Este livro é resultado de um trabalho feito para o Expresso “Como André se fez Ventura”…
Começou tudo com um trabalho para a revista do Expresso em 2021 já com o objetivo de fazer um podcast sobre André Ventura, só dois anos depois é que faço o podcast ‘Entre Deus e o Diabo’ e o livro é fruto dessa investigação. O livro tem partes novas e uma nova entrevista com ele.
E o timing é pertinente, tendo em conta as eleições…
A questão é que André Ventura é um fator de disrupção de um sistema que esteve sempre assente em dois partidos, sistema esse que tem agora um terceiro que complica tudo e, quer se queira, quer não, André Ventura condiciona tudo à direita e tem efeitos na esquerda, porque mesmo que tenha a votação mais baixa que aparece nas sondagens – e estamos a falar de 15% – já representa uma mudança estrutural no sistema partidário português, acrescido do facto de ser um partido de natureza de direita radical populista.
E André Ventura de hoje é diferente daquele que conhecemos inicialmente nos comentários desportivos da CMTV?
Uma coisa que achei muito interessante e que até me surpreendeu – muitos não quiseram falar dele, quer quem o conheceu na juventude, quer nos jovens católicos, quer na advocacia e quer na faculdade – é que aqueles com quem consegui falar em on e em off ninguém relaciona este André Ventura com o André Ventura que conheceram, tirando um aspeto que é o facto de ter uma grande capacidade de comunicação. Agora, considerando o conteúdo do que diz e do que pensa, não há ninguém que me tenha dito que ele era um radical e que tinha ideias xenófobas. Era um conservador que se enquadrava no PSD, mas não se distinguia por ser excessivamente conservador dentro do mundo católico que frequentava. A minha conclusão é a de que o Ventura que vemos aqui é a construção de uma personagem que anda sempre à procura do sucesso.
Com o objetivo de captar votos?
Em captar votos agora, isto é, depois de se dedicar à política. A questão é que ele é um fura-vidas que tentou ter sucesso na igreja, mas depois não seguiu, na escola teve 19 e foi um aluno brilhante, tentou o sucesso enquanto jurista, teve uma tese de doutoramento bem classificada, depois tentou esse sucesso pela via da literatura, em que escreveu dois livros e não conseguiu, e depois tentou pela televisão. E quando chegou à televisão insinuou-se junto das pessoas e conseguiu ter algum sucesso. O mais surpreendente é que hesitou muito em fazer o programa de futebol na CMTV por achar que isso lhe tirava credibilidade. A um político populista, a última coisa que o preocupa é a credibilidade e, por isso, não se importa de mentir, de dizer uma coisa agora e depois outra, a credibilidade não faz parte do que os eleitores valorizam neles. Ele estava preocupado com a sua credibilidade por ir comentar desporto e só depois é que se apercebe da questão da política e a política só aparece depois de Loures.
Numa altura em que a notoriedade política do líder do Chega foi projetada a partir de um estudo inventado ou manipulado para dar a sensação de que a insegurança em Loures era causada pela comunidade cigana e que foi subindo até aos dias de hoje…
Ele tem esse momento, em que se começa a definir e é nessa altura em que se apercebe que pode ir longe quando inventa a questão dos ciganos. Ele fazia visitas aos bairros, eventualmente acompanhado pela Polícia, e dá uma entrevista ao i ao Sebastião Bugalho dizendo que tem um estudo que afirma que a preocupação das pessoas em Loures estava relacionada com os ciganos, mas não o mostra a ninguém. Haveria um estudo sobre insegurança, mas não fala de ciganos. Mas isso serve para ‘vender’ a entrevista e, a partir daí, as próprias reações dos líderes políticos acabam por fazer dele uma figura nacional de terceira linha. Nessa altura, já queria criar um partido populista e começa a usar a notoriedade que tem na televisão junto de um certo tipo de pessoas, junto de um eleitorado para se tornar conhecido e ir por aí fora.
Daí afirmar no livro que Ventura surfa a onda que em cada momento lhe é mais favorável?
