Conheça ponto por ponto os crimes que voltam a estar em causa na Operação Marquês

Acórdão do Tribunal da Relação recupera a grande maioria das acusações do Ministério Público, deixadas cair por Ivo Rosa. Veja a lista completa dos arguidos e dos crimes que vão a julgamento.

«Ninguém gasta milhões que não lhe pertençam», afirmam as juízas desembargadoras do Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão que ontem foi publicado e que anula a maioria das decisões do juiz Ivo Rosa, pronunciando os principais arguidos da Operação Marquês.

Ao contrário do juiz de instrução, as desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Caldeira consideram que há indícios fortes de corrupção pelos quais devem ser julgados, entre outros, José Sócrates, o amigo Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, os ex-administradores da PT Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, o ex-administrador do Grupo Lena Joaquim Barroca, o ex-administrador não executivo dos CTT Rui Horta e Costa e o empresário luso-angolano Hélder Bataglia, antigo presidente da Escom.

Os processos que, entretanto, tinham sido autonomizados por Ivo Rosa quanto a Armando Vara e Salgado – em que estes foram condenados – continuam o seu curso.

O acórdão do Tribunal da Relação rompe em absoluto com a lógica da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa. Em 2021, o magistrado deixou cair 172 crimes dos 189 que constavam na acusação do Ministério Público.

Ora, o coletivo liderado pela desembargadora-relatora Raquel Lima dá agora como fortemente indiciado que as comissões ilícitas, no total de 34 milhões de euros, que José Sócrates amealhou em contas na Suíça foram contrapartidas de crimes de corrupção que favoreceram os interesses do Grupo Espírito Santo, do Grupo Lena e do empreendimento de Vale do Lobo, no Algarve. Consideram mesmo que o ex-primeiro-ministro era o epicentro de todo o circuito financeiro dos negócios suspeitos descritos no processo.

Segundo o acórdão, para despistar o verdadeiro beneficiário – José Sócrates –  essa fortuna terá sido depositadas em contas na Suíça primeiro em nome do seu primo direito, José Paulo Pinto de Sousa, e depois do seu amigo Carlos Santos Silva, empresário da área da construção civil (ambos também arguidos). Os dois são considerados pelo MP ‘testas-de-ferro’ do ex-líder socialista. Parte significativa dessa verba acabou por ser transferida para Portugal ao abrigo de uma das duas operações RERT (Plano de Regularização Excecional e Temporária) aprovadas pelo Governo do próprio Sócrates para recuperação de capitais nacionais depositados no estrangeiro, isentando-os da quase totalidade do imposto devido, sendo ponto assente pelos investigadores judiciais e tributários que o antigo primeiro-ministro usou sempre esse dinheiro a seu bel-prazer.

OPA

Ricardo Salgado surge como o principal corruptor do antigo líder socialista. Em causa estão dois negócios fundamentais para o Grupo Espírito Santo.

Em primeiro lugar, salienta-se o caso da OPA (Operação Pública de Aquisição) lançada a 6 de fevereiro de 2006, em pleno primeiro Governo de Sócrates, sobre a empresa de telecomunicações Portugal Telecom (PT) pelo grupo Sonae em aliança com a espanhola Telefónica. À operação opunha-se Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo (BES) e líder do grupo associado GES, que detinha fortes interesses na PT e temia que o negócio colocasse em causa o seu poder enquanto acionista da operadora portuguesa. A desembargadora-relator mantém a linha do MP que acusa o banqueiro (também arguido na Operação Marquês) de pôr em prática um plano para travar a OPA com recurso ao primeiro-ministro, que, por sua vez, terá influenciado o seu amigo Armando Vara (igualmente arguido), ex-dirigente socialista e à época vice-presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), para que o banco público, que detinha na PT uma participação de 5,11% do capital, votasse ao lado de Ricardo Salgado contra a OPA, o suficiente para que a assembleia geral dos acionistas da operadora chumbasse a operação de aquisição, como de facto viria a suceder a 2 de março de 2007.

