Manuel Soares: “Parece que toda a gente se esquece do crime de ocultação de riqueza”

A despedir-se da presidência da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares afasta novos cargos com protagonismo público e confessa não ter ficado surpreendido com os programas dos partidos para a Justiça, cheios de ‘propostas vagas e redondas’.

Já teve oportunidade de ler os programas eleitorais dos partidos?

Já passei os olhos por todos, não fiquei muito impressionado.

Não é desta, portanto, que haverá mudanças e uma reforma na Justiça?

Tendo em conta os problemas principais da Justiça, os partidos – todos sem exceção –, para não se comprometerem muito antes das eleições, defendem-se com propostas vagas e redondas. Mas há lá uma ideia interessante e óbvia, que é da AD, podia ser de outro partido, mas é deles.

A AD propõe a criação de uma comissão permanente para a Justiça, a funcionar na Assembleia da República.

Acho que isso faz mesmo falta. Qualquer estrutura que pense a reforma da Justiça, com tempo e de uma forma alargada, afastada de interesses partidários conjunturais do partido A ou B, e que apresente uma proposta bem fundamentada para que os partidos possam, no Parlamento, discutir e aprovar, é bem-vinda. Nós temos interlocutores. Nestes seis anos já estive 20 ou 30 vezes em reuniões com os grupos parlamentares. Da última vez, até pensei para mim: ‘Bolas, mas eu já disse isto tantas vezes, será que não ouviram?’.

Pelo menos, foram aproveitadas nos programas eleitorais algumas das propostas que a ASJP. Isso surpreendeu-o?

Apenas significa que os interlocutores existem, ouvem as mensagens, penso que as ponderam, mas, depois, politicamente não dão sequência a nada. Na última reunião parlamentar que tivemos, penso que foi com o Chega, levamos um programa que dava para todos os partidos. Como as propostas dos juízes são política e ideologicamente neutras, cada partido com o seu programa ideológico tem onde se inspirar. Portanto, se tivessem interesse e dessem atenção, com certeza já teriam feito as reformas necessárias para a Justiça.

O programa da AD mostra abertura para uma série de coisas de que tem falado: rever as regras da fase de instrução, enriquecimento ilícito, os recursos, até encurtar despachos, sentenças…

Já temos um crime na lei que cobre quase todas as situações que a criminalização do enriquecimento ilícito poderia abranger. Mas acho que o MP ainda não percebeu bem. E os partidos que aprovaram a lei por unanimidade parece que já o esqueceram. Vou-lhe dar um exemplo abstrato. Imagine que sou presidente de câmara, primeiro-ministro, chefe de gabinete ou juiz e há uma suspeita contra mim. A Felícia Cabrita é da PJ, vai a minha casa e encontra 100 mil euros. A criminalização do enriquecimento ilícito visa perceber se esse dinheiro tem proveniência ilícita. A lei partia da presunção que sim e eu é que tinha de fazer a prova. Isto, como já se viu, não passa no Tribunal Constitucional (TC). Mas temos na lei o crime de ocultação de riqueza. E, neste exemplo que lhe dei, o MP só tem de provar que o dinheiro é meu e que não o declarei. E, para provar, basta ir confirmar na declaração de rendimentos e património que apresentei antes no TC. O TC não quer saber se o dinheiro é lícito ou ilícito, apesar de essa parte poder ser também investigada, mas neste caso havia já um crime punível com cinco anos de prisão.

Pelos vistos, há juízes que também não leram a nova lei. No caso da Madeira, existem muitos depósitos em numerário que não foram declarados ao Fisco, não se sabe a sua origem, a investigação ainda não estabeleceu a ligação de causa efeito, limita-se a constatar, mas o juiz também não retirou qualquer conclusão.