Ele copia muito os líderes populistas estrangeiros e a direita radical estrangeira. Com a criação do Chega, apresenta políticas de bandeira como a castração química, a pena perpétua e os ciganos, que colam muito com um certo tipo de eleitorado, agora deixou cair isso praticamente. Tem umas coisas no programa, mas uma coisa é o programa, outra é o seu discurso, em que está agora numa outra fase. Ventura vai para o lado onde tem mais oportunidades, ele é um oportunista político, vê as oportunidades e vai para onde lhe dá mais votos. Ventura deixou de falar nesses temas e passou a falar da imigração porque é aquilo que está a dar. A uma certa altura, perguntei-lhe se ele se vai radicalizar ou se vai moderar porque precisa de ser aceitável pela outra direita para se poder coligar, porque, ao não haver um acordo à direita, tem de responsabilizar o PSD e, por isso, não pode aparecer como radical. E para se tornar numa pessoa frequentável tem de mudar esse discurso e adapta-se ao que é preciso.
Mas não ajuda ao dizer que PSD é uma “espécie de prostituta política”…
Esse tipo de linguagem não se enquadra neste tipo de estratégia, mas em todo o caso foi menos agressivo no debate com Luís Montenegro do que foi em outros, porque precisava, apesar de tudo, de não aparecer como o responsável por não haver um acordo com o PSD para o eleitorado penalizar o PSD e não o penalizar a ele. Ventura perdeu algumas causas radicais das quais era conhecido, mas não perdeu a linguagem radical, porque é essa linguagem que o leva a um certo tipo de eleitorado que gosta de ouvir essas coisas. A estratégia é basicamente a seguinte: há uma conversa de café e ele sabe ler isso muito bem e diz às pessoas o que elas querem ouvir e o que dizem no café. As pessoas sentem-se validadas porque diz aquilo que as próprias pessoas pensam.
Como é o caso dos rendimentos mínimos?
Agora, há temas mais flagrantes, como a questão dos imigrantes e da Segurança Social, em que apresentou uma proposta segundo a qual, para que os imigrantes possam ter benefícios da Segurança Social, só os podem ter ao fim de cinco anos de descontos. Vai dizendo coisas que colam no eleitorado que consegue ir captar.
E isso vê-se pelas sondagens…
Nas sondagens pode duplicar ou mais do que duplicar. Se tiver 15% duplica. É incrível, os partidos tradicionais já deviam ter feito uma enorme reflexão sobre onde é que estão a falhar, porque o que estas sondagens mostram é que há um sentimento de revolta em relação aos partidos tradicionais. Há muitos eleitores do Chega que vêm da abstenção, levando essas pessoas a votar. É um voto contra o sistema. O PS e o PSD deviam pensar bem no que é que têm andado a fazer para estarem a alimentar isso.
Assistimos a um crescimento de um partido que ninguém estava à espera ou já seria previsível?
Às vezes vinham cá jornalistas estrangeiros e achavam esquisito como é que não havia um partido populista em Portugal. Havia uma série de explicações, mas nenhuma delas era correta: ou porque o PCP servia de travão ou porque o CDS funcionava como uma parede e conseguia absorver a direita mais de direita, mas isto não é uma questão de direita. As pessoas que votam não são de extrema-direita, são pessoas que estão contra o sistema e que não se sentem representadas pelos partidos tradicionais.
É um voto de protesto?
Diria que o que alimenta o Chega é mais um voto de indignado do que um voto de protesto. Acho difícil as pessoas votarem no Ventura por pensarem que vai governar, porque geralmente as propostas dele são do contra, mas vai copiando os modelos de extrema direita. Fiz uma análise ao congresso do Chega e juntando aquelas parcelas todas é o retrato dos partidos da direita radical europeia.
Mas se esta ideia de personagem for desmontada, irá captar menos votos…
Acho que não, porque para já é muito desafiante para o jornalismo, pois não se sabe como se deve tratar o Chega. Quando fiz o podcast muita gente criticou porque achou que estava a dar palco, mas o que é certo é que é uma realidade que existe e o que os jornalistas têm de fazer é descortiná-la como fazem aos outros, mas com um especial enfoque sobretudo na parte da desinformação, que é uma estratégia central deles: desinformação, mentiras e exploração de preconceitos com dados que não são verdadeiros e aí o jornalista tem um papel muito importante. O problema é que as pessoas que eles impactam não leem jornais e se calhar não veem televisões que fazem esse tipo de trabalho. E, por isso, as pessoas que impacta e que ouvem aquele discurso não vão verificar se ele diz a verdade ou não. O The Washington Post e The New York Times aumentaram as suas assinaturas quando Trump ganhou, mas o facto de terem aumentado não impediu que ele crescesse ainda mais, porque os seus eleitores não liam esses dois jornais. Um investigador holandês já admitiu que a direita radical veio para ficar e não há guiões para lidar com esse tipo de partidos, porque eles alimentam-se de tudo, faça-se o que se fizer.