A ilha e o mar de contradições

Passaram-se 7 dias e há arguidos detidos na Madeira que ainda não foram sujeitos a 1.º interrogatório perante um juiz. O presidente do Governo da Madeira demitiu-se, mas não é bem assim. A Constituição proíbe a dissolução da Assembleia Regional, mas ninguém quer saber.

O que está a acontecer na Madeira é inconcebível.

A ‘Operação Zarco’ transformou-se num espetáculo sem descrição e até parece que tudo e todos entraram numa paranoia coletiva sem rei nem roque.

Ao fim de uma semana, o tem-te-não-caias de Miguel Albuquerque é um absurdo, a discussão sobre a dissolução da Assembleia Regional idem e só agora os arguidos detidos serem sujeitos a primeiro interrogatório ibidem.

Se a lei diz que alguém só pode ser privado da liberdade se for presente a juiz em 48 horas não é para ser apenas ‘identificado’ e ficar a aguardar mais uma série de dias em prisão ilegal – mesmo que a prática seja esta e leve o Conselho Superior da Magistratura (CSM) a propor a alteração da lei, como sucedeu esta semana.

O tempo que a investigação já leva (anos) e os meios empregues (incluindo a requisição de aviões da Força Aérea Portuguesa para levar centenas de inspetores da Polícia Judiciária para o arquipélago), bem como tudo o que já vai sendo do domínio público, se revelam uma inusitada propensão para o show off, também levam a crer que haverá mais do que fortes indícios da prática de crimes que justificam a atuação do Ministério Público.

Mas o que será que justifica a detenção do presidente da Câmara do Funchal na Madeira e a sua transferência para Lisboa para só prestar declarações na capital do Continente? Não podia ser ouvido na ilha? A Justiça madeirense não é a mesma Justiça da República? E uma semana volvida ainda aguarda inquirição pelo magistrado judicial competente?

O Conselho Superior da Magistratura veio sustentar a morosidade do primeiro interrogatório «com a complexidade do caso e com a dimensão dos elementos apresentados pelo Ministério Público, além do tempo necessário ao estudo destes elementos pelo senhor juiz e pela defesa».

Ora, se a lei determina 48 horas para qualquer detido ser presente (e interrogado) perante um juiz, não é admissível que tal privação de liberdade se prolongue por tempo indeterminado até que juiz e defesa entendam estarem reunidas as condições para a obrigatória diligência.

Simplificando, o princípio basilar e direito fundamental é o de que ninguém sem culpa formada pode ser privado da sua liberdade mais do que 48 horas. Tudo o mais está fora da lei.

O mesmo se passa com a crise política gerada pela inadiável demissão do presidente do Governo Regional madeirense.

Não se percebe, aliás, onde está o busílis que tanta discussão tem gerado na classe política e nos comentadores-palpiteiros: a Constituição
é perentória na afirmação da impossibilidade de dissolução do Parlamento nos primeiros seis meses de mandato. Logo, não há questão.

O representante da República não tinha, por isso, que perder mais tempo. Se Miguel Albuquerque (ainda que tarde e a más horas) apresentou a demissão, Ireneu Cabral Barreto já deveria ter chamado o partido mais votado nas últimas eleições, convidando-o a apresentar o nome do próximo chefe do Executivo. Não tem alternativa. O resto é uma brincadeira sem explicação.

O adiamento dos efeitos da demissão apresentada – à imagem do que aconteceu na República com António Costa, para viabilizar a aprovação do Orçamento para 2024 – é um disparate e não tem cobertura constitucional.

Dir-se-á que é o preço a pagar pelo facto de o Presidente da República ser professor de Direito Constitucional e, por isso, saber ‘manipular’ a Constituição a seu bel-prazer.

Até pode ser formalmente correto, mas nãoé materialmente admissível.

O espírito da lei fundamental (e dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados) é a sua inviolabilidade, a sua previsibilidade, a sua segurança.

Ao fazer-se tábua rasa das limitações constitucionais – como tem vindo sistematicamente a acontecer, desde as limitações à liberdade impostas durante a pandemia aos ‘arranjos’ para a aprovação do OE ou à justificação para se adiar o primeiro interrogatório de um arguido, ou a transferência de um detido das ilhas para o continente, ou o uso e abuso de recursos para obstaculizar a Justiça… –, o que se está a pôr em causa é todo o edifício do regime.

E quando vai da base (dos políticos e comentadores aos agentes da Justiça) ao vértice da pirâmide (seja a procuradora-geral da República, o Conselho Superior da Magistratura ou o mais Alto Magistrado da Nação, leia-se Presidente da República), a ameaça é dramática.

Na questão da Madeira, o debate chegou ao ponto de se atribuir ao Presidente Marcelo, mesmo calado, a ‘incoerência’ de seguir agora critérios diferentes no caso de Miguel Albuquerque, do Governo da Madeira
e da ‘Operação Zarco’ quando comparado com o caso de António Costa, da crise política na República com antecipação de eleições e da ‘Operação Influencer’.

Se os casos podem ser comparáveis (até pelo facto de Miguel Albuquerque e António Costa estarem ambos de «consciência tranquila»), a verdade é que as situações são manifestamente incomparáveis: desde logo, porque a Constituição impede a dissolução da Assembleia Regional na Madeira e não prevê a figura da dissolução diferida para momento oportuno.

E o estatuto autonómico reforça o parlamentarismo regional quando comparado com o semipresidencialismo da República.

Sublinhe-se, por outro lado, que a incoerência maior vem de quem agora defende a dissolução da Assembleia Regional e a convocação de eleições antecipadas na Madeira tendo condenado a decisão presidencial de dissolver o Parlamento e convocar legislativas antecipadas na República – que se impôs como inevitável após a demissão de António Costa face ao que estava em causa na ‘Operação Influencer’ e após a descoberta de milhares de euros na Residência Oficial de S. Bento.

São dois pesos e duas medidas que não interessa em que lado estão da balança.

Pior mesmo, só uma Justiça que não é cega num Estado que se reclama de Direito mas em que nem a Constituição é garantia do que quer que seja. 

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