A porta dos fundos

A TV é o espelho do país. E o sinal dos tempos é que, num ápice, os painéis de comentadores passaram a contar com gente do Chega, de Pedro Pinto a Diogo Pacheco de Amorim. A não eleição de Augusto Santos Silva não é um fait-divers destas eleições. É um marco, e histórico.

Confirmou-se o que já se esperava: feito o escrutínio dos votos dos emigrantes, o Chega foi o partido mais votado, e pelo círculo Fora da Europa o partido de André Ventura elegeu um deputado e a coligação que formará Governo elegeu outro, perdendo o PS o mandato que conquistara pela primeira vez em 2019 e reeditara nas legislativas de 2021 e de 2022. Ou seja, o presidente da Assembleia da República e segunda figura do Estado desde aquela primeira data e, antes, ministro dos Negócios Estrangeiros e, ainda, recordista de tempo de permanência no Governo em democracia (com 15 anos em funções executivas) falhou a eleição.

Derrotado, Augusto Santos Silva sai do teatro político pela porta dos fundos. Se este é o nome de um célebre grupo humorístico brasileiro, não deixa de ser o mais apropriado à ocasião, considerando a suprema ironia de Santos Silva ver o eleitorado castigá-lo à pena máxima de ter de ceder
o seu assento parlamentar a um representante do Chega.

Com efeito, Santos Silva e a sua sanha  persecutória contra André Ventura, em particular, e a bancada do Chega, em geral, acabou por ser um dos principais aceleradores da afirmação da terceira força política nacional como partido antissistema, de protesto, agregador dos descontentes com o status quo.

Se o crescimento do Chega era inevitável – bastando olhar para o que está a acontecer em todo o mundo ocidental democrático, da Europa aos Estados Unidos e à América Latina –, a estratégia da dupla formada por António Costa e Augusto Santos Silva (que acabou por ser uma tripla, com a colaboração talvez involuntária de Marcelo Rebelo de Sousa) deu-lhe um empurrão enorme.

Uma estratégia que mesmo no interior do PS_foi sendo vista como arriscada pelos mais moderados, insuficientes, porém, para contrariar de alguma forma a fome de poder dominante.

E a verdade é que o Chega transformou-se rapidamente de seguro de vida do poder socialista a uma verdadeira ameaça para o PS.

A não eleição de Augusto Santos Silva é a melhor prova disso mesmo.

André Ventura, em vídeo que pôs a correr nas redes sociais já há uns dias, antecipou-se e fez saber que a eventual não eleição de Santos Silva seria a ‘cereja no topo do bolo’ que estas legislativas de 2024 representam para o Chega.

Ora, a não eleição do presidente da Assembleia da República e um dos mais destacados dirigentes do PS sob as lideranças de José Sócrates e de António Costa é muito mais do que um acerto de contas com Ventura e o Chega.

Ela representa, sim, o fim de um ciclo no país e no Partido Socialista.

Pedro Nuno Santos soube muito bem interpretar a mensagem do eleitorado e, por isso, também sabe que a missão que tem pela frente passa, em primeiro lugar, por uma cura de oposição daquele que foi o partido do poder em 20 dos últimos 25 anos (sendo que os últimos quatro anos de intermezzo foram absolutamente condicionados pela governação anterior). E que, assim, é totalmente responsável pelo estado a que o país chegou. E, em segundo lugar, por um refrescamento e rejuvenescimento dos seus quadros, ainda e desde há muito dominados pelos mais destacados dirigentes do socratismo formados no guterrismo, entre os quais Augusto Santos Silva.

Por isso, Pedro Nuno Santos fez questão de dizer, logo na noite eleitoral de 10 de março, que o PS passava à Oposição e que o seu desafio «começa amanhã».

A rejeição da herança de António Costa, que o próprio secretário-geral tratou de deixar vincada no rescaldo das eleições, tornou-se mais evidente com a afirmação da viabilização de um Governo da AD e, já esta semana, no anúncio da aceitação do Orçamento Retificativo que o novo Governo venha apresentar no sentido de repor rendimentos aos portugueses em situação de flagrante injustiça – sejam das forças de segurança, militares, médicos e enfermeiros, professores ou oficiais de Justiça.

Aliás, o próprio António Costa despediu-se de Bruxelas com um discurso totalmente diferente daquele que sempre fez para consumo interno. No seu último Conselho Europeu, o ainda primeiro-ministro socialista sossegou os dirigentes europeus e parceiros dos outros Estados-membros enfatizando que PSD e PS têm o mesmo posicionamento estratégico em relação à Europa e à NATO e sublinhando que mesmo o partido da direita populista (Chega) não tem posições anti-europeístas nem pró-Rússia de Putin como outros partidos da direita radical europeia.

Não restam dúvidas de que Portugal e seus atores políticos mudaram, e muito, com as legislativas de 10 de março.

Se a TV que temos é o espelho do país, basta olhar para a dança de cadeiras dos chamados comentadores políticos para percebermos a mudança. Num ápice, passámos a ver gente do Chega em praticamente todos os painéis onde até aqui só se viam representantes dos partidos mais à esquerda e também do PSD, além de um ou outro da IL e do CDS.

Este é apenas mais um sinal de que o quadro político-partidário, em Portugal como na Europa das democracias bem mais desenvolvidas e antigas, sofreu uma profunda alteração.

Que é estrutural e não meramente conjuntural.

 A não eleição de Augusto Santos Silva não é apenas uma irónica coincidência. É um marco histórico, para a direita e para a esquerda.

mvramires@gmail.com