Vania Baldi. A indústria da inconsciência

Em Otimizados e Desencontrados, este autor italiano explora o quadro de devastação íntima e cultural que a propagação do digital e os hábitos da relação com o ecossistema tecnológico e mediático têm provocado, ao ponto de transformarem a própria natureza humana.

Para ganhar balanço, e por vício, deixem que parafraseie Borges, assim “começarei com algumas considerações que podem parecer digressivas, mas que, no entanto, nos conduzirão à questão essencial”. Quando éramos homens, e havia nisso algum prestígio, isso parecia depender de uma certa intensidade, do desejo e até da necessidade de nos medirmos em relação com aquilo que nos era estranho. A acção era entendida como um avanço sobre alguma dimensão até ali indisponível. O receio era só a sombra que se estendia a partir desse apelo que tinha para nós o irredutível resíduo de mistério e encanto daquilo que não se confundia connosco. E mesmo o mundo só parecia real na medida em que nos desafiava, produzindo alguma inquietação e desconforto. Cada um devia reconhecer-se à medida que tacteava e ser perdia numa fragorosa verificação do imenso, e se isso podia não nos levar longe, pelo menos era indicativo de que tínhamos encontrado o rastro do mundo. Cada um só se concebia a si mesmo, só chegava a definir o seu carácter e destino através do confronto com o outro. O isolamento, nas ‘sociedades tradicionais’, era a pena mais dura à qual podia ser condenado um membro da comunidade. Hoje é a condição comum.

Que o Homem tem mudado radical e velozmente nas últimas décadas, alterando-se a sua própria natureza, e até o sentimento de si, isto parece inegável. Um número cada vez maior de pessoas busca o isolamento, tendo-se habituado a consumir a realidade em doses homeopáticas. Ora, isto degradou a própria coordenação temporal. “Não há nada que reja o tempo”, nota Byung-Chul Han, e este “anda aos tropeções sem qualquer rumo”. Cada um sente a necessidade de se beliscar, mas a sensação vagamente dolorosa que obtém soa como um sinal auditivo que não chega para mapear seja o que for. Identificamo-nos com a fugacidade, com um feixe de volúveis e intermutáveis pulsões, incapaz de fidelidade, de duração, de continuidade. “E, assim, cada um de nós próprios se torna qualquer coisa de radicalmente passageira”, adianta o filósofo alemão de origem coreana. “Em certo sentido, sofremos uma perda radical de espaço, de tempo, do ser-com (Mitsein). A pobreza do mundo é uma condição discrónica. Faz com que cada um se encerre no seu pequeno corpo, tentando mantê-lo saudável por todos os meios, pois que, a não ser assim, nada mais lhe resta. A saúde do frágil corpo de cada um substitui o mundo e substitui Deus. Nada perdura além da morte. Hoje em dia, morrer torna-se especialmente difícil. As pessoas envelhecem sem se tornarem maiores.”

Tudo isto é efeito de um contexto de substituição da realidade, de um plano de mediação que se lhe sobrepôs, como um mapa que precede o território, fazendo coincidir o real com os seus modelos de simulação. Retirando qualquer hipótese ao próprio acontecimento, Jean Baudrillard diz-nos que, na verdade, já não se trata de mapa nem de território. “Algo desapareceu: a diferença soberana de um para o outro, que constituía o encanto da abstracção. Pois é na diferença que consiste a poesia do mapa e o encanto do território, a magia do conceito e o encanto do real.” Agora estamos capturados dentro de um regime que produz signos, que, por sua vez, geram versões caricaturais, miniaturizadas, de tal modo que, quando temos o real diante de nós, sentimos uma espécie de decepção na medida em que sentimos ainda a roupa e a pele húmidas desse banho amniótico das projecções em que fomos submergidos. Isto gera uma incapacidade de reconhecer seja o que for, de identificar o real consigo mesmo, e de avaliá-lo senão de acordo com a sua simulação, que se tornou o verdadeiro modelo.

