O valor da ferrovia. Do processo Face Oculta a roubos de carris e cobre

Se atualmente se fala na necessidade imperiosa de investir na rede ferroviária, não há muito tempo o ‘negócio’ passava por delapidar as linhas inativas. Foram roubados milhões de euros em trilhos, carruagens e cobre.

A rede ferroviária, em Portugal, costuma ser objeto de notícia por variados motivos. Por exemplo, críticas que lhe são feitas ou, por outro lado, elogios tecidos. No entanto, há 15 anos, a razão foi outra. Ficou provado que Manuel Godinho, empresário de Ovar, montara uma rede de corrupção que envolvia contactos de alto nível em várias das maiores empresas nacionais com participação estatal, como a REFER – como é possível ler no site oficial, trata-se da “empresa pública responsável pela prestação do serviço público de gestão da infraestrutura integrante da rede ferroviária nacional” – ou a CP. 

Após quase um ano de investigações pela Polícia Judiciária (PJ), o Ministério Público de Aveiro concluiu que Godinho usava esses contactos para obter benefícios para os seus negócios. A operação culminou com a prisão preventiva de Godinho e a constituição de quase 20 arguidos, tendo Armando Vara, entre outros, cumprido pena de prisão. A investigação revelou que os crimes suspeitos incluíam corrupção, tráfico de influências, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Os métodos de suborno variavam de pagamentos em dinheiro a presentes valiosos, como carros e sacos de cimento. Além disso, o presidente da REFER, Luís Pardal, foi mencionado como alguém que precisava de ser afastado por não alinhar com o esquema. A PJ realizou buscas em mais de 30 locais no país, incluindo escutas telefónicas e apreensão de documentos. 

No âmbito do mesmo processo, um ano depois, foi divulgado que em 2001, a CP mandara destruir 30 carruagens de passageiros, muitas ainda em bom estado, que foram entregues à empresa de sucatas de Manuel Godinho. As carruagens, da marca Schindler e importadas da Suíça nos anos 50, foram demolidas num estaleiro provisório na Estação do Bombarral. Essas carruagens, que circularam pelo país e tinham sido modernizadas, representavam 10% da frota da CP. A decisão causou controvérsia, gerando protestos do diretor do Museu Ferroviário Nacional e da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro (APAC). Criticaram a CP por não tentar vender ou preservar as carruagens, especialmente após investimentos significativos na sua modernização. Apesar dos protestos, algumas das carruagens foram enviadas diretamente para demolição. Curiosamente, carruagens semelhantes às que foram destruídas ainda circulavam, em 2010, na Suíça, gerando discussões em fóruns de entusiastas de ferrovias.

Mas há que recuar ainda mais no tempo para entender este processo. Em fevereiro de 2005, o jornal Público relatou casos de corrupção na REFER, envolvendo as empresas SEF e O2 do grupo Godinho, juntamente com quadros intermediários da empresa pública, alguns dos quais arguidos no processo Face Oculta. A investigação revelou a existência de faturas falsas, sobrefaturação e registos de trabalhos nunca realizados. Esses factos foram inicialmente descobertos por uma auditoria interna da REFER e confirmados dois anos depois pela Inspeção-Geral de Obras Públicas, que encaminhou o caso ao Ministério Público. O caso foi apelidado de Carril Dourado. Este nome surgiu devido ao roubo de 559 toneladas de carris de um trecho desativado da linha do Tua por uma empresa de Manuel Godinho. 

Já havia um esquema de cumplicidades que envolvia o centro logístico do Entroncamento, onde se concentrava a sucata da REFER. Tanto que, em 2004, o Conselho de Gerência da CP decidira abrir um inquérito sobre o roubo de 504 toneladas de carris num trecho desativado entre Carvalhais e Avantos. Apesar disso, a empresa de Ovar, O2 – de Godinho –, afirmou ter atuado em total conformidade com a lei. Já num episódio anterior, no inverno de 2001, a SEF apresentara à REFER uma fatura de 387 mil euros por trabalhos de emergência na linha do Douro, os quais nunca foram realizados. A fatura incluía a cobrança por máquinas que nunca estiveram no local e contabilizava mais de 24 horas de trabalho diárias, algo impossível. Esta sucessão de acontecimentos levou a que a REFER não vendesse resíduos durante dois anos e, só em 2012, fosse noticiado que, sem intermediários, a empresa venderia à Siderurgia Nacional 45 mil toneladas de resíduos de carril e material ferroso miúdo. Tal culminaria em 13 milhões de euros. 