O acórdão acompanha a acusação do MP que alega que, por esta intervenção, Sócrates recebeu seis milhões de euros através de um complicado fluxo financeiro com origem no BES. A entidade intermediária foi a empresa Escom, do vasto universo do Grupo Espírito Santo (GES), tendo-se recorrido, como ‘peões’ para ocultar a origem do dinheiro, ao seu presidente, Hélder Bataglia, e a um dos seus administradores designado por Salgado para a área financeira, Pedro Ferreira Neto (ambos arguidos e testemunhas fundamentais do processo). Está documentado nos autos que, dois meses depois de a OPA se ter tornado pública, a 27 de abril e a 9 de maio de 2006, Bataglia e Ferreira Neto receberam quatro transferências no total de sete milhões de euros oriundas da própria Escom e que, pouco depois, a 19 de maio, seis milhões de euros, com origem numa offshore de Bataglia, a Markwell, entraram na conta da Gunter Finance, offshore detida por José Paulo Pinto de Sousa, no banco suíço UBS, tendo o dinheiro ficado à disposição do ex-líder socialista.

O funcionário do UBS que geria a conta de José Paulo, Michel Canals, escreveu uma nota justificativa explicando que a verba de seis milhões depositada pelos homens da Escom se destinava a adquirir umas salinas em Benguela, Angola, pertencentes à família Pinto de Sousa, com o fim de aí implantar um projeto imobiliário, mas Ferreira Neto, interrogado, negou que estivesse planeado tal investimento.

O administrador da Escom não adiantou, porém, qualquer explicação para o pagamento, mas admitiu que, por vezes, Bataglia lhe solicitava o trânsito de verbas pela sua conta bancária com destino a terceiros. Em relação aos apontamentos de Canals, o administrador explicou também que «essas notas aparecem porque o gestor tinha de justificar a operação ao departamento de complience do banco». Ferreira Neto, que se tornaria uma testemunha poderosa, acompanhando outros passos da acusação, revelou ainda que Bataglia lhe contara que apresentara Sócrates a Ricardo Salgado e que, quando foi anunciada a OPA da PT, voou com o presidente da Escom até ao Dubai, em finais de abril, para se encontrarem com o líder do GES e discutirem com ele a eventualidade de uma ‘contra-OPA’. O antigo vice-presidente do Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) e responsável pela área financeira da Escom – que liderava ainda a offshore Pinsong, que também seria usada para movimentar dinheiro das ‘luvas’ pagas por Ricardo Salgado a outros protagonistas – admitiu mesmo em interrogatório ter sido usado como ‘peão’ de Ricardo Salgado e José Sócrates.

Dos seis milhões que entraram na Gunter de Pinto de Sousa, 3,5 milhões foram depois transferidos para uma outra conta, também no UBS, mas titulada por Carlos Santos Silva, o qual, do mesmo modo, passou a disponibilizar ao seu amigo político todo o dinheiro que ele lhe solicitasse, sem limite ou contabilidade organizada. Estas transferências deixam Santos Silva num beco sem saída, mas ao MP o empresário justificou o recebimento daquele montante com uma suposta associação à família Pinto de Sousa em Angola no negócio das já referidas salinas: ele seria coproprietário do terreno e essa seria a parte que lhe caberia em resultado da venda à Escom. Mas esta explicação é ‘arrasada’ pelo acórdão da Relação e Lisboa que se apoia nos registos da empresa, onde nunca aparece como sócio nem faz parte dos seus órgãos sociais.

O acórdão procura também demonstrar que o dinheiro não é de quem o detém, mas de quem efetivamente o usa. E, o que é certo, é que o capital acumulado na conta offshore de Pinto de Sousa acabou por ser usado ainda nesse mesmo ano em despesas relacionadas com pessoas da esfera mais íntima de José Sócrates. A primeira transferência foi mesmo para uma sua namorada, Sandra Santos, que vivia em Genebra mas que o visitava com regularidade; para as despesas correntes de sua mãe, Adelaide Monteiro, como por exemplo para pagar o ordenado da sua empregada doméstica; e também para o seu irmão António Pinto de Sousa. Para além disso, era o primo do ex-primeiro-ministro quem pagava, em dinheiro vivo que levantara na Suiça, alguns luxos de Sócrates como umas sumptuosas férias no resort Pine Cliffs, perto de Albufeira. Iniciava-se assim o processo de lavagem de dinheiro.