Tudo depende da indiciação que o MP leva ao juiz de instrução. Se o MP disser que essa pessoa tem este dinheiro e não o declarou e, portanto, cometeu o crime da lei das Obrigações Declarativas, o juiz vai ter de apreciar. Mas eu tenho chegado à conclusão que normas aprovadas no Parlamento, em determinados casos, não têm tido por parte dos magistrados leituras muito atentas. Portanto, não é necessário criar nova alhada com o TC, com uma coisa que é inconstitucional, quando temos na lei um mecanismo que permite cobrir as mesmas situações.

Curiosamente, quer a AD quer o PS propõem que seja implementada a ‘pegada legislativa’, ou seja, a obrigação de publicar no portal do Governo as várias etapas de um processo legislativo e administrativo. Parece um tiro certeiro na ‘lei malandra’, da Operação Influencer.

Isso não sei. Mas é evidente que, no exercício de funções públicas, as pessoas que têm a responsabilidade de distribuir dinheiro, seja através da adjudicação de obras, de contratos, até da aprovação de leis ou regulamentos que vão refletir-se positivamente no negócio de uma determinada empresa e, se houver suspeitas de que algum ato ilícito foi praticado, é importante conseguir perceber o percurso que existiu antes do ato relevante. Por isso, os mecanismos que tornem esse percurso conhecido ou mais transparente são positivos. Sobretudo se passar a ser obrigatório, por exemplo, divulgar as agendas, as reuniões, as pessoas que estão nas reuniões, o objetivo da reunião. Se houver uma reunião que não tenha sido divulgada isso é um indício de que qualquer coisa menos apropriada aconteceu.

Nem o PS nem a AD dizem claramente se querem mudar a forma de nomeação do procurador-geral da República (PGR). Mas a designação do próximo PGR é a primeira grande decisão que o próximo Governo, tendo como pano de fundo casos que causaram muitos estilhaços políticos, vai ter de tomar na Justiça. Não é irónico?

É verdade. Mas eu não vejo que haja necessidade de mudar a forma de designação do PGR. O problema não está aí. O poder político, numa nomeação que é concertada entre o Executivo e a Presidência da República, escolhe uma personalidade que considera adequada para o exercício do cargo. Podem acertar ou não, mas isso acontece sempre que se escolhe alguém. E essa forma de nomeação garante bem que o procurador, ou procuradora que é nomeado mantém um grau de independência em relação ao Executivo. Evidentemente que há um vínculo ao Executivo: o Executivo aprova, nomeadamente, a legislação de atribuição de prioridades na investigação criminal e isso vincula a PGR. Mas não acho que os problemas, uns reais e outros imaginários, que se podem apontar quer à atual procuradora quer aos anteriores resultem da forma de nomeação. Também temos pessoas eleitas para cargos por iniciativa parlamentar – por exemplo, os juízes do TC – e não é por isso que deixam, e com certeza muitas vezes injustamente, de ser acusados de terem ligações ao PS ou PSD. O Parlamento também já mostrou que é capaz de desvirtuar a forma de eleição nomeando pessoas de forma a dividir os lugares entre um partido e outro. Portanto, a forma de eleição pelo Parlamento também não é perfeita.

Encontrou alguma proposta eleitoral que seja atentatória de direitos humanos ou inconstitucional?

O que me está a perguntar remete imediatamente para o programa do Chega, não é?

Pedem prisão perpétua, castração química…

Evidentemente que há ali propostas que chocam com os princípios constitucionais. Apesar de argumentarem que a pena nunca seria perpétua porque estaria sujeita a um grau de avaliação, acho que a nossa Constituição não permitiria que algumas propostas dessas passassem. Mas o Chega também tem uma proposta de revisão constitucional, não é? O Chega tem legitimidade para apresentar as propostas que quiser e, amanhã, se vier a fazer parte de uma solução de Governo, seja lá qual for, e tiver influência nas propostas legislativas, tem de saber, como qualquer partido, que há um Presidente da República e outras entidades que podem mandar as propostas ou a legislação aprovada para o TC, que verifica se há ou não violação da constituição.

