Caros leitores,
Continua sem haver fim à vista para todo este período tão negro na história da humanidade. Há cerca de 110 dias que o Hamas declarou guerra e lançou um caos raras vezes antes visto. Como as novidades sobre todo o conflito vão sendo escassas, isto porque os eventos militares que vão ocorrendo são mais do mesmo, decidi focar este artigo no ambiente interno que se vive em Israel.
No rescaldo de cinco eleições desde 2019, que culminaram com a reeleição de Benjamin Netanyahu numa altura em que o mesmo está a ser julgado por crimes de corrupção, suborno, fraude e quebra de confiança, o ambiente político que se vive neste pequeno país tem-se mostrado cada vez mais quente. Coligando-se com elementos de extrema-direita, anteriormente travados judicialmente de se candidatarem por comentários racistas e xenófobos, o líder do partido conservador Likud conseguiu formar um governo envolto em polémica e que muitas divisões tem criado em Israel. Pouco depois da coligação ter tomado posse, milhares foram os habitantes que fizeram as malas para emigrar para outro país, e outros ainda mais aqueles que semanalmente foram levando para as ruas os slogans e os gritos de revolta para com a presença de Bibi (alcunha de Netanyahu) à frente da nação – os primeiros protestos remontam a julho de 2020. Também houve vários militares de reserva que se recusaram a fazer os seus turnos nos últimos meses, em jeito de protesto para com os líderes do país e das suas ideologias.
Fazendo um avanço até ao presente, os locais descontentes com a liderança do atual primeiro-ministro tem aumentando exponencialmente, entre os quais membros do seu próprio partido, colegas de coligação, líderes das forças de segurança e de serviços secretos e a grande maioria da população. Por um lado, as famílias dos soldados e reservas mortos em combate e seus companheiros no atual governo, fazem pressão política para que a guerra contra o Hamas continue, até que o inimigo não tenha qualquer relevância militar ou política em qualquer perspetiva futura da vida em Gaza e na Cisjordânia. Smotrich e Ben-Gvir, dois dos principais responsáveis pela ‘salvação’ política de Bibi, vão ameaçando quebrar com a coligação e outras medidas mais extremas para ir mantendo um certo controlo sobre Netanyahu e aquilo que ele possa advocar no gabinete responsável pela guerra e pelo resgate dos hóspedes. São eles e os seus apoiantes aqueles que mais têm contra-protestado os milhões de cidadãos que marcham pelo chegar a um acordo para a libertação dos raptados, pelo demitir do primeiro-ministro ou pelo fim da guerra.
Por outro, tanto os amigos e família dos reféns, como outros tantos ateus e indivíduos que têm uma vida de coexistência com outros árabes muçulmanos, cristãos, druze, beduínos, etc., sentem que a resposta dada por este governo não só aos seus cidadãos que se encontram aprisionados nos túneis de Gaza mas também a todos que habitam em Israel, tem sido muito pouco aceitável. Para além da pouca compaixão e do pouco esforço mostrados pelas figuras maiores do governo em lidar com as populações em maior sobressalto neste momento – amigos e família dos reféns, residentes deslocados internamente (como eu e a minha esposa), donos de negócios privados em zonas de conflito militar ativo, e soldados e reservas seriamente feridos ou que têm hipotecado o sucesso das suas empresas para poder estar na linha da frente –, a economia e o custo de vida tem sofrido um abanão nos últimos meses, e os resultados obtidos após tantos dias de guerra têm sido menos contundentes do que aquilo que era esperado. Começa-se a questionar a alto e bom som a lógica do prosseguir da batalha em Gaza. Por maior que seja a dor que foi causada desde o dia 7 de outubro e a ‘justificação’ para continuar a iniciativa militar, ou o acreditar que só através de pressão militar é que o Hamas irá ceder (oxalá tivéssemos nós essa resposta, ou pudéssemos sugerir melhor alternativa), a verdade é que o número de fatalidades de cidadãos em serviço militar não para de aumentar, a esperança em regressar os ainda 136 reféns com vida vai escasseando (por muito face às condições crónicas de saúde que alguns padecem e às condições miseráveis com os quais têm de sobreviver), o peso emocional e financeiro de toda esta situação no cerne da população, e a falta de uma clara imagem de ‘vitória’ (claramente esta por muito passaria pelo sair de Bibi do seu trono) são mais que motivos para levar para o rua todo o descontentamento.
Toda esta divisão política consegue por vezes passar despercebida para quem vai na rua e tem interações bem agradáveis em qualquer esquina, café, loja, restaurante ou aonde for, e no início da guerra foi realmente posta de parte tal o trauma e na tentativa de nos mantermos unidos para ultrapassarmos este pesadelo juntos. Mas nesta altura sente-se a tensão no ar perante a expectativa do que será e do quanto este governo está interessado em manter-se vivo às custas do povo e dos que deram, voluntária ou involuntariamente, os seus corpos, empregos e locais de residência.
Quem está certo? Consigo eu vagamente entender os sentimentos que vão gerando todo este leque de reações, no entanto a meu ver há um dever moral primordial que deve ser o ponto de partida para qualquer solução para este imbróglio: Tragam os reféns de volta a casa com vida!