Hélder Bataglia e Pedro Ferreira Neto continuaram nos anos seguintes a servir para fazer circular milhões nas esferas de Ricardo Salgado e José Sócrates. No dia 9 de julho de 2007, a Markwell recebeu da firma ES Enterprises, uma offshore sediada nas Ilhas Virgens Britânicas (um paraíso fiscal) e considerada o ‘saco azul’ do GES – que tinha como ‘controler’ o suíço Jean-Luc Schneider –, sete milhões de euros. Nesse mesmo dia, também o então presidente da PT, Henrique Granadeiro, recebeu na conta que detinha no banco suíço Pictet uma transferência de seis milhões com origem na mesma ES Enterprises. Uma coincidência que Salgado em interrogatório chegou a atribuir ao «Diabo». «A coincidência destas operações com aquelas datas do Hélder Bataglia é o Diabo, isto foi o Diabo, mas não tem nada a ver», disse aos investigadores.

Por sua vez, Bataglia justificou a transferência com um contrato celebrado entre a Pinsong e a Markwell para o pagamento do success fee em negócios de poços de petróleo que, no entanto, nunca vieram a acontecer. Inquirido no processo, Ferreira Neto disse que em reunião anual do GES, em Lausanne, na Suíça, Ricardo Salgado e Hélder Bataglia lhe pediram para forjar aquele contrato (entre a Pinsong e a Markwell) por forma a darem uma justificação para as transferências realizadas. E acrescentou que foi o próprio Bataglia a lhe dizer que se tratavam de verbas para resolver questões da PT. Nos dados recolhidos em Lausanne pelas autoridades suíças foram identificados ficheiros informáticos em que o ‘controler’ do saco azul do GES, Jean-Luc Schneider, classifica todos os pagamentos com a designação ‘PT + Pinsong’, sendo que nos mesmos se vê que foram incluídos pagamentos nas mesmas datas a Bataglia e aos homens-fortes da PT: Henrique Granadeiro e Zeinal Bava.

A 30 do mesmo mês, a sociedade Gunter de José Paulo Sousa recebeu três milhões da Markwell de Bataglia e dessa mesma Gunter é ordenada uma transferência de dois milhões para a Giffard Finance, uma offshore de Carlos Santos Silva. Como conclui o acórdão «os movimentos financeiros “purificadores” correspondem às transferências dos fundos, a partir de 2008/2009, das contas das sociedades offshore Belino, Pinehill (de Carlos Santos Silva) e Benguela (de José Paulo Pinto Sousa), para a conta da sociedade Brickhurts (de Carlos Santos Silva) − tendo ainda restado um remanescente na Pinhehill, de cerca de €1.000.000,00 − e o manifesto dos mesmos, em Portugal, em Novembro de 2010, na na conta sediada no BESI (Banco Espirito Santo Investimento), titulada por Carlos Santos Silva».

VIVO-Oi

Também nesta vertente o acórdão segue o raciocínio do MP. Pedro Ferreira Neto é também personagem central no esquema montado para fazer chegar às mãos de Sócrates, de novo com origem no GES, mais 15 milhões de euros, entre 2007 e 2009, igualmente no âmbito de um negócio relacionado com a PT: o abandono da sua participação na empresa brasileira de telecomunicações Vivo, pujante economicamente devido à expansão da sua rede de telemóveis, para investir na aquisição da Oi/Telemar, outra operadora de telecomunicações que, por apostar num sistema de telefones fixos, cada vez menos utilizados pelos consumidores, haveria de ficar à beira da falência. A venda da participação na Vivo, devido ao elevado valor que prometia, conviria a Salgado pela liquidez que, através da PT, faria entrar no seu grupo, já então afetado por graves desequilíbrios financeiros.