Os arguidos detidos na Madeira aguardaram 21 dias pela decisão do juiz. Nunca tal aconteceu em processos mediáticos. Temos aqui um problema, não acha?

Claro. No plano objetivo, isso pode dever-se a vários fatores. Pode resultar da complexidade do processo, do facto de o MP ter indo apresentando documentos ‘aos bochechos’, de o juiz poder ser mais minucioso, mais formalista, dos arguidos terem falado mais tempo do que seria de esperar ou de os arguidos terem sido confrontados, um a um, com cada escuta, com cada documento, e isso ter demorado mais. A causa dos 21 dias pode ser uma destas coisas ou estas coisas todas juntas. Mas, objetivamente, 21 dias é excessivo. Como é que isto se podia resolver? Pelo que fui vendo na imprensa e, nomeadamente, das declarações de um dos advogados dos arguidos que explicou como tinha sido o processo de interrogatório, fiquei com a ideia de que o juiz, mesmo que entendesse, a meio do interrogatório, que aquilo não ia dar prisão, tem o entendimento que a lei não o permitiria libertar. E isso não é uma coisa isenta de dúvidas! A lei diz: ‘interrogatório judicial de arguido detido’. Ou seja, não é certo que a lei permita que o arguido deixe de estar detido antes do interrogatório terminar. E por isso é que eu já escrevi que devíamos encontrar uma forma de colocar na lei, de uma forma expressa, a possibilidade de o juiz, se perceber a meio do interrogatório que vai haver demora e que a pessoas em causa não vai fugir, mandá-la, por exemplo, para casa com a obrigação de comparecer ali todos os dias no tribunal.

Mas estamos a falar num inquérito, como a senhora PGR disse no comunicado, que já não está em segredo de justiça. Justificam-se estas detenções?

Isso é uma questão prévia. O MP, nesse comunicado, diz: há aqui um excesso da parte do juiz. Mas o excesso pode ter começado na Madeira. Ou seja, era preciso deter aquelas pessoas para primeiro interrogatório? Não sei por que foram detidas, presumo que isso deve estar explicado no processo. A lei diz que a detenção é uma medida excecional, só deve ser usada se houver razões para acreditar que as pessoas uma vez notificadas não se apresentam voluntariamente a tribunal.

Parece que sem detenções não há caso. No processo Face Oculta, por exemplo, além do empresário Manuel Godinho, não houve outro detido e, no entanto, foi uma investigação exemplar.

Mas temos tido investigações em que há pessoas acusadas e condenadas que não estiveram detidas, nem foram presentes a interrogatório desta forma, e temos visto pessoas que foram detidas com muita visibilidade e não foram ainda condenadas, embora nos casos mais recentes que estamos a discutir a procissão ainda vá no adro. O poder judicial ainda não se pronunciou. É preciso ter em atenção que o poder judicial fala em vários momentos. No caso da Madeira, o MP, entidade que conduz a investigação, apresentou a promoção ao poder judicial, que por sua vez se representa a duas vozes: houve a decisão de primeira instância e haverá a do Tribunal da Relação, que dirá em definitivo se a detenção foi exagerada e se o MP tem indícios ou não. Nós é que queremos comentar logo tudo e achar que o mundo está resolvido a cada passo do processo, mas os processos judiciais são feitos de certezas provisórias: umas vão-se confirmando e outras alterando.

Como aconteceu na Operação Marquês, em que, apesar de o acórdão da Relação vir dar razão ao MP, ainda se fazem apostas para saber qual dos dois juízes tem razão?

O que prova que crucificar o MP ou endeusar o juiz, ou crucificar o juiz e endeusar o MP até haver uma decisão final é precipitado. Nesse caso, se bem se lembra, toda a gente caiu em cima do MP porque tinha feito uma acusação megalómana, pois chegou ao juiz de instrução e caiu tudo. Foi à Relação, que disse que nem tudo o que o MP pôs na acusação tinha pernas para andar.