Vivemos como um bando de ‘agarrados’ digitais, sendo o vício ou dependência fácil de compreender se pensarmos nesse hábito que nos leva a verificar constantemente as notificações ou o status dos nossos perfis, dos sites de notícias, de apostas, da caixa de e-mail, das previsões do tempo, a perder quartos de hora a fazer scrolling em busca de algo partilhável, etc. Como frisa Vania Baldi, o acto de agarrar-abrir-olhar para o ecrã (smartphone, PC, smartwatch, o que quer que seja), independentemente de ter de comunicar ou pesquisar uma informação, é um tique consolidado que reflecte uma tonalidade emocional específica da relação com o ‘outro generalizado’ digital. Em Otimizados e Desencontrados – ética e crítica na era da insconsciência artificial, este investigador italiano que dá aulas no ISCTE e vem explorando as intersecções entre as áreas da sociologia, da filosofia e antropologia da técnica, da ética e estética dos media, serve-se de uma analogia com uma extraordinário alcance ao vincar que muitas das nossas práticas digitais se assemelham a puxar a manivela de uma slot machine; através do constante refresh nos nossos periféricos tecnológicos obtemos uma certa excitação, acabando prisioneiros desta à medida que as recompensas variáveis e intermitentes da máquina transformam a experiência da espera, a sua dilatação e suspensão, numa impaciência reactiva e imparável.

Editado num formato de bolso, com a chancela das Edições Húmus, o livro mais parece uma sebenta, um urgente manual que revira as habituais instruções sempre que lidamos com as tecnologias, e produz uma estupenda síntese a partir de uma série de contribuições de vários autores que, em vez de engolirem esse horizonte das fantasias ingénuas face à cibernitização do plano social, preferem tomar o comprimido vermelho e explorar os elementos de distopia no nosso regime ecomediático, não se confinando ao ponto de vista desta ou daquela disciplina universitária, mas cercando o problema a partir de uma multiplicidade espantosa de ângulos. Este livro consegue dar-nos uma perspectiva bastante enfática e esclarecedora das ameaças que todo este ambiente mediático representa, apoiando-se não apenas nas teses de outros autores, como em estudos e bastantes exemplos que comprovam como esta inaudita experiência social em que todos estamos mergulhados se tem mostrado tão desagregadora das relações entre conteúdos, conhecimentos, debates e participação comunicativa que acaba por tornar-se anti-social e falsamente conectiva.

Não se trata apenas de uma abordagem dessa malha tecnológica e da expressão que as redes assumem nas nossas vidas, num quotidiano completamento dominado pelos seus ritmos e imperativos, revelando-se, de acordo com Jonathan Crary, um motor implacável de vício, solidão, falsas esperanças, crueldade, psicose, endividamento, vida desbaratada, corrosão da memória e desintegração social. Baldi toca tudo isso e fala numa metamorfose dos nossos corpos e aparelho cognitivo que acompanha a mudança geral das condições de experiência, assinalando como a estrutura das nossas disposições antropológicas se altera em adaptação aos novos ambientes mediáticos, que determinam as coisas em que pensamos e o carácter dos nossos símbolos, ou seja, as coisas com que pensamos. Ele denuncia também a forma como, através de um imaginário de leveza e diversão, se tem aprofundado a tendência histórica para interiorizar os princípios da ideologia neoliberal, baseados na lógica cínica da redução do homem a capital humano e mercadoria, mas apresentados numa moldura de admirável mundo novo.

Este livro deixa claro como, ao invés das tecnologias contemporâneas expandirem as capacidades humanas, dando resposta às nossas aspirações e necessidades, ultimamente o que fazem é levar a que nos passemos a encarar como sistemas nervosos em continuidade virtual com o mundo. Não só isto como é o nosso corpo que se vem tornando uma prótese da tecnologia digital. Baldi expõe ainda o modo como o comportamento humano parece ser cada vez mais orientado pela cultura altamente competitiva e pelos ambientes tecno-mediáticos que o predispõem a seguir uma conduta acelerada, reactiva e impessoal, como se brotasse de uma máquina, e alerta para o funcionamento sociopático dos dispositivos que nos interconectam para nos separarem, como se a comunicação humana tivesse de se reduzir à linguagem e temporalidade das transacções financeiras, das trocas de informações ou dos fluxos de dados.

Tudo isto permite-lhe reconhecer os elementos que potenciam as agressões à nossa saúde psíquica, e esses quadros de depressão e outras perturbações mentais que nos têm tornado cada vez mais vulneráveis. Baldi fala numa grande fadiga existencial, resultando esta de uma cadeia de ansiedades ligadas à competitividade generalizada, ao pessimismo induzido pelas inúmeras crises e incertezas (da ecológica à económica), à ausência de narrativas partilhadas capazes de promover um desígnio e uma finalidade para as suas práticas quotidianas, assinalando ainda uma difusa tendência em sentir as experiências e as relações sociais com pouca profundidade, convivências e conhecimentos que encontram as suas sínteses e mediações mais comuns nos smartphones.