A PT acordou de início a venda da Oi à Telefónica por 7,15 mil milhões de euros, a pronto pagamento, tendo o contrato acabado de ser assinado pelo valor de 7,5 mil milhões, a prestações. Metade desse valor foi distribuído proporcionalmente pelos acionistas (com um encaixe imediato de 375 milhões de euros por parte do BES/GES), ficando o resto para pagar depois. Ivo Rosa não deu qualquer relevância a estes movimentos deixando cair os crimes da acusação mas para o trio das desembargadoras mais uma vez o JIC meteu o pé na poça: «Diz o Sr. Juiz que os factos demonstram que a utilização da Golden Share foi feita contra os interesses dos principais accionistas que aprovaram a operação em AG, designadamente do GES, contra a opinião da 

administração da PT e contra a opinião de Ricardo Salgado. A acusação fala num “acordo” entre o arguido José Sócrates e Ricardo Salgado, tendo este manifestado uma posição contrária à venda apenas como forma de não ser visível a sintonia de interesses daqueles dois. Existindo ou não um “teatro” entre o arguido José Sócrates e Ricardo Salgado no que toca à venda da Vivo, o certo é que, no final, o arguido Ricardo Salgado conseguiu o que queria – a manutenção da PT no Brasil, com a fusão da Telemar/Oi e o afastamento da Telefónica (apoiante da Opa da Sonae)».

E demonstram. Detendo então o Estado português uma golden share na PT (participação qualificada que dava direito a uma palavra definitiva nas decisões estratégicas da empresa), Sócrates autorizou a venda da participação na Vivo, mas na condição de que pelo menos metade da receita fosse reinvestida no setor tecnológico brasileiro, assim se decidindo a entrada na Oi. O então primeiro-ministro, a 28 de julho de 2010, defendeu publicamente essa opção, declarando: «A defesa intransigente do interesse estratégico foi absolutamente essencial para que a PT pudesse fazer um excelente negócio». A PT adquiriu um quarto do capital da Oi, mas a gestão da operadora manteve-se nas mãos dos seus acionistas brasileiros. Altamente endividada, a Oi era já um ‘elefante branco’ com um grande buraco financeiro, e a sua salvação também convinha aos governantes brasileiros. O então presidente do Brasil, Inácio Lula da Silva, muito próximo de Sócrates, empenhara-se em resolver a situação, surgindo nesse contexto a autorização para o investimento da PT, o que de facto terá salvado a empresa mas afundado financeiramente a operadora portuguesa.

Tal como Zeinal Bava, também Henrique Granadeiro, à época chairman da PT, terá recebido de Salgado um pagamento de luvas pelo envolvimento da operadora nacional no negócio brasileiro. Na Operação Monte Branco, foi detetado em janeiro de 2012 um sms enviado por Granadeiro ao homem do GES: «Ricardo, o Didier já falou comigo e já recebi». Nessa altura, verificou-se ter sido efetuada uma transferência de 4,852.000 francos suíços (cerca de 4,4 milhões de euros) da firma Enterprises Management Services, do grupo GES (e antes designada Espírito Santo Enterprises, ou ES Enterprises), para uma conta de Granadeiro no banco suíço Pictet. Segundo o acórdão Granadeiro não terá retido toda a verba em benefício pessoal, mas que parte dela terá sido reencaminhada para Salgado. 

Manuscrito de Salgado revela ‘luvas’

O acórdão acompanha a par e passo o circuito financeiro da acusação do MP. Um manuscrito redigido pelo punho do próprio Ricardo Salgado, com a aparente distribuição de verbas para pagamento de 55 milhões de euros de ‘luvas’ a vários arguidos da Operação Marquês é considerado uma das peças essenciais para a formulação da acusação a José Sócrates e aos restantes suspeitos do megaprocesso.