Não é bem assim. Deu razão basicamente em tudo!

Bom, consideraram que tinha pernas para andar. E, aí, foi tudo ao contrário: afinal, era o juiz de instrução que não percebia nada daquilo e o MP já tinha razão. Por isso, como disse há pouco, o processo é um conjunto de certezas provisórias. Se quisermos a cada momento comentar o processo como se já fosse a certeza definitiva, arriscamo-nos a, um ano mais tarde, termos de engolir as palavras que dissemos.

Voltando aos 21 dias que os arguidos do caso da Madeira estiveram detidos, isso depois dá ideias à classe política. A AD ainda foi a tempo de colocar no seu programa a proposta de fixar no Código de Processo Penal o limite máximo de 72 horas para uma decisão do juiz após detenção e a possibilidade de intervenção de mais do que um juiz se necessário. Acha viável?

Ai é? E se for detido um grupo de terroristas que estão a ser investigados por estarem a preparar um atentado? São todos estrangeiros. Chega ao fim das 72 horas e o juiz diz: ‘Olhem, os senhores tiveram sorte, fujam lá para o estrangeiro, foi um gosto, nós não conseguimos acabar isto a tempo. Vejam lá se para a próxima fazem o atentado noutro país!’. Não pode ser, não é?

Quer dizer que isto é o exemplo típico de medidas tomadas ‘a quente’ pelo poder político quando a Justiça lhes bate à porta?

Não precisamos de uma medida dessa natureza, de impor um limite a partir do qual o interrogatório não pode continuar. Mas pode-se criar uma outra norma que permita que, quando for justificado que o interrogatório continue, a pessoa não tenha de ficar detida. Imagine que era possível colocar uma pessoa que vai estar sujeita a um interrogatório durante 20 a 30 dias na sua residência, com pulseira eletrónica. Qual era o mal para o processo? Ou seja, há medidas menos invasivas da liberdade e dos direitos sem ser uma detenção. Por isso, penso, que a lei precisaria aqui de uma clarificação, para não chegarmos a medidas mais radicais como essa das 72 horas. Porque para isso bastava o advogado dizer ao arguido para ele falar durante 72 horas sem se calar.

E é nestes momentos que aparecem as figuras do costume com ideias bastante duvidosas. O ex-presidente do PSP, Rui Rio, trouxe novamente ao debate a velha ideia da reestruturação dos conselhos superiores das magistraturas.

Sim, do MP. Mas Rui Rio, desde que foi presidente da Câmara Municipal do Porto, tem um historial muito tenso com as instituições da Justiça.

Para que as pessoas percebam, Rui Rio, e foi o Manuel Soares quem denunciou o caso, foi acusado por duas vezes por uma procuradora da República quando era presidente da Câmara. Acabou despronunciado e aí lembrou-se de pedir ao PGR que castigasse a magistrada.

Na altura, o PGR era Pinto Monteiro. Denunciei isso porque tomei conhecimento do assunto, numa reunião, entre a Associação Sindical dos Juízes e o PSD – onde não há qualquer compromisso de reserva, porque é de esperar que uma associação preste contas aos seus membros, tal como é de esperar que as pessoas do PSD, se eu lhes transmitir alguma informação que seja importante para os membros do partido, o comuniquem. Portanto, Rui Rio, que tem toda legitimidade para fazer essa proposta, se se quiser queixar de ela não ter avançado que vá falar com o PR e com os partidos, que recusaram discutir sequer a proposta, e não ande a queixar-se dos juízes ou dos procuradores. A composição dos Conselhos Superiores dos magistrados pode ser mexida, isso não é nenhum dogma, desde que seja positiva e não seja uma forma de introduzir no MP um fator de controlo político através do Executivo, para que, sempre que houver uma investigação, poder vir alguém dizer ao PGR que uma determinada investigação não é conveniente.

