Ilya Kaminsky. Uma conspiração contra o esquecimento

O livro de estreia de um poeta nascido em Odessa, e que juntamente com a família obteve asilo nos EUA, leva-nos de volta à ferida mortal do século passado, e à lúcida e dolorosa memória que entre si traficam aqueles que procuram restituir à música a palavra num mundo de onde os sinos foram arrancados.

Procurando desvelar os antecedentes que possam ter conduzido à emergência da grande prosa russa na segunda metade do século XIX, Joseph Brodsky admite que essa aventura, que parece ter surgido do nada, como se um efeito sem uma causa que lhe possa ser associada, na verdade foi simplesmente uma derivação da poesia russa desse mesmo século. “Esta estabeleceu o tom para toda a subsequente escrita em russo, e as melhores obras da ficção russa podem ser encaradas como um eco distante e uma meticulosa elaboração das subtilezas psicológicas e lexicais já antes demonstradas pela poesia russa do primeiro quartel desse século. ‘A maioria dos personagens de Dostoievsky’, como Anna Akhmatova costumava dizer, “não passam de protagonistas de Pushkin com mais uns anos em cima, Onegins e assim por diante’.”

Talvez toda a originalidade seja a distância a que somos capazes de carregar um eco. Pois se procuramos falar com a voz daqueles que mais nos perturbaram, se quisermos levar além essa inquietação, só nos resta esse exercício que passa por caminhar no limite de si mesmo. “Enquanto há ainda alguma luz sobre a página”, para nos servirmos de uma imagem do poeta de que aqui vimos falar, talvez nos seja possível ir mais longe, “vestindo o casaco de um estranho”. E se Brodsky parece convencido de que a poesia precede sempre a prosa, há momentos em que o caminho para o silêncio parece menos obstruído indo pela prosa. Numa expressão directa, enxuta, reservando uma boa dose de suspeita em relação a um excesso de relevo ou de ornamentos desnecessários, e até serve a uma consciência do que persiste como verdadeiramente essencial ou inescapável, esse fôlego desabrido da prosa, essa articulação que não pretende sacudir-nos de uma vez, mas se vai desdobrando e ressoando, abrindo caminho por entre o ruído do tempo.

Se “é do silêncio de uma época que a poesia se alimenta” (Eduardo Lourenço), num tempo em que a confusão dos géneros é tremenda, pode concluir-se que talvez seja necessário explorar esses limites em que poesia e prosa se tornam indiscerníveis. Hoje, diante de tanto do que nos surge escandido em versos, ficamos com a impressão de que certa predominância de espírito lírico ocorre justamente como uma tentativa de escapar ao silêncio, sem chegar a dizer nada. E todos preferimos aqueles escritores que não se dão ao trabalho de isolar certas frases, que em vez de ir passando a limpo, se entregam a uma gramática irregular, impetuosa, com frases que não querem nada coma perfeição, mas preferem ser leais a um ritmo febril, meio descontrolado, idiossincrático. Até porque muitas vezes nos damos conta de que o tal fluxo da consciência não deriva como parece da consciência ou sequer do inconsciente, mas da forma como as palavras em si mesmas, postas no papel, lançam uma sombra imprevista, desenham uma articulação inesperada e que nos oferece aberturas inesperadas, capazes de alterar e redireccionar o sentido que até ali nos levara.

Diante dos poemas de Ilya Kaminsky, temos muitas vezes a sensação deste gozo de um ímpeto que se permite variar o registo ou o tom, fazer-se valer da confusão dos géneros, indo ao encontro do desconhecido por associações inesperadas, sobreposições de vozes e acedendo ao sopro do acaso. Leia-se um poema como Turista Americano, que integra o seu primeiro livro, “Dançar em Odessa”, publicado em Outubro passado pelas Edições Cutelo, com tradução de Pedro Magalhães e Sara Veiga: “Numa cidade feita de algas marinhas, dançávamos num terraço, as minhas mãos/ por baixo dos seios dela. Subtraindo/ um dia ao outro, adiciono os tornozelos desta mulher// aos meus dias de expiação, o seu lábio inferior, os ossos que dão forma ao seus rosto./ Fazíamos amor todas as noites –/ eu contava-lhe histórias, os seus rituais de chuva: a felicidade// é dinheiro, sim, mas só as moedas pequenas./ Ela pediu-me para rezar, para me curvar/ perante Jerusalém. Curvámo-nos para a esquerda, vi// duas padarias, uma sapataria; o cheiro a forragem,/ o cheiro a cavalos e a forragem. Quando Moisés/ quebrou as tábuas sagradas no Sinais, os ricos// pegaram nos pedaços esculpidos com:/ ‘adultério’ e ‘matança’ e ‘roubo’,/ os pobres ficaram apenas com o ‘Não’, ‘Não’, ‘Não’.// Beijei-lhe a nuca, um cotovelo,/ esta mulher cujo esquecimento é uma conspiração contra o esquecimento,/ nua de galochas valsou// e até o seu gato valsou./ Ela disse: ‘Tudo o que é musical em nós é memória’ –/ mas eu não falava inglês, dancei// sentado, ela endireitou-se/ e curvou-se e endireitou-se, um tremor de música/ um tremor na sua mão.”