O documento, que consiste num apontamento efetuado por Salgado num papel de pequenas dimensões dirigido a Amílcar Morais Pires, seu braço direito na gestão executiva do BES, tem a indicação de ‘55 M €’ [55 milhões de euros], que são depois repartidos por três retângulos, um onde aparece escrito ‘2×7,5’ (totalizando, aparentemente, 15 milhões de euros), outro onde se redige “1×10” (10 milhões de euros) e o último com ‘2×20’ (ou seja, 40 milhões de euros). O total soma 65 milhões de euros, mas ao fundo do papel aparece ainda manuscrito pelo banqueiro ‘+ 10’, o que, somado à verba inicial, dá precisamente esse resultado.

O rascunho elaborado pelo homem forte do GES apareceu aos investigadores da Operação Marquês entre os papéis enviados pelas autoridades suíças em resposta a uma carta rogatória do MP solicitando informação sobre movimentações dos arguidos em contas bancárias por eles detidas nesse país. Os números anotados por Ricardo Salgado coincidem com transferências feitas em 2010, 2011 e 2012 para alguns dos arguidos ligado à ES Enterprises. Por exemplo, Hélder Bataglia recebeu, em novembro de 2010, 15 milhões de euros, na conta da sua offshore Green Emerald Investments, no Crédit Suisse, em Zurique, repartidos em duas tranches iguais, o que corresponde ao apontado por Salgado no primeiro retângulo.

Já em relação a uma que parte substancial da verba recebida por Bataglia que teria José Sócrates como destinatário– havendo indícios que demonstram que o homem da Escom aplicou oito milhões de euros num negócio fictício de aquisição de um lote para construção em Luanda, chamado Kanhangulo, que permitiu a entrada dessa verba nas contas do Grupo Lena – onde Carlos Santos Silva «prestava serviços», segundo o próprio administrador da construtora de Leira, Joaquim Barroca Rodrigues (que também passou a ceder as suas contas para a passagem de dinheiro de forma a ‘despistar’ as autoridades)—que Ivo Rosa colocou em causa, o acórdão desmonta a teoria do juiz: «Diz o Sr. Juiz que “Estes dados objectivos, acompanhados da falta de corroboração na parte relativa ao alegado pedido feito pelo arguido Ricardo Salgado, fragilizam as declarações do arguido Hélder Bataglia e impossibilitam que a partir das mesmas se possa fundamentar uma convicção no sentido de que os 12 milhões de euros que circularam para a conta do arguido Carlos Santos Silva foram feitos a pedido do arguido Ricardo Salgado e que tinham como destinatário o arguido José Sócrates. É certo que não se mostra justificada a razão de ser para existência de operações bancárias entre Hélder Bataglia e Joaquim Barroca e é certo, também, que existem contornos obscuros, sobretudo pela forma como foram realizados, que levantam suspeitas quanto à razão de ser dos movimentos bancários em causa. Em todo o caso, estas suspeitas e a ausência de justificação lógica para os fluxos financeiros verificados, são insuficientes para que se possa concluir, de forma suficiente, que os 12 milhões de euros se destinavam a retribuir o arguido José Sócrates pela sua intervenção, enquanto Primeiro-Ministro, em favor do BES no âmbito dos negócios da Portugal Telecom».

Junto ao retângulo ‘1×10’ rascunhado por Salgado, o presidente do BES acrescentou ‘Sing’, o que o MP acredita tratar-se de Singapura, em cuja delegação local do banco suíço UBS o presidente executivo da PT à época, Zeinal Bava, detinha uma conta pessoal para qual os investigadores descobriram que, de facto, a ES Enterprises transferiu 10 milhões de euros em 20 de setembro de 2011. Bava já recebera antes, em dezembro de 2010, também da ES Enterprises, a quantia de 8,5 milhões de euros pagos à sua sociedade offshore Rownia, com conta no UBS em Zurique. O chairman da PT, Henrique Granadeiro, recebeu da ES Enterprises, ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, pagamentos totais na ordem dos 17,5 milhões de euros, que seriam depositados na conta da sua offshore Granal no Banco Pictet, em Zurique.