Curioso é que só se fala em reformas da Justiça nestas circunstâncias e, quando analisamos as propostas eleitorais, encontramos muitas palavras bonitas, mas é sobretudo ‘palha’.

Ainda há nos programas eleitorais uma certa preocupação em ver se o período da instrução criminal deve ter o mesmo conteúdo e se deve ser reduzido. Nós achamos que deve. É que nós já fizemos, como país, um grande erro que foi transformar a instrução numa antecipação de um julgamento. E agora, com estes últimos casos, já começamos a ver uma tendência que é trazer isso cada vez mais para trás, para o interrogatório! Se não fizermos nada, daqui a uns tempos, ficamos um ano no primeiro interrogatório e a fazer uma pré-instrução que por sua vez depois é um pré-julgamento. Não há nenhum sistema que aguente isto! Portanto, temos de discutir se todos estes passos estabelecidos para respeitar os direitos e as garantias precisam de ter essa extensão e esse conteúdo todo, apesar de a lei dizer que a instrução não precisa de demorar 2 ou 3 anos a verdade é, que na prática, ela demora e vai demorar sempre a não ser que se altere a lei.

Partilha da perplexidade manifestada pelos antigos procuradores-gerais da República Cunha Rodrigues e Souto Moura sobre a envergadura da operação de buscas na Madeira, com recurso a meios da Força Aérea?

Não, não partilho nada. Aliás, nem percebi. Que eu saiba, a PJ já fez operações com centenas de pessoas. Não conheço nenhuma norma que impeça de se fazer uma operação dessas numa região autónoma e também não sei como é possível mobilizar cem ou 200 pessoas para uma região autónoma sem ser de avião. Queriam o quê, que as pessoas fossem na TAP, dez de cada vez, e depois ficava lá o aparato todo à espera? Estas coisas precisam de segredo, de eficácia, de serem bem preparadas, não vejo nenhum mal em mobilizar aviões da Força Aérea. Se me perguntar se gostei de ver lá as televisões, não, isso não.

Mas tem memória de uma operação desta envergadura e com este impacto ser lançada em pleno período eleitoral?

Não tenho memória, mas a escolha do momento das operações deve ser pautada por critérios legais e não por critérios de oportunidade ou de conveniência. Mas não consigo acreditar na tese da cabala, na ideia de que os procuradores e os polícias se reúnem num sítio escuro a combinar uns com os outros atacar o poder político: hoje é o dia do PSD, amanhã é o dia do PS. Aliás, se isso acontecesse, também tinham de combinar com os juízes de instrução, com os da Relação.

Então, que lições se devem retirar do processo da Madeira depois do burburinho que se levantou nas últimas semanas?

Nenhumas. Porquê retirar lições de um processo que ainda está numa fase inicial?

Mas é normal haver posições tão antagónicas?

São antagónicas agora. Se amanhã a Relação vier a dizer que o despacho do juiz está errado, que há indícios e que se deve repetir o interrogatório para aplicar medidas de coação, deixam de ser antagónicas. Ou seja, a posição do juiz de instrução ainda não é definitiva.

Mas parece que está instalada uma guerra entre juízes e MP. Também  se soube que o juiz de instrução da Operação Influencer rebateu ponto a ponto o recurso do MP para a Relação. Também não tenho memória de isto alguma vez ter acontecido.

