A troca de acusações não pára. Depois da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) ter acudado o ex-ministro das Finanças de ter reduzido a dívida pública em 2023 de forma «artificial», Fernando Medina acusou os técnicos que prestam apoio aos deputados no Parlamento de «erro grave» e de ser «falsa» a afirmação que foi incluída no relatório.
Ao Nascer do SOL, João César das Neves refere que se trata de uma declaração política. «É evidente que não se trata de um erro, mas de uma diferença de interpretação. É evidente que o ministro se dedicou no final do ano passado a um conjunto de operações financeiras que, não interessando nada ao país, permitiam apenas baixar aparentemente o nível da dívida para fazer boa figura no momento delicado. Aliás, fê-lo de forma tão trapalhona que acabou por ter o efeito contrário. A UTAO tem o dever de manifestar isso, e fê-lo».
Também para o economista Luís Aguiar-Conraria «é evidente» que Fernando Medina quis baixar a dívida pública dos 100% antes de sair do Governo e, por isso, «é claro que fez manobras para atingir isso». E acrescenta: «Para uma pessoa como eu, Fernando Medina fez um brilharete, mas é evidente que havia esta parte psicológica de baixar em três dígitos a dívida pública, daí andar com essas manobrazinhas».
O economista reconhece que se trata de uma «politiquice que não é grave», referindo que é «como aqueles Governos que pagam prémios às empresas para inaugurarem as obras antes das eleições para mostrar obra feita». Ainda assim, admite que o ex-ministro das Finanças não o teria feito se soubesse que teria mais um ano de mandato. «Não é escandaloso o que fez, mas não me venha tentar convencer que o teria feito se tivesse mais um ano de mandado. Se tivesse a noção de que teria mais um ano de Governo teria demorado mais um ano a baixar a dívida dos 100%», salienta ao nosso jornal.
Já em relação às acusações de Joaquim Miranda Sarmento, Luís Aguiar-Conraria afirma que está a exagerar. «Tudo isto parece-me politiquice, mas também me parece mais ou menos normal, nem tenho problemas com isso, desde que o trabalho apareça feito e não há dúvida nenhuma que as nossas contas públicas estão melhor do que estavam quando Fernando Medina pegou no Ministério».
Recorde-se que, no ano passado, foi a primeira vez, desde 2009, que a dívida ficou abaixo dos 100% do Produto Interno Bruto (PIB) – situou-se nos 98,7% do PIB: 263 mil milhões de euros, o que representou uma queda de 9,4 mil milhões de euros face ao ano anterior –, mas essa redução foi feita graças ao dinheiro das pensões futuras dos portugueses, através do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) e de outras operações.
Um comportamento que levou a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) a alertar para o facto de a redução da dívida pública em 2023 ter sido «artificial» e que «a obrigação de servir a dívida detida por entidades públicas permanece para os contribuintes», referindo que o Conselho das Finanças Públicas (CFP) já tinha apontado o dedo para o risco de concentração excessiva da carteira do FEFSS em dívida pública portuguesa.
Acusações que foram afastadas esta semana por Fernando Medina, na Assembleia da República, ao revelar que «não houve, durante o anterior Governo, em nenhum momento, em que tivesse sido dada qualquer indicação, orientação ou sensibilização para que houvesse uma utilização de fundos adicionais da Segurança Social para que disso resultasse numa maior utilização de fundos na compra de dívida portuguesa».
Outra dor de cabeça
Uma das polémicas em torno da redução da dívida pública diz respeito ao pagamento de um dividendo extraordinário por parte da empresa Águas de Portugal (AdP) – detida em 81% pela Parpública e em 19% pela Caixa Geral de Depósitos – em 100 milhões de uros e em troca seria alvo de um aumento de capital no mesmo montante já este ano. Uma operação que não foi entretanto aprovada por Miranda Sarmento por desconhecer estas negociações entre o ex-ministro das Finanças e António Costa, tal como já tinha sido avançado pelo Nascer do SOL, o que levou o CEO a anunciar a sua saída na administração da empresa um ano e meio antes de concluir o mandato. Tal como o Nascer do SOL avançou, José Furtado colocou o lugar à disposição assim que o novo Governo tomou posse, por entender que estava perante um contexto de mudanças de ciclo político e não apenas de ministro, o que foi aceite pela ministra da tutela, Maria da Graça Carvalho. O nosso jornal sabe que este anúncio acabou por ser acelerado por causa da ‘guerra’ entre o atual e o anterior Governo.
Para esta saída contribuiu o facto de a AdP ter sido ‘forçada’ a pagar um dividendo extraordinário ao Estado de 100 milhões de euros em dezembro de 2023. A ideia de Fernando Medina, então ministro das Finanças, foi a de usar esta verba extra para fazer um brilharete na redução da dívida pública de forma a atingir níveis históricos, ignorando que esse valor seria necessário para a empresa avançar com os investimentos previstos – na ordem dos dois milhões de euros. O nosso jornal sabe que Furtado foi contra esta decisão, por entender que, no caso de ter de recorrer a um crédito bancário nesse montante teria de pagar juros à banca de 3,5% ou 4%, o que iria ter custos e, por isso mesmo, teria de ser refletido no consumo, nomeadamente nas tarifas praticadas. Já se essa verba ficasse do lado das contas públicas, iria beneficiar o contribuinte.
No entanto, Fernando Medina já esta semana considerou a decisão do atual Governo em não aprovar o aumento de capital como «correta», considerando que seria um «absurdo» que a AdP reduzisse capital em dezembro para o aumentar em janeiro. E disse ainda que o Estado procedeu a injeções de capital em empresas púbicas de quase três mil milhões de euros em 2023, tendo solicitado o pagamento de 13 milhões de euros de dividendos. Já em relação ao pagamento destes dividendos, o ex-ministro das Finanças esclareceu que foi feito tendo em conta o cumprimento de critérios que foram escrupulosamente observados, ou seja, de que o rácio de endividamento não fosse superior a quatro vezes; que o rácio de liquidez geral não fosse inferior a 0,9% e que o capital próprio não fosse inferior a metade do capital social. Em causa estão 130 milhões de euros: 100 milhões de AdP, 20 milhões de NAV e 10 milhões da Casa da Moeda
Para João César das Neves, estas transferências tratam-se de «outro embate político», afirmando que «a transferência da AdP nada teve a ver com o interesse da empresa ou do país; foi feita apenas por manipulação contabilística do Governo. Por outro lado, o Estado é responsável pela AdP e, como a empresa precisa do dinheiro que nunca devia ter sido retirado, é claro que o Governo tem de aumentar o capital. Só o recusa agora por jogada política, para manifestar as criatividades contabilísticas do anterior Governo». O economista diz mesmo que não considera «normal» estas transferências, defendendo que «as empresas públicas servem o país, não os interesses de imagem do poder do momento». Em relação ao futuro não hesita: «Estes abusos por parte dos Ministério das Finanças eram muito correntes antigamente. Nas últimas décadas, sobretudo desde a criação da UTAO e do Conselho das Finanças Públicas, as coisas melhoraram, mas o Ministério tem todo o poder e, por vezes, perde a vergonha».