Como vemos, Kaminsky vai pelas bordas do sentido, num fluxo rápido e desordenado, obscurecendo as fronteiras entre a percepção, a sensação e a representação, e isto com uma linguagem que consegue combinar imagens poderosas, frases que ficam a ressoar, até por surgirem ligadas a outras bastante simples, balançando entre tempos e vozes para capturar esses aspectos mais frágeis, tão provisórios quanto tocantes, que dão espessura à vida. Como registou E.M. Kaufman, os poemas de Kaminsky movem-se por entre as vidas e memórias de outros, sejam aqueles que lhe são mais próximos ou outros a quem está ligado pela admiração, cruzando linhas comovedoras ou amargas de mundos perdidos”. No poema que abre o livro (“Oração do Autor”), interroga o que implicaria “falar em nome dos mortos”, assumir as suas memórias, “atravessar as ruas a perguntar ‘Em que ano estamos?’”… “Posso dançar durante o sono e rir// em frente ao espelho./ Até o sono é uma oração, Senhor,// louvarei a tua loucura, e/ numa linguagem não minha, falarei/ da música que nos desperta, da música/ em que nos movemos”. Todo o livro prossegue neste regime polifónico, numa meticulosa elaboração de elementos e fontes nem sempre claros, mostrando como um indivíduo arrasta em si essa conferência de estranhos deuses.

Nascido em Odessa, na antiga União Soviética, hoje parte integrante do território da Ucrânia, sendo actualmente um dos principais focos da invasão russa, no texto em prosa em que Kaminsky recorda como aos quatro perdeu a audição, depois de um médico ter diagnosticado erradamente a papeira como uma constipação, e como essa perda dos estímulos sonoros o fez começar “a ver vozes”. “Num eléctrico apinhado de gente, um maneta disse-me que a minha vida estaria misteriosamente ligada à história do meu país”, anota, e logo de seguida, uma década antes de a Rússia ter ocupado a península da Crimeia, dando início ao conflito entre os dois países, o poeta assinalava que “não é possível encontrar o meu país, os seus cidadãos reúnem-se em sonhos para realizar eleições”.

No poema seguinte, fala-nos “na história secreta da raiva”, lembrando que “o silêncio de um homem vive no corpo dos outros”, e ao ajustar contas com o seu passado, com esses ecos que carrega no sangue, este autor que chegou aos EUA em 1993, depois de a família ter recebido asilo político, começando a escrever em inglês antes mesmo de falar a língua, e logo depois da morte do pai, em 1994, reconhece ser na verdade natural de uma dessas “nações do vento”, sujeitas aos humores da história. E o “dançar” de que se fala no título é esse balanço de quem se entrega a um ritmo para não cair.

Os momentos mais conseguidos são justamente as lembranças que lhe ficaram dos seus familiares, como a avô que “arrastava a imaginação como um cobertor/ por sobre a minha cabeça” – essa avó que “compreendia/ a solidão, escondia os mortos na terra como guerrilheiros”, e como, num tempo em que a cidade tremia, lembrando um navio-fantasma a zarpar, a sua mãe dançava, e enchia o passado de pêssegos e guisados, aliando esses quadros afectivos a algumas homenagens a autores da sua estima, com destaque para Osip Mandelstam, a quem é dedicado um dos cinco capítulos do livro. Kaminsky fala de um orfeu moderno que “enviado para o inferno, nunca mais voltou, enquanto a sua viúva o procurava ao longo de um sexto da superfície terrestre, agarrando a panela com as canções dele enroladas lá dentro, memorizando-as durante a noite para o caso de serem encontradas por Fúrias com um mandado de busca”. A elegia que lhe dedica, e no chão da qual “as suas palavras pelo chão são os esqueletos de pássaros mortos”, vai sendo interrompida por breves anotações em que nos recorda algumas das etapas da desventurada existência do poeta russo, que tinha fama de maluco, mas que assustava, e segundo se conta, terá murmurado versos até ao último minuto, tendo morrido de fome, de distrofia depois de ser condenado por actividades contrarrevolucionárias a cinco anos num campo de trabalhos forçados.