Vamos lá ver. Sempre que há um recurso com certas características, como é este, está previsto na lei que o juiz tem um momento para reparar a decisão ou sustentar a decisão – e isso é processualmente legítimo. Não é normal é que isso saia nas páginas dos jornais. Não sei se esse juiz noutras decisões fez o mesmo. Aqui, pelos vistos, considerou que devia sustentar a decisão que tomou com os argumentos que considerou importantes face à argumentação que estava no recurso – e isso não tem nada de anormal. Quanto à questão da guerra entre MP e juízes, acho que não existe. Os juízes não têm de andar de braço dado nem aos beijinhos com os procuradores nem com os advogados. O juiz do processo tem uma posição supra- interesses e deve atuar em consciência. Quando o MP pede alguma coisa ao juiz, o juiz umas vezes diz que sim e outras diz que não. Com os advogados, é igual. E umas vezes perde-se melhor, outras pior. Ou seja, há bom perder e mau perder. Se as pessoas ficam incomodadas, é a vida. Também não me pareceu correto, e a Associação dos Juízes reagiu a isso, que numa situação como esta do processo da Madeira a comunicação da PGR apontasse a pistola ao juiz dizendo: a culpa foi daquele senhor. Porque ainda não sabemos com todos os pormenores porque houve a demora dos 21 dias e se os indícios do MP são sustentados ou não. O MP, legitimamente, entende que sim. Legitimamente, o juiz entendeu que não. Legitimamente, a Relação vai decidir.

Em novembro, após a demissão de António Costa na sequência da Operação Influencer, disse que era ‘excessivo e prematuro pendurar o MP no pelourinho’. Desta vez considerou que, pelo alarme público provocado, que a PGR deveria vir à liça e tranquilizar os portugueses. O que é que mudou?

A PGR deve, quando os casos suscitam alarme, esclarecer o que se passou dentro do que lhe é possível. Agora fez e, a meu ver, bem. O comunicado da PGR tinha um aspeto muito importante, que o poder político e os comentadores ou não leram ou fingiram que não leram: resulta claro do comunicado que a hierarquia funcionou e que o trabalho em equipa funcionou. Ou seja, não se pode dizer que esta operação foi feita por um procurador isolado que se lembrou num dia qualquer de telefonar à PJ e dizer ‘vamos lá com 100 pessoas incomodar aqueles senhores’. Isso não foi assim. Houve uma equipa de trabalho que reportou à hierarquia do DCIAP e o DCIAP comunicou com a PGR. E isto oferece segurança ao cidadão.

Mas o comunicado da Associação Sindical dos juízes de há dois dias foi uma resposta ao Comunicado da PGR?

Porque o comunicado sugere que os 21 dias que os arguidos estiveram a ser ouvidos são todos imputáveis à lentidão do juiz parece-me excessivo. Acha que algum vez, para além desta, este juiz esteve 21 dias a fazer um interrogatório? Que eu saiba não. Houve um advogado de um arguido que veio dizer para a televisão que durante a primeira semana houve uns dias que estiveram a corrigir lapsos do despacho do MP, depois estiveram a introduzir documentos aos bocadinhos porque ainda não tinham chegado todos. E o juiz entendeu, e a meu ver bem, que os documentos tinham de estar todos no processo. Portanto, acho que foi imprudente vir dizer nestas circunstâncias que a culpa é toda do juiz. Também se disse que as procuradoras, mais do que uma vez, pediram ao juiz para acelerar o processo. E houve um advogado que veio dizer que as senhoras procuradoras não queriam com isso libertar os presos, queriam que o juiz fosse mais rápido para prender os presos. Ou seja, o comunicado parece passar a ideia de que o MP estava muito preocupado com a detenção das pessoas, queria que a detenção fosse confirmada e transformada numa prisão preventiva e o juiz entendeu que não havia fundamento para isso. Considero que quem discorda das decisões não precisa de dar pontapés ao juiz. Pode atacá-las no tribunal.

Está a terminar o seu mandato à frente da ASJP. O segundo e último, certo?

Sim.

Presidiu à associação nos últimos 6 anos (desde 2018), igualando o ‘recorde’ de António Martins. Em 16 presidentes na história da ASJP, só os dois estiveram tanto tempo no lugar. Curiosamente, ambos em épocas de Governos socialistas, com ‘adversidades’ conjunturais semelhantes (António Martins nos Executivos de Sócrates e o senhor nos de António Costa). Que balanço faz? Conseguiu mudar alguma coisa? Pelo meio teve a mais longa greve de juízes de sempre (21 dias).