E até o próprio Salgado utilizou o ‘saco azul’ do GES, através do qual transferiu para a conta da sua offshore pessoal, a Savoices, no Crédit Suisse, em Zurique, a 21 de outubro de 2011, a quantia de quatro milhões de euros, que seriam depois transferidos para a conta da mesma empresa e do mesmo banco mas em Singapura. A esta verba, juntaram-se 3,750 milhões de euros que Bataglia transferiu para a Savoices da verba de 15 milhões recebidos da ES Enterprises. Também Granadeiro, do dinheiro que auferiu da ES Enterprises, transferiu cerca de quatro milhões de euros para a sociedade offshore Begolino, controlada por Salgado e pela sua mulher, Maria João Calçada Bastos.

Também aqui o acórdão acompanha o raciocínio do MP que sustenta que existem fortes indícios de que estes pagamentos correspondem a ‘luvas’ pagas aos diversos agentes que influenciaram a operação de venda da participação da PT na operadora telefónica brasileira Vivo, precisamente no ano de 2010 – incluindo a José Sócrates.

Essa convicção é reforçada pelo facto de, por baixo do apontamento referente aos 55 milhões de euros a distribuir, Ricardo Salgado ter escrito, no seu manuscrito, a sigla ‘PT’, associando a verba à operadora. Os investigadores receberam a confirmação desta suspeita ao verificarem que, nas contas da ES Enterprises, o contabilista Jean-Luc Schneider também incluiu as letras ‘PT’ junto da referência a cada um dos pagamentos feitos nesse período aos arguidos mencionados. Os homens do GES atribuíram até um nome de código à suposta distribuição de ‘luvas’ resultantes da venda da Vivo: ‘CEL-2010’ – embora, por vezes, alguns documentos relacionados com a operação também tivessem a designação genérica ‘BRIDGE-2010’. Numa folha de cálculo relativa à operação ‘CEL-2010’, também resultante da carta rogatória enviada para a Suíça, existe uma distribuição de verbas pelos vários intervenientes, entre 2010 e 2012, que vai ao encontro do apontamento manuscrito pelo presidente do BES.

Grupo Lena

Terá sido Santos Silva a introduzir Joaquim Barroca no esquema. E as contas do administrador do Grupo Lena no suíço UBS tornaram-se veículo dos fundos em trânsito para Santos Silva (tendo Sócrates como destinatário final), o que terá constituído – segundo o MP – uma contrapartida para as manobras de influência que terão existido com vista à atribuição de projetos à construtora.

São, aliás, múltiplos os seus contratos da empresa com o Estado no tempo da chefia do Governo de Sócrates, e por isso os magistrados dedicam-se a passá-los a pente fino: as obras da Parque Escolar (empresa pública criada pelo primeiro executivo de Sócrates), as concessões rodoviárias, o projeto do segundo aeroporto de Lisboa ou o troço Poceirão-Caia do TGV (atribuído em 2010 a um consórcio internacional, o ELOS – Ligações de Alta velocidade, S.A., do qual a Lena fazia parte).

Também o contrato para a venda pela Lena de casas (pré-fabricadas) à Venezuela, de quase 850 milhões de euros, supostamente obtido junto

de Hugo Chávez por Sócrates em 2008, é objeto de apurado escrutínio. O MP acredita que o Grupo Lena pagou a José Sócrates mais de 2,8 milhões de euros pelo apoio no âmbito destes contratos.

Testas-de-ferro

A tese, do MP, de que José Sócrates usaria testas-de-ferro para ocultar a origem do dinheiro ilícito, também é acolhida pelo coletivo a que preside a desembragadora-relatora Raquel Lima.

José Sócrates terá traçado desde o início do seu primeiro Governo um plano de enriquecimento pessoal. José Paulo Pinto de Sousa foi, de 2006 a 2008, o seu homem de confiança para lhe guardar o pecúlio. O esquema funcionava com base em quatro offshores e respetivas contas bancárias no banco UBS, na Suíça (abertas e geridas por Michel Canals): a Benguela Foundation e a Gunter Finance, ambas de Pinto de Sousa, e a Belino Foundation e a Giffard Finance, de Carlos Santos Silva, amigo de longa data de Sócrates.


