Adalberto Campos Fernandes. “Presidente da República e primeiro-ministro têm de fazer um pacto de silêncio”

Foi ministro do 1.º Governo de António Costa e é um dos mais ativos apoiantes de José Luís Carneiro. Diz que o país precisa de uma condução segura e não de aventureirismos e, se for preciso, o PS tem de falar com o PSD.

Por que razão apoia José Luís Carneiro?
Porque foi um impulso baseado na confiança. José Luís Carneiro é um homem que inspira confiança, não só aos militantes e aos quadros do partido, mas ao país. Na situação que nós vivemos hoje, com uma enorme dificuldade conjuntural – estamos a viver uma crise política, é preciso não esquecer isso, estamos a entrar num período que do ponto de vista económico não nos traz grandes notícias, nem grandes perspetivas para o futuro -, a última coisa de que o país precisa para resolver a crise política e encarar o futuro é de voluntarismo, precipitação e impetuosidade. José Luís Carneiro traz-nos exatamente aquilo que nós achamos que o país precisa: estabilidade, temperança e bom senso.

E os adjetivos negativos que usou aplicam-se a Pedro Nuno Santos?
Não vale a pena iludir as questões. Todos nós somos reféns daquilo que somos, da nossa natureza, das nossas características, do nosso passado, da nossa biografia. E temos, naturalmente, o direito legítimo de ser como somos. E também nós, os que estamos de fora e que escolhemos, temos a liberdade de escolher aqueles que nos representam melhor. Nós escolhemos os líderes em função do nosso sentido do propósito, da missão, da visão que temos do país. E, portanto, naturalmente que nesta disputa interna no PS existem muitas pessoas que reconhecem no Pedro Nuno Santos as melhores qualidades para servir o partido e o país. E existem outras, como eu, que acham que é o José Luís Carneiro.

Mas acha que é uma questão só de características pessoais, ou é a opção entre um candidato da direita do PS, José Luís Carneiro, e um candidato da esquerda, Pedro Nuno Santos?
Isso é uma ratoeira perigosa e que, aliás, eu não vejo nenhuma vantagem em que seja alimentada. O PS, desde o momento da sua fundação, é um partido que se encontra no terreno da moderação e que vai do centro à esquerda.

Mas não acha que nos últimos tempos o PS está a renegar esse passado mais moderado?
Sabe que o PS é um partido fundador da democracia e nunca conseguirá, em nenhum momento, seja qual for a liderança, renegar aquilo que é o seu passado, que vem das mãos dos seus fundadores, em particular de Mário Soares. O PS será sempre o partido da liberdade, da democracia e da Europa.

Mas estamos ou não numa batalha entre o centro e a ala mais a direita do PS e uma ala mais à esquerda?
Eu não colocaria as coisas em termos de batalha, talvez abordar de uma outra forma. Qual é a matriz ideológica do partido? Qual é historicamente o seu posicionamento? Qual tem sido o seu alinhamento em termos nacionais e internacionais? Não me parece que quem defende a liberdade, a pluralidade, a estabilidade política e a moderação, quem defende o alinhamento com os valores da Europa, a integração europeia, o seu aprofundamento e até a visão atlântica que Portugal tem, esteja a renegar seja o que for naquilo que é a tradição fundacional do partido. Outra coisa é dizer se taticamente uma determinada conjuntura conduziu a uma política de alianças que foi inesperada, como foi o caso em 2015/2018. Se isso foi uma experiência interessante, se foi útil, podemos falar disso mais à frente. Mas nada disso muda a natureza do partido, e o que José Luís Carneiro nos garante é que essa matriz, que é a matriz que torna o Partido Socialista um partido central, um partido referencial para a estabilidade política em Portugal, não é comprometida pela incorporação de agendas que não são as suas. Nós não somos barriga de aluguer para projetos que até nalguns aspetos combatemos e dos quais divergimos muito. Enfim, podia-lhe falar da posição sobre, por exemplo, a guerra da Ucrânia, o Médio Oriente, podia falar sobre a integração europeia, e o aprofundamento, as contas certas. Podíamos estar aqui muito tempo a falar de muita coisa, onde a natureza e a tradição do Partido Socialista têm de facto uma matriz muito bem definida.

Ao lado da candidatura que apoia estão aquilo a que se chama os costistas do PS. Como é que se conciliam as duas coisas, sendo que Costa foi o pai da ‘geringonça’?
Vamos simplificar, eu creio que todos os que tiveram responsabilidades neste trajeto político, e que estiveram com o primeiro-ministro António Costa – mais tempo, menos tempo -, naturalmente que no seu perfeito bom senso assumiram que fazem parte dos sucessos e fazem parte dos insucessos. E há uma coisa que em política é importante, que por um lado haja coerência e, por outro lado, lealdade. Nós, de repente, não saímos de dentro de um sítio onde sempre estivemos. Podemos ter divergências e dentro dos órgãos próprios e até dentro do próprio Governo assumir essas divergências, ter uma opinião diferente, criticar no local adequado. Mas não podemos estar dentro e fora ao mesmo tempo. Isso não é saudável. Eu não posso ser costista e anti-costista.

