro do Governo tratamentos de favor que viessem a beneficiar o grupo empresarial do data center de Sines. Aliás, vários diplomas terão sido aprovados nesse sentido, e o ‘Simplex industrial’ era mais um.
Antes de ser submetido a Conselho de Ministros, o diploma foi preparado por um grupo de trabalho constituído pelo Governo e presidido pelo mesmo João Tiago Silveira, que incluía o Ministério do Ambiente e a Secretaria de Estado para a Modernização Administrativa.
Segundo o MP, em outubro passado, sabendo que o regime legal estava em vias de ser aprovado em Conselho de Ministros, João Galamba terá tido a iniciativa de propor a Diogo Lacerda Machado (amigo de António Costa e advogado contratado pela Start Campus) a introdução no diploma de disposições legais que abrangessem os data centers. Nas escutas com que os arguidos foram confrontados, Galamba solicitou a Lacerda Machado que lhe enviasse uma informação com as normas de que poderia beneficiar a atividade de data centers, para as inserir no projeto de diploma. E pediu muita celeridade.
Com a mensagem a circular, os telefonemas entraram num rodopio. Era uma corrida contra o tempo, pois tudo se decidiria daí a uma semana, no Conselho de Ministros de 19 de outubro de 2023. Logo após a conversa entre o ministro das Infraestruturas e Diogo Lacerda Machado, a 12 de outubro, o CEO da Start Campus, Afonso Salema, coloca Rui Oliveira Neves, administrador da empresa e colega de Tiago Silveira na sociedade de advogados, a par da oportunidade que se abria: «Diogo disse que falou com o Galamba e que aprovaram agora em Conselho de Ministros a criação do Simplex de licenciamento para infraestruturas industriais de plataformas logísticas». O outro, claro, já estava ao corrente: «É o João Tiago Silveira que está a fazer esse regime…Vou já falar com ele!».
No dia seguinte, 13 de outubro, uma sexta-feira, Rui Neves liga a Tiago Silveira, dizendo-lhe que, no diploma que está a ser finalizado, tem de contemplar o data center. «Sim, mas para hoje é difícil», responde Silveira. Porém, o administrador da Start Campus puxa de um trunfo de peso: «O Galamba está a pedir para hoje!».
O diálogo prossegue. Tiago Silveira está por dentro de tudo. Remata: «O Galamba em Conselho de Ministros falou em aplicar o regime das dispensas de loteamentos, dispensa de procedimento administrativo, mediante parecer não vinculativo da Câmara, que na prática dispensa tudo. Na prática, emitem um parecer e ou é seguido ou não (…) À partida é uma coisa muito fácil de pôr lá, já não é fácil aceitar, mas o espírito neste momento é aceitar (…). Não faço outra coisa nos últimos dias a não ser tratar disso!».
A conversa decorre com naturalidade, como se o Estado de Direito não estivesse em causa. Tiago Silveira remata: «Estive com o Costa quatro horas a ver isto na quarta-feira e o gajo está completamente entusiasmado com isto. (…) O espírito é acabar com a maluqueira que as câmaras inventam, o espírito é positivo».
Conferência telefónica com outra peça-chave
A dupla fecha o diálogo depois de combinarem uma conferência telefónica com outro elemento da Start Campus que reuniria a informação para um memorando que servisse de base ao articulado do diploma nas mãos de Tiago Silveira, sendo que este último ainda remata: «Não fiquem preocupados, que sou eu quem vai decidir!».
Mas a responsabilidade de reunir a documentação necessária para enviar a Galamba fica nas mãos de Nelson Magalhães, chefe de recrutamento da empresa (conhecido por ‘caçador de cabeças’). O documento a entregar é cozinhado entre este último e Rui Neves, que quer meter pela janela o que não entra pela porta: «A lógica é dizer assim: se for por entidades públicas, ainda que para projectos privados, fica simplificado».
Mas só na véspera do Conselho de Ministros é que Magalhães enviará o memorando para João Galamba. No dia seguinte, a notícia de que perderam o comboio cai no grupo empresarial de Sines como uma bomba. Afonso Salema, numa conversa com Manuel Macedo dos Santos, CFO da Start Campus, mostra a sua indignação: «O Nelson demorou muito tempo a responder a uma m… pedida a semana passada que era para o Galamba, e mandou ontem à noite ao Galamba, mas o Galamba disse que já mandou tarde demais, ‘já foi’, era para hoje».
Em declarações ao jornal Eco, Tiago Silveira confirmou que foi constituído arguido, também no dia 7 de novembro, e afirmou: «Guardarei os meus comentários para a sede e momento próprios, se e quando me confrontarem com factos concretos. Perante o ruído que se tem instalado e antes que suspeitas sem contraditório se consolidem na opinião pública, quero deixar muito claro o seguinte: ao longo da minha vida profissional, nunca confundi o exercício de funções públicas e de funções privadas, em particular da profissão de advogado. Mas há uma nota comum em toda a minha carreira, no setor público e no setor privado: a honestidade e o estrito respeito pela legalidade».
Se o decreto-lei fosse aprovado, os arguidos poderiam ser ilibados, pois a lei prevê a aplicação do diploma que lhes é mais favorável.