O caso Freeport, veio, no entanto, dificultar o esquema. Os homens da Operação Marquês concluíram que a resposta das autoridades britânicas, em janeiro de 2008, a uma carta rogatória enviada pelo MP no âmbito daquela investigação punha a nu a responsabilidade do primo na ocultação das verbas. Com o nome de Pinto de Sousa ‘manchado’, Sócrates decidiu mudar a ‘barriga de aluguer’ do seu dinheiro, retirando o nome do seu primo dos esquemas e tornando o amigo Carlos Santos Silva a ser o único ‘testa-de-ferro’ de Sócrates.

Com o caso Freeport, o primeiro testa-de-ferro do primeiro-ministro, o primo José Paulo, deixa de ser seguro. Assim, os fundos passariam a entrar na Giffard Finance, uma conta de Carlos Santos Silva, e passariam depois para a conta da Belino Foundation.

Sócrates impôs, porém, uma condição aquando da criação da Belino Foundation: foi redigida uma espécie de ‘testamento’ que assegurava que, em caso de morte do beneficiário da conta (ou seja, se Carlos Santos Silva falecesse) 80% do seu recheio iria para José Paulo Pinto de Sousa. Assim, Sócrates ficava com a certeza de que o dinheiro estaria sempre em mãos seguras e, ao mesmo tempo, conseguia fazer com que os fundos que recebe circulem em diferentes contas, tornando mais difícil detetar a sua origem e rasto – entre os documentos encontrados pela investigação no banco suíço UBS foi precisamente descoberto esse ‘testamento’ (com o nome do titular da fundação e o seu ‘herdeiro’).

Com os dados recolhidos pela investigação, é possível constatar que, nesse mesmo mês, José Paulo fez vários levantamentos em numerário ao balcão, em Genebra, e é dada pelo próprio a ordem para, no máximo a 20 de fevereiro, ser feita a mobilização de todo o dinheiro da Benguela Foundation e da Gunter Finance para a Giffard Finance e, posteriormente, para a Belino Foundation. É no documento que autoriza essas transferência que se encontra a prova que o MP precisava para confirmar que o primo de Sócrates tem acesso a todo o dinheiro. Nesse documento, é referido que a autorização para as transações foi dada via telefone – o montante inicial saía da Benguela Foundation, pelo que a autorização teve de ser dada por José Paulo. O mesmo documento dá ainda instruções sobre o que fazer quanto à transferência do dinheiro da Giffard Finance para a Belino Foundation, ambas da esfera de Carlos Santos Silva. Ou seja, as instruções dadas por José Paulo abrangiam também as contas de Santos Silva, um procedimento invulgar que o MP acredita ser a prova de que existia apenas um verdadeiro beneficiário de todas estas contas: José Sócrates. Assim, em março de 2008, são criadas novas sociedades e abertas novas contas em nome de Santos Silva: a Pinehill Finance e a Brickhurst International. Esta última passa a ser a conta principal, que irá receber todo o dinheiro da Belino Foundation. Segundo as desembargadoras: «Estas são as sociedades offshore e as contas bancárias mais relevantes utilizadas nos esquemas de branqueamento gizados, entre muitas outras mencionadas na acusação. Como se verifica, os arguidos usaram e abusaram dos “veículos” corporativos, criados e/ou disponibilizados pelos “Gatekeepers” antes identificados, os quais figuraram como seus directores ou administradores, emprestaram a sua morada às sociedades “fictícias” e recepcionaram toda a correspondência das mesmas».

Vale do Lobo

Um investimento inicial de apenas 120 mil euros, e emprestados por um banco, foi quanto bastou a Diogo Gaspar Ferreira, administrador de Vale do Lobo, no Algarve, para adquirir e passar a controlar, em 2007, aquele que é o maior empreendimento do país. Segundo o MP, os encargos e o risco do negócio, de quase 300 milhões de euros, ficaram todos por conta da CGD e isso só foi possível graças a decisões políticas e de gestão de José Sócrates e de Armando Vara, que terão recebido em troca dois milhões de euros de ‘luvas’.