E não acha que quem se vai apresentar às eleições devia fazer uma rotura pelo menos com este costismo mais recente, para reabilitar o Partido Socialista?
A expressão é um pouco excessiva, porque eu creio que o Partido Socialista não precisará de um processo de reabilitação. Neste tempo de Governo, fez-se muita coisa positiva pelo país, cometeram-se muitos erros, mas fez-se muita coisa positiva. Eu percebo a sua questão relativamente a reabilitação no que respeita à perceção dos procedimentos e até uma certa abordagem mais política, com um sentido mais ético e mais assente em regras, isso sim.

Acha que quando Pedro Nuno Santos faz o elogio da herança de Costa não se sente à vontade?
Eu não sei se ele se sente à vontade ou não, mas eu creio que é uma dificuldade. Porque houve uma cumplicidade do Governo, houve uma responsabilidade conjunta e, aliás, eu fiquei de alguma forma surpreendido quando ele iniciou o comentário político num canal de televisão e parecia claro que ele estava a iniciar um processo de distanciamento crítico relativamente ao Governo.

E acha que, agora, está a tentar reverter esse caminho?
Aqui e ali ficamos com essa dúvida. E isso não é bom para ele, nem é bom para os militantes, nem é bom para o país. Eu, sinceramente, acho que Pedro Nuno Santos é muito inteligente, com uma grande energia, com características de liderança, e penso que ele teria tudo a ganhar se se mantivesse fiel àquilo que é o seu registo. Nós temos de ser autênticos. Se há divergências em relação à linha política do primeiro-ministro, ou até do próprio partido em determinado momento, isso deve ser assumido como natural.

Ficou desiludido ou surpreendido com a adesão de Francisco Assis à candidatura de Pedro Nuno Santos?
Desiludido não, surpreendido sim, porque eu creio que, como como dizia o autor, o homem é dono do seu silêncio e é escravo das suas palavras e, portanto, eu prezo muito a coerência e a fidelidade aos princípios. Eu creio que o Francisco Assis é um homem supremamente inteligente, corajoso. Em muitos momentos, quando era quase suicidário criticar ou ser contra a geringonça, ele foi, fortemente. Por isso, confesso que fiquei surpreendido.

Há quem diga que será a moeda de troca para vir a ser candidato presidencial?
Não acredito que o Francisco Assis faça trading das suas ideias, dos seus valores e até da sua inteligência por uma questão de lugares prometidos, eu não acredito nisso. Acho que isso, aliás, diminuiria muito o Francisco Assis e ele não mereceria que isso acontecesse. Acredito que ele tenha procurado com esta sua manifestação pública contribuir para a unidade do partido e acentuar essa unidade aproximando-se de um projeto político que provavelmente não apoiará entusiasticamente.

José Luís Carneiro já disse que viabilizaria um governo minoritário do PSD, caso o PSD ganhasse as eleições. Presumo que esteja de acordo com essa opção? 
O que ele diz, e quanto a mim bem – mesmo correndo o risco de ser impopular, a começar pelo próprio partido e dentro dos próprios militantes do PS –, é uma afirmação de responsabilidade estratégica e de sentido de Estado. Ele diz, se o PS ganhar e não tiver maioria, deve haver uma conversa no quadro parlamentar e o PSD deve ser também chamado às suas próprias responsabilidades. E a inversa também.

Mas disse também que não seria por ele que o Chega seria parte da solução.
Mas, quer dizer, se nós usarmos o Chega como arma de arremesso, nós estamos a alimentar o Chega. E, repare, imagine que por absurdo o Chega atinge um milhão de eleitores. Eu pergunto: o Presidente da República e o Parlamento o que vão fazer com um milhão de portugueses que manifestaram intenção de votar num partido com as características do Chega? 

O que acha que devem fazer? 
Eu acho que é óbvio que, se isso acontecer, significa que os outros partidos tiveram a incapacidade de apresentar propostas mobilizadoras, de se afirmarem como partidos habilitados a responder aos problemas dos cidadãos. E que a motivação para votar num partido com estas características, que em muitos aspetos é um partido que é contra a própria democracia, é porque não tiveram razão para votar nos outros partidos.

O que é que num caso desses – que é muito provável, pelo menos de acordo com o que dizem as sondagens – se deve fazer? 

Os partidos fundadores da democracia e com responsabilidades históricas no processo democrático português devem conversar…

Não se revê numa afirmação de Pedro Nuno Santos numa entrevista onde dizia que o Chega não é um problema do PS, é um problema do PSD?
Não me revejo de todo. O Chega é um problema da democracia.

E acha que ele devia clarificar o que faz se o PSD ganhar as eleições e não tiver maioria?
Acho que não é sensato estar a utilizar o Chega como um instrumento de combate político. Não é responsável. 