Este livro descreve uma invasão a partir do interior da nossa própria cultura, configurando uma microfísica da captura da atenção, em que serviços digitalmente egocentrados vão servindo como engodo esse foco na projecção de protagonismo do utilizador, idealizado como indivíduo único e especial. Ora, isto lembra-nos, como já alguém notou, que “o espectáculo não é apenas uma abreviação cómoda de ‘meios de comunicação de massas’, mas consiste sobretudo na crueldade com que tudo nos reenvia incessantemente para a nossa própria imagem”. Somos assim feitos reféns e encerrados num casulo narcísico que vai alimentando certas projecções pessoais apenas o suficiente para nos manter capturados, seguindo um trilho que sempre adia as suas promessas, frustrando-nos, mas tornando-nos cada vez mais dependentes e incapazes de uma deserção. E se a maioria das pessoas sente a atracção deste ambiente que promete aliviar-nos das tarefas maçadoras e ingratas, dando-nos uma linha de contacto “em tempo real” com qualquer outra pessoa conectada, além de infindáveis bibliotecas de conteúdos, informação e conhecimentos como nunca na história humana fora possível reunir, só muito mais tarde fica claro como a passagem do analógico ao digital tende a anular a importância de tudo aquilo que não é numerável, proporcionando uma sensibilidade cognitiva sobre as coisas que as perspectiva e encara só a partir da sua possível ordenação numérica.

Baldi encara esta cultura da quantificação como um novo sistema de valor no seio das actividades humanas, e vinca como, na era digital competitiva e global em que vivemos os números tendem a ser impostos como a medida de todas as coisas. “Assiste-se a um regime de moral numérica, onde ‘tudo se quantifica, conta, mede, pesa, computa, ordena, categoriza, cataloga, para disso fazer objectivos, metas, avaliações, juízos, julgamentos, escolhas, discriminações, imposições, veredictos’… O neoliberalismo torna-se assim “uma ordem normativa cognitiva que adquire a forma de uma racionalidade governante e estende uma formulação específica de valores, práticas e medidas económicas a todas as dimensões da vida humana”.

Seria fastidioso elencar os autores que Baldi vai citando, e não deixa de ser curioso como mesmo este livro é evidentemente um magnífico reflexo desse regime do hipertexto, de um processo de inteligência colaborativa em que se vai construindo uma obra em comum a partir de contributos que se instigam numa mutualidade ferocíssima e exemplar. Este livro soa a uma conversa em que as vozes se amparam e elevam o nível umas das outras. É estranho como o livro consegue traçar um exame perturbador sobre as consequências da transformação das nossas competências e do processo cognitivo, e, ao mesmo tempo exemplificar o que aconteceria se estes mesmos processos fossem usados de forma a superar uma série de limites, a desfazer, negar e propor valores e significados, a articular e desarticular o sentido do mundo num movimento sem tréguas que pudesse significar também um contínuo deslizamento de fronteiras e uma profunda alteração das percepções e das nossas ideias.

É curioso como uma tão penetrante análise acaba por se provar completamente ineficaz diante do aluvião que é produzido por essas conexões ininterruptas, linguagens hipermédias, plataformas e apps, combinando imagens, emojis e algoritmos, e isto mostra como a lógica do marketing e a pressão para essa “inconsciência artificial” para por se impor e esmagar o sentido da realidade, o próprio quadro de racionalidade, ficando nós reféns de impulsos que podem ser controlados, à medida que as dimensões lúdicas e performativas frustram as dimensões críticas e criativas, isto dentro de um horizonte de práticas mobilizadas por correntes ‘gamificadas’ e, ao mesmo tempo, altamente competitivas.

Baldi refere como já Vilem Flusser havia preconizado o seguir-se pós-histórico do ‘homem de acção’ para o ‘homem jogador’, de ‘faber’ para ‘ludens’, do uso transformador ‘das mãos’ àquele superficial das ‘pontas dos dedos’, e a certa altura cita Byung-Chul Han a propósito dessa tendência para recairmos numa condição passiva, em que o nosso comportamento se divorcia da nossa consciência, e nos tornamos zombies sentimentais, seres que, mesmo enquanto exprimem convicções muitíssimo nobres, atraiçoam-nos revelando-se infinitamente patéticos. “Participamos no mundo através da opinião, já não através de intervenções, acções e planeamentos. Todos vemos o estado deste mundo, todos sabemos que algo tem de ser feito. Mas só escrevemos apelos. Participamos com plena consciência no processo cujo fim é previsível, mas existe o perigo de não podermos fazer nada.”