Trata-se de uma elegia extraordinária, na linha do que de melhor colheram aqueles lábios procurando palavras belas no meio do terror do século passado, algum sustento para o espírito, “um naco de sol e um pingo de mel”, uma possibilidade ainda de respirar com prazer, ao abrigo de um ritmo vibrante. Assim, e sobre o prodígio desses magníficos sobreviventes, Kaminsky assinala esse ânimo que atinge aqueles que resistem e alcançam uma espécie de beatitude, e que perdem a vida ainda de pé, dançando nos braços do horror, e que conseguem entregar o último fôlego a uma variação inesquecível, esse “êxtase nas vogais”, que morrem sem que lhes seja arrancada a sua ardente razão: “O poeta é uma voz, creio, como Ícaro,/ murmurando para si próprio enquanto cai”, diz-nos ele. Isto logo depois de uma anotação em que nos recorda como certa vez Mandelstam atirou um aluno pela escadaria abaixo por reclamar do facto de não ter sido editado, enquanto lhe gritava: “e Safo, foi? E Jesus Cristo?”

É um longo e estrondoso poema, que eleva o perfil de Mandelstam não como mais outra vítima consumida pela ferida mortal daquele século, mas como um desses homens capazes de acatar o martírio por não abrirem mão daquele traço de dignidade fabulosa que faz com que um homem brilhe na sua “miséria poderosa”, vivendo tranquilo e consolado, apesar de toda a dor e perda que lhe possam causar. “Ele acreditava no ser-humano. Não conseguiu/ curar-se/ de Petersburgo. Recitou de cor/ números de telefone/ dos mortos// Oh, o que ele contava em voz baixa! –/ as palavras por dizer tornaram-se vestígios de ilhas.” Há uma sabedoria que se alcança precisamente por se ser um desses homens que os poderosos procuram arrancar como ervas do seu caminho, e que tornam tão íntimo os seus passos e as suas dores sobre esta terra, que mesmo debaixo dela soam como uma acusação essas vogais nas quais deixaram as marcas dos seus dentes. Kaminsky fala-nos na “deliciosa carne do sacrifício”, nessas histórias que persistem e fazem dos grandes carniceiros os seres mais ridículos. No fim, tudo o que deles paira ainda neste mundo, fede.

Há outras homenagens, outros poetas evocados, um capítulo dedicado a esses “músicos itinerantes”, os mortos em nome de quem procuramos falar, Celan, Brodsky, Isaac Babel e Tsvetáieva, e o livro encerra com um poema chamado “Louvor”, em que uma vez mais fica claro porque este poeta, com apenas dois livros, publicados com um intervalo de 15 anos, conseguiu esse feito raro de ser aclamado de forma entusiástica pelos seus pares: é a admiração, esse encanto e reverência que chega a tornar-se obsidiante e perigosa, mas que é também a forma mais poderosa de levar por diante um eco capaz de sobrepor-se muito mais tarde ao pó e ao tédio.

É esse também o elo que separa um verdadeiro poeta de outra dessas decrépitas sentinelas. Essa capacidade de refazer o próprio sangue, e sustentar assim um sopro ancestral, levando-o adiante, para trazer vida a novas coisas belas. “Nas minhas veias”, escreve Kaminsky, “longas sílabas apertam as suas cordas, chuvas surgem/ a partir do iídiche/ do século XVIII ou de uma linguagem mais sombria em que a imaginação/ é a única palavra.” É esta força de tornar presente e restituir à vida quem lhe foi arrancado pelo compromisso absoluto que assumiu com ela. “A palavra à carne unida”, como escreveu Mandelstam. Kaminsky prossegue, assim, o relato da história desse homem que foge e é capturado, falando em seu nome, ou vendo-o através dos olhos da sua mulher de 19 anos, e viúva de 42: “enquanto morro, caminho descalço pelo meu país,/ aqui o Inverno edifica a mais vigorosa/ solidão, os tractores transformam-se em centauros/ e galopam por entre um discurso singelo:/ tenho vinte e três anos, vivemos num casulo,/ as borboletas estão a acasalar./ Osip põe os dedos no fogo;/ levanta-se cedo, anda de um lado para o outro/ de sandálias. Escreve devagar. O quarto/ enche-se de orações. Traças/ observam-no a partir da janela. Enquanto a sua língua/ passa sobre a minha pele, vejo-lhe/ o rosto a partir de baixo, a sua dolorosa lucidez”… Lemos estes versos e o corpo de Mandelstam parece resistir ainda neste mundo, às voltas nalgum quarto, escrevendo: “O corpo me é dado – e com que fim,/ Meu corpo único, tão de mim?// Pela alegria chã de respirar,/ Silenciosa, a quem devo louvar?// Sou jardineiro e sou flor – cativo/ Na prisão do mundo sozinho não vivo.// E já nos vidros da eternidade/ Cai meu calor, meu sopro respirado.// Nela se grava um desenho para sempre,/ Irreconhecível de tão recente.// Escorra do momento a água turva –/ O desenho amado não esbate à chuva.”