O lixo de uns é o tesouro de outros 

Muitos anos depois, o então ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, anunciou a compra pela CP de 51 carruagens usadas, que seriam reabilitadas nas oficinas de Guifões. Este negócio, de 1,65 milhões de euros, visava reforçar a frota da CP de forma rápida e económica, comparado ao custo de duas carruagens novas. Mas há que seguir uma cronologia. Em junho de 2016, a CP colocou à venda 91 veículos ferroviários para sucata, exigindo sigilo do comprador. Em fevereiro de 2018, a mesma empresa ofereceu para venda locomotivas a vapor centenárias e carruagens dos anos 30 como sucata, apesar do seu valor histórico. Tal gerou protestos de grupos ferroviários, já que locomotivas semelhantes são consideradas Monumentos Nacionais em França. Em junho de 2019, o Governo aprovou um plano estratégico para a CP, incluindo a reabilitação de material circulante antigo e a fusão com a EMEF. O plano visava reabilitar cerca de 70 unidades, incluindo automotoras e locomotivas. 

Estes eventos mostram uma série de decisões controversas e negócios envolvendo sucata ferroviária, refletindo tanto oportunidades de modernização quanto críticas sobre a gestão de património histórico e financeiro da CP. Por exemplo, a CP considerava o ‘vagão J’, uma peça histórica com mais de 130 anos, um problema e planeava demoli-lo e vendê-lo como sucata. No entanto, o Centro de Estudos Históricos da Ferrovia Espanhola conseguiu “salvar” este veículo construído em 1885, preservando assim um importante artefacto ferroviário. ‘Vagão J’ é, também, o título de uma das obras de Vergílio Ferreira, tendo este livro sido censurado durante o Estado Novo por expor a miséria social e a estrutura hierárquica da sociedade. Os Borralhos, conhecidos por serem ladrões e viverem em condições precárias, são descritos de forma direta e sem filtros, destacando a dura realidade social da época. O título simboliza a posição marginalizada dos Borralhos, remetendo à carruagem de animais e coisas desprezíveis transportadas nos comboios.

Outros casos 

Para além do processo Face Oculta, existem outros casos. Em 2011, o Público relatava que a modernização da linha ferroviária do Alentejo estava a enfrentar problemas significativos devido a furtos de cabos de cobre, utilizados na eletrificação da linha, e outros metais. A empresa responsável pela obra, Tecnovia, apresentou queixas à polícia e reforçou a segurança no local. Sabia-se que estes furtos ocorriam principalmente à noite, mas também durante o dia, dificultando a vigilância dos 37 km de linha entre Bombel, Vidigal, Casa Branca e Évora.

À época, a REFER considerou estes roubos “atípicos” porque geralmente envolvem fios enterrados, enquanto estavam a ser roubados fios de alta tensão. Desde o início das obras, a 14 de junho de 2010, e 2011, pelo menos, a linha esteve sob vigilância constante, mas os roubos aumentaram, levando a reforços na equipa de segurança. O jornal referia que este problema não era exclusivo de Portugal pois, a título de exemplo, em França, os prejuízos causados pelo roubo de cobre foram estimados em 30 milhões de euros, levando até a patrulhas aéreas para combater o problema. No entanto, a modernização das telecomunicações, substituindo cabos de cobre por fibra óptica, ajudava a mitigar os danos, embora os ladrões ainda causassem vandalismo ao procurar cobre onde ele já não existia.

Mais recentemente, em março de 2023, um casal foi preso pela GNR da Mealhada, na Lameira de Santa Eufémia, por supostamente ter roubado cerca de 300 quilos de cobre da linha da Beira Alta. O homem e a mulher aproveitaram um corte de energia elétrica entre Pampilhosa, Mealhada, e Trezoi, Mortágua, para interferir na ferrovia e roubar o cobre das linhas de alta tensão. Naquela época, estava a haver vários roubos de cobre na área afetada, resultando em danos estimados em cerca de meio milhão de euros. 

No ano anterior, em abril de 2022, soube-se que a GNR de Foz Côa deteve quatro homens por furto de carris na localidade de Almendra, na Guarda, num trecho da Linha do Douro que liga o Pocinho a Barca d’Alva e está inativa desde 1988. Os suspeitos foram detidos depois de terem roubado sete segmentos de trilho, totalizando aproximadamente 20 metros de linha ferroviária.