O capital para distribuir as ‘luvas’ terá sido arranjado com a entrada em cena de um milionário holandês que comprara um lote de terreno em Vale do Lobo. Em depoimento já prestado no processo, perante o MP, Jeroen Van Dooren revelou que, como pretendia construir a casa segundo um projeto de arquitetura próprio e através de uma construtora da sua confiança, o administrador de Vale do Lobo, Gaspar Ferreira, exigiu-lhe que pagasse um valor extra de dois milhões de euros.

Pelos dados bancários já constantes do processo, o MP verificou que esses dois milhões de euros saíram das contas do cidadão holandês para uma conta na Suíça de Joaquim Barroca, acabando por chegar à esfera de Santos Silva (ou seja, de José Sócrates) e Armando Vara, em partes iguais. No total, as ‘luvas’ foram pagas em três tranches, entre 2007 e 2008.

O processo segue agora diretamente para julgamento no Tribunal Criminal de Lisboa. Caso haja recursos da defesa, estes poderão ter efeito suspensivo, mas só no caso – improvável – de o Tribunal Constitucional os aceitar.

Veja aqui a lista completa dos arguidos que vão a julgamento:

José Sócrates – 22 crimes: 3 crimes de corrupção, 13 crimes de branqueamento de capitais e 6 crimes de fraude fiscal.

Carlos Santos Silva (empresário e amigo de Sócrates) – 23 crimes: 2 crimes de corrupção, 14 crimes de branqueamento e 7 crimes de fraude fiscal.

Joaquim Barroca Rodrigues (ex-administrador da construtora do Grupo LENA) – 15 crimes: 2 crimes de corrupção, 7 crimes de branqueamento e 6 crimes de fraude fiscal.

José Luís Ribeiro dos Santos (funcionário das Infraestruturas de Portugal) – 2 crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento.

Luís Manuel Ferreira da Silva Marques (funcionário das Infraestruturas de Portugal) – dois crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento.

Ricardo Salgado (ex-presidente do BES/GES) – 8 crimes: 3 crimes de corrupção e 8 crimes de branqueamento.

Zeinal Bava (ex-presidente executivo da Portugal Telecom): 3 crimes: 1 crime de corrupção, 1 crime de branqueamento e 1 crime de fraude fiscal.

Henrique Granadeiro (ex-gestor da Portugal Telecom)- cinco crimes: 1 crime de corrupção, 2 crimes de branqueamento e 2 crimes de fraude fiscal.

Armando Vara (antigo ministro e ex-administrador da CGD)- 2 crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento de capitais.

Diogo Gaspar Ferreira (ex-diretor executivo do empreendimento Vale do Lobo) – 2 crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento de capitais.

Rui Horta e Costa (ex-administrador de Vale do Lobo) – 2 crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento de capitais.

José Paulo Pinto de Sousa (empresário e primo de José Sócrates) – 2 crimes de branqueamento.

Hélder Bataglia (empresário) – 5 crimes de branqueamento.

Gonçalo Nuno Mendes da Trindade Ferreira (advogado) – 3 crimes de branqueamento.

Inês do Rosário (mulher do arguido Carlos Santos Silva) – 1 crime de branqueamento.

João Perna (ex-motorista de José Sócrates) – 1 crime de branqueamento.

Sofia Fava (ex-mulher de José Sócrates) – 1 crime de branqueamento.

Rui Manuel Antunes Mão de Ferro (sócio administrador e gerente de empresas) – 1 crime de branqueamento de capitais.

Lena Engenharia e Construções, S.A – 10 crimes: 1 crime de corrupção, 3 crimes de branqueamento de capitais e 6 crimes de fraude fiscal.

Lena Engenharia e Construções, SGPS – 2 crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento.

Lena, SGPS – 2 crimes: 1 crime de corrupção e 1 crime de branqueamento.

RMF- Consulting, Gestão e Consultoria Estratégica, LDA – 1 crime de branqueamento.