Quando o António Martins foi presidente, de 2006 a 2012, eu era o secretário-geral dele. Portanto, não só fomos os dois que estivemos mais tempo isoladamente como em conjunto. E, é verdade, em 2006 tomamos posse com um ambiente político e um discursivo muito adverso do então primeiro-ministro José Sócrates. Tinha acabado de haver uma greve decretada por uma direção anterior e havia uma ação política claramente virada para descredibilizar a Justiça. Isso existiu. Não vi isso neste Governo.

As pessoas também aprendem e ficam escaldadas.

E neste Governo que está agora a cessar funções houve umas coisas melhor aqui, outras pior ali, mas tivemos sempre uma relação boa, institucionalmente correta. Não consigo dizer que houve uma ação do Governo contrária aos interesses da Justiça.

Nem contrária nem a favor. Porque quando surgem estes casos mais mediáticos aparecem logo os comentadores do costume e elementos do PS também a falar de uma reforma da Justiça. Esquecem-se que é precisamente do lado da Justiça que há anos têm partido as propostas para a reforma da Justiça que agora se refletem, aqui e ali, nas propostas eleitorais dos partidos.

É porque acharam que as nossas propostas não são boas! Ou então não querem fazer reformas. Qualquer destas duas alternativas é legítima. O Governo, ou o PS, pode dizer que acham que é importante uma reforma, mas que não é a que nós propomos e têm outra melhor. Perfeito. Ou têm outra alternativa e dizem que não querem reformar nada porque não há nenhuma crise na Justiça que justifique uma necessidade de pensar numa reforma. O que não se pode fazer é duas coisas contraditórias: é dizer que há crise e depois, nos momentos em que é preciso mudar alguma coisa, saírem da sala e dizerem que não querem discutir. E aí a Felícia tem razão, o segundo Governo que terminou prematuramente tinha todas as condições políticas, nenhum governo teve essas condições e acredito que nenhum voltará a ter. Tinha as profissões a proporem reformas e abertas para a discussão, tinha uma maioria absoluta e não sei quantos milhões de euros do PRR para gastar. Mas não fez.

Mas então nesses seus dois mandatos, alguma coisa mudou na Justiça?

Entre 2006 e 2024, houve muita coisa que mudou. Nessa altura, tínhamos cerca de um milhão e quinhentos mil processos e agora temos 600 mil; tínhamos tempos de resposta nas ações cível e processos-crime, médios, muito mais demorados do que os de hoje; os tribunais não estavam organizados como estão agora, com cumprimentos de metas, objetivos, com maior controlo e maior verificação, isso não existia.

Mas esse esforço partiu de quem?

É do país! Também não existiam tantas investigações criminais, tantos processos sobre corrupção, tantas pessoas condenadas. A Justiça mudou bastante. Há dificuldades que persistem: os megaprocessos (e nunca mais se encontra uma solução para isso…), a justiça administrativa e fiscal, o excesso de preço da Justiça (as pessoas que, sendo remediadas, mesmo da classe média, não conseguem aceder à Justiça porque é demasiado cara). Essas coisas persistem e tardam a ser resolvidas. Ou seja, não podemos dizer, com franqueza, que esteja tudo na mesma e que esteja tudo mal.

Agora que vai ficar disponível, começa-se a falar do seu futuro e há quem o deseje ver como novo PGR. Caía-lhe bem esse fato?

Eu disse no último congresso dos juízes que tinha um plano para abril deste ano: desaparecer. E o meu plano é esse. Não fisicamente, espero, mas eu quero desaparecer. Quero voltar para a minha vida pessoal e profissional porque sou juiz. Já ouvi essa conversa, não faço ideia que fundamento tem, mas, se alguém tiver essa ideia na cabeça, é melhor tirá-la já e não vir cá bater à porta. Portanto, sou completamente ‘irrecrutável’ para o que quer que seja.