Por outro lado, o momento-chave deste livro surge quando Baldi caracteriza o ambiente de ansiedade algo paranoica que caldeia todo este quadro de inacção e passividade, servindo-se do conceito de “premediação”, de Richard Grusin, e que foca essa tendência dos media para antecipar acontecimentos futuros, presentificar os seus fantasmas, prefigurar situações imprevistas e ansiógenas. “Trata-se de um modo de convocar acontecimentos quando eles ainda não se manifestaram, prevendo-os na esperança de os prevenir.”

Baldi nota que temos, deste modo, sido habituados a imaginar um mundo cheio de ameaças, que paradoxalmente tentamos exorcizar com pequenas doses de ansiedades diárias tecidas por relatos jornalísticos e debates televisivos em andamento contínuo, reaproveitados de forma fragmentária nas conversas a circular pelas redes sociais onde anseios e excitações se misturam e desdobram em construções virais da realidade.

É impossível ler este passo e não ficar com a sensação que ele desmonta algo de crucial no quadro mediático em que nos vemos diariamente absorvidos, esse azucrinante enredo que nos é servido sempre num registo maios ou menos dramático, e que vai degradando a nossa sensação da realidade. Baldi fala de uma cobiça do controle da realidade, exemplificada na tentativa de prevê-la, antecipá-la e encurralá-la através de sistemas computacionais, mas aquilo que nos vem de imediato à cabeça é essa incessante magia negra do comentário político: “Tal paradigma antecipatório reflecte e propicia ao mesmo tempo uma atitude especulativa de tipo financeira com o ecossistema da informação, transfigurando-o num mercado de infopinions. A produção e circulação de projecções sobre possíveis eventos futuros servem, quer na finança quer no mercado da opinião, para direccionar o consenso e condicionar as tomadas de decisão sobre realidades que se pretendem antever através de expectativas fomentadas por comentários de comentários e avaliações de avaliações. Através de modelos aparentemente descritivos, mas substancialmente prescritivos, em tais mercados se enfatizam expectativas como se fossem certezas, mas com uma linguagem que mistura a fabulação e a crença com afirmações sobre factos que não se chegam a contextualizar e fundamentar, confundindo os argumentos racionais e as determinações históricas objectivas com a construção de cenários verosímeis e não justificáveis empiricamente. Neste sentido, quando ‘a expectativa de um facto’ gera mais impacto do que o ‘facto em si’, fazendo ‘desaparecer a distinção entre factos ocorridos e factos possíveis’, podemos constatar como ‘a circulação da informação converteu-se na forma canónica da economia capitalista’”.

É uma análise brilhante e que aponta para um quadro de manipulação incessante das consciências, não tanto para produzir um determinado tipo de adequação, mas, sobretudo, um adormecimento, uma sensação de impotência e uma incapacidade de revolta, sendo esta a verdadeira dívida acumulada por este regime supressivo, e que gera, por isso, um tão grande ressentimento. E talvez essa seja a única esperança que um livro como este nos traz, a de que toda esta indústria produtora de inconsciência talvez venha a criar um inimigo demoníaco e a obter a resposta que merece, convocando uma destruição absoluta e que atinja todos os símbolos do poder. Provocando uma revolta que não poderá ser controlada, pois, ao contrário da revolução, não está preocupada em preparar o futuro.

Este seria um acto de dissolução dos comportamentos burgueses, na linha daquilo que Bakunin descreve numa célebre página de Estado e anarquia, lembrando que a revolta “é instintiva, caótica e impiedosa por natureza… Esta paixão sem dúvida negativa está muito longe de permitir alcançar a altura da causa revolucionária; mas sem essa última seria inconcebível e impossível, pois não pode existir uma revolução sem uma destruição vasta e apaixonada, uma destruição sã e fecunda, dado que é precisamente por esta e só por meio desta que se criam e escondem novos mundos.”

Talvez isto explique o que faltou para que o 25 de Abril fosse mais longe, e além de pôr fim à ditadura, pudesse ter esmagado também o atavismo e o quadro de valores da mesma elite que garantiu uma continuidade entre o antes e o depois, neutralizando os aspectos mais fundos da revolução. Talvez algo de realmente tenebroso e cantante comece agora, meio século depois, a ganhar forma.