Sobretudo agora, porque o Chega corre de facto o risco de ser o partido determinante para formar maiorias?
Os candidatos à eleição para secretário-geral do PS e futuramente a primeiro-ministro, aliás, quer no PS, quer no PSD, têm que claramente dizer qual será nos diferentes cenários a sua política de alianças, ou de posicionamento parlamentar no quadro de haver um bloqueio político. Imagine que há um bloqueio político no sentido de não se formarem maiorias, nem à esquerda, e à direita o partido Chega ser o elemento…

Que é o mais provável de acordo com os últimos dados das sondagens, independentemente do lugar em que fica o PSD…
Os portugueses, quando vão votar, têm de perceber o projeto político. Qual o modelo de desenvolvimento que cada partido propõe? Qual é o alinhamento que esse partido tem com as questões internas e externas? O natural é que quer o PS, quer o PSD se afirmem como partidos que pretendem ganhar as eleições, e um deles vai ganhar as eleições. Não tenhamos dúvidas nenhumas. Ou o PS ou o PSD serão o partido mais votado. O partido mais votado deve ser chamado a formar Governo e, no quadro parlamentar, deve encontrar as soluções que estejam disponíveis e que, do ponto de vista da responsabilidade do Estado, se afirmem as mais alinhadas com o interesse nacional. E, portanto, eu creio que uma conversa entre PS e PSD, por muito que isso possa ser impopular na lógica dos próprios aparelhos partidários, é uma conversa inevitável. Naturalmente, eu espero e acredito que o Partido Socialista será o partido mais votado. Mas, não tendo maioria absoluta, terá que, no quadro parlamentar, encontrar uma solução política estável, duradoura, que não deite por terra aquilo que tanto custou nos últimos anos a conquistar. Nomeadamente a consolidação das contas públicas, a estabilidade orçamental, o crescimento económico e, naturalmente, a questão da estabilidade do emprego.

E se isso não for conseguido à esquerda, tem de passar, pelo menos, por uma abstenção do PSD nos orçamentos, como fez Marcelo Rebelo de Sousa com António Guterres?
Eventualmente, eventualmente. Agora, terá de haver um diálogo. O Presidente da República terá também, nesse contexto, um papel importante. E eu acho que a 10 de março será importante que na sala estejam essencialmente os adultos.

Como tem visto neste pós-crise de 7 de novembro as intervenções do ainda primeiro-ministro, António Costa, sobretudo quando nos últimos dias assistimos, mais uma vez, a críticas, agora já não veladas, à atuação do Presidente da República; ao que ele disse, ao que ele não disse, ao que fez, ao que não fez?
O contexto que vivemos é muito difícil, nós temos também de compreender que o primeiro-ministro se sinta numa situação de injustiça, que se sinta pessoalmente… 

 Mas acha que deve fazer uso do seu lugar de primeiro-ministro? 
As pessoas, antes de serem políticos – ou primeiro-ministro –, são pessoas e, portanto, têm sentimentos, não são máquinas sem sentimentos, esse é um aspeto. Outro aspeto é dizer o que é que o Estado e o país precisariam. Num período em que nós vamos entrar numa campanha eleitoral que vai ser muito complexa, era importante que nós tivéssemos garantido um mínimo de estabilidade institucional e que, por muito dolorosas que as circunstâncias pudessem ser, houvesse uma espécie de pacto de silêncio ou de reserva, porque, repare, o que está em cima da mesa é muito complexo. Nós assistimos a referências, a afirmações, a notícias de jornais, a fontes, a uma manifesta tensão entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. Vemos à questão do Ministério Público e da Justiça, que está envolvida também neste processo e com uma grande inquietação por parte dos cidadãos. Porque a questão que nos assalta a todos nós é: será que um dos principais pilares do Estado de Direito, que é a Justiça, está a funcionar em condições que nos dê tranquilidade, segurança e garantias? Porque isso é fundamental. E nós precisamos de saber se é assim.

Tem dúvidas? 
Não é bom que neste momento nós estejamos todos contra todos. Por exemplo, você acha normal que dentro da Procuradoria-Geral da República alguém venha criticar a procuradora-geral da República e o Ministério Público? Eu creio que isto é um sinal de uma doença, qualquer coisa que não está de facto muito bem, e as instituições não estão a funcionar na plenitude da sua regularidade.

Acha que o primeiro-ministro se deveria remeter ao silêncio? 
Eu acho que era preferível que o primeiro-ministro e o Presidente da República tivessem uma longa conversa. Duradoura, a sós, e que refletissem sobre aquilo que está a acontecer e a projeção que está a ser feita para o exterior. Porque o país não ganha nada em ter uma Presidência da República diminuída, fragilizada. Não ganha nada em ter um Governo diminuído, fragilizado. São duas personalidades que são centrais, apesar de o Governo estar em vias de demissão. São duas personalidades que marcam a política portuguesa e que são fundamentais para a serenidade das pessoas. São pessoas com uma importância determinante na estabilidade do país. São pessoas com uma vida pública e política tão extensa e tão e tão pesada, tão intensa que não, creio que reajam por impulso.