Na hora dedicada ao ditado, o padre aproximava-se de Luigi com um rolo de cadarço e amarrava-lhe a mão esquerda à madeira dura do assento. A mãe, que trabalhava a dias em casa deste e daquele não teve outro remédio do que enfiá-lo num seminário depois da morte de Hugo, o marido, atingido por um estilhaço de ferro na cabeça durante o trabalho numa fábrica de peças de automóveis situada em Legnano, não longe de Milão. A Batalha de Legnano, que opôs a Liga de Itália aos exércitos de Frederico Barbarossa, ao tempo do Sacro Império Romano, ficou para sempre marcada na História de Itália e o nome da cidade é cantado com orgulho no hino nacional, Il Canto Degli Italiani: “Siam pronti alla morte/L’Italia chiamò/Stringiamoci a coorte/Siam pronti alla morte/Siam pronti alla morte/L’Italia chiamò, sì!/Dall’Alpi a Sicilia/Dovunque è Legnano…”. Dos Alpes à Sicília, por toda a parte há Legnano, numa tradução apressada como apressada era a forma de Gigi Riva chegar ao golo. Luigi pode ter sido obrigado a fazer ditados com a mão direita, a esquerda presa com corda, mas o seu pé esquerdo viveu em liberdade. A violência do seu pontapé era temida pelas defesas contrárias com o medo de quem sabe que uma tempestade se forma ao longe pronta a cair sobre as suas cabeças a qualquer momento. Rombo di Tuono: o Ruído do Trovão. Carlo Vulpio escreveu um livro sobre Riva. Tem como título Il sogno di Achille. Logo de início é o próprio Riva que conta: “A primeira coisa de que tive consciência na vida foi da minha pobreza”.
“L’Italia chiamò!”. A Itália chamou Gigi Riva para vestir a camisola azul, daquele azul intenso que era emblema da Casa deSavola, no tempo da monarquia, pela primeira vez em 1965. Já passara o exame de avançado centro valente e poderoso na Associazione Calcio Legnano e escolhera viver na Sardenha e jogar no Cagliari, esse clube de sofredores meticulosos, sempre ameaçados pelo horror da descida às catacumbas da Série B mas, ao mesmo tempo, de peito impante, porque na sua ilha houve, na época de 1969-70, um grupo de homens abnegados e corajosos capazes de se baterem e vencerem todas as grandes ‘squadras’ de Itália: Albertosi e Reginato, Tampucci, Cera, Niccolai e Tomasini, Domenghini, Nené, Martiradonna e Mancin, Poli, Brugnera, Greatti e Zignoli, Gori e Nastasio… Os Filhos da Guerra: todos nascidos durante a II Grande Guerra. Os filhos do impossível: Cagliari, vencedor do Scudetto.
O treinador era Manlio Scopigno, Il Filosofo.
“Poema eterno de alegria e de tragédia vivido na ilha de todos os sonhos”, escreveu Vulpio. Pela secura dos montes da Sardenha, a sul da Córsega, separadas ambas pelo Estreito de Bonifácio, rodeada pelo Mar Tirreno, um vento de felicidade soprava na direção do continente e era Gigi Riva que o conduzia à custa das rajadas do seu pé esquerdo. “A minha primeira memória é a de ser pobre”, repetiu muitas vezes ao longo da sua carreira massacrantemente marcada pelas lesões. Talvez a Itália e os italianos esperassem de Gigi que fosse o líder do título mundial de 1970, no México, depois da importância que teve na conquista do Europeu de 1968. Mas o Rombo di Tuono estava também amarrado por todo o lado esquerdo e não apenas pela mão como no seu tempo infantil de padres estúpidos. Carente, Gigi refugiou-se dentro de si e regressou ao lugar íntimo de menino pobre que nunca deixou de ser. Depois da alegria, uma tragédia sem poema. A Itália discutia Gigi. QueGigi não era mais Gigi, que não servia para a Squadra Azzurra, que não se podia comparar o seu pé esquerdo com o pé esquerdo estrondoso de Rivelino, esse sim, o pé esquerdo que dominava os trovões e fazia com que as tempestades obedecessem à sua vontade. Gigi perdeu e perdeu-se. Piero Salis procurou-o na letra de uma canção chamada Quando Gigi Riva Tornerà: “Crescerà la solidarietà/Ci sarà un po’ più di umanità/E sapremo piangere davvero/Quando il sogno ci confermerà/Che non passerà più lo straniero/Quando Gigi Riva tornerà”. Tornara-se um símbolo. Um símbolo da luta pela solidariedade, pela liberdade, pela capacidade de sofrer até às lágrimas e que não era vergonha de chorar através do coração. Um grito coletivo contra o medo de falhar: “Niente più paura ormai ci fa/Su, su, su, su/Che siamo i primi/Tutti insieme verso il sole/Tutti insieme verso il sole”. Ainda apareceu no Mundial de 1974, estrela apagada de uma Itália desgraçada, um jogo apenas, frente à Argentina. Solitário Gigi. Nunca conseguiu fugir à imagem de homem triste. Mesmo que todos, todos com ele, se erguessem e enfrentassem o sol.