‘A Cruz Vermelha, muitas vezes, substitui o Estado e nem sempre o Estado corresponde’ 

António Saraiva lamenta o tempo que o Estado demora a pagar, numa altura em que os donativos não são suficientes para responder aos pedidos de ajuda, que têm disparado. E diz que o setor social continua a ser o ‘parente pobre’.

Foi nomeado há pouco mais de um ano para a Cruz Vermelha. Conseguiu pôr em marcha o plano de reestruturação previsto? 

Fui nomeado por despacho conjunto do Ministério da Defesa e do Primeiro-Ministro a 1 de junho de 2023 e tomámos posse a 17 de julho. Só depois de constatarmos a realidade que iríamos encontrar é que definimos como prioridade garantir a sustentabilidade da Cruz Vermelha Portuguesa, composta por 159 delegações, 2.800 colaboradores, cerca de cinco mil voluntários e 1.700 viaturas. Uma entidade com esta dimensão tem necessidade de receita e vive fundamentalmente de donativos, excetuando os serviços que prestamos, isto é, aquilo que recebemos do Estado pelos serviços que prestamos, nomeadamente no acolhimento de refugiados, sem-abrigo, violência doméstica e ERPIS, vulgo lares. 

E os donativos são suficientes? 

Não, porque os pedidos de ajuda são cada vez em maior número. Em 2022 comparativamente com 2021 duplicámos o número de pedidos de ajuda para os sem-abrigo, para a violência doméstica, para pagamento de rendas de casa, de faturas de água, da luz, fornecimento de refeições, etc. Em 2023 cresceu cerca de 74% o número de pedidos comparativamente a 2022. Este ano, a tendência continua a ser crescente. Ainda não temos os números, mas a constatação de mês a mês que vai passando, e já estamos quase no final de agosto, é que esse número de pedidos tem vindo a aumentar. Acho que a população portuguesa, eu próprio e os meus colegas da direção não tínhamos a perceção das valências que a Cruz Vermelha desenvolve no dia-a-dia, 365 dias por ano, 24 horas por dia. É um mundo de assistência social, em que muitas vezes substituímos o Estado e nem sempre o Estado corresponde no valor e no tempo adequado a essa substituição. Ainda estamos à espera de um valor significativo referente ao ano passado e com esta alteração do Governo, embora haja a promessa de que será pago, a verdade é que tem efeito na tesouraria porque continuamos a pagar aos nossos fornecedores, aos prestadores de serviço. Não vamos deixar os sem-abrigo, não vamos deixar as pessoas com fome, não vamos deixar de acolher aquelas que são vítimas de violência doméstica e isto tem um custo diário. No máximo, o Estado deveria pagar num prazo de 60/90 dias e estamos um ano e um ano e meio à espera de sermos ressarcidos desses valores.

Em termos de tesouraria é insustentável?

É insustentável, daí termos definido como primeira medida a sustentabilidade desta entidade. Isso passa por uma maior captação de receita e, por outro lado, por uma redução de custos. Aliás, como nas empresas, assim como no próprio país, em função dos objetivos de receitas temos de ter uma racional afetação de despesas. Este tem sido o nosso trabalho neste ano que já decorreu, porque esta organização com a dimensão que lhe caracterizei precisa de evoluir rapidamente e é nesse sentido que estamos a trabalhar para avançar para uma central de compras. Também precisamos de harmonizar o número de contas bancárias que as 159 delegações têm, porque com a autonomia que lhes é delegada constatámos que quando chegámos tínhamos 850 contas abertas em bancos com um único número de contribuinte. É preciso avançar para otimização na gestão de frotas porque nas cerca de 1.700 viaturas que há e, tendo em conta esta autonomia das delegações, estão contratualizados seguros, manutenções, não havendo uma gestão integrada de todo esse serviço. 

Não faria mais sentido a Cruz Vermelha apostar em duas ou três linhas estratégicas ou iria pôr em causa a sua ação? 

Impossível. Primeiro iria pôr em causa a função humanitária da Cruz Vermelha no seu largo espetro. Depois uma das medidas que também temos vindo a desenvolver tanto quanto possível é fundir ou otimizar a dispersão geográfica. Não faz sentido em algumas regiões termos três ou quatro delegações porque depois, inclusivamente, concorrem entre elas na captação de serviços de transporte de doentes, ambulâncias e em outras valências .

Estava à espera de encontrar a casa neste estado?

Tenho de confessar que estávamos à espera de encontrar uma organização mais profissionalizada, sem penalizar os antecessores ou sem atirar culpas a terceiros. Uma entidade com 159 anos de existência, com todas as direções que já passaram e com o conhecimento profundo que os dirigentes das delegações têm não esperávamos encontrar um desligar tão grande. Há demasiada autonomia de cada delegação e não havendo uma racionalização levou a que ao longo dos anos acabasse por gerar falhas aqui e ali. 

É possível haver um virar de página e deixar de ter prejuízos? 

Quando digo que a prioridade é dar sustentabilidade não estou a dizer que estamos num momento de iminente rutura. Não, temos é de preparar os próximos anos, deixar condições àqueles que nos vão seguir para que encontrem uma casa melhor arrumada e com sustentabilidade mais garantida. 

Sente que depois de tantos anos à frente da CIP encontrou desafios muito diferentes? Ficou surpreendido?

Não fiquei surpreendido porque, enquanto cidadão inquieto como me defino, estou muito atento à realidade do meu país em todas as suas variáveis: políticas, sociais e, obviamente, à situação destes tempos desafiantes. Tive 13 anos à frente da CIP e fui percecionando as dificuldades crescentes que o país no quadro internacional vinha tendo e as opções políticas que um Orçamento sempre apresenta. Obviamente que não tinha, enquanto dirigente da CIP, a dimensão do número de sem-abrigo, o número da violência doméstica que o país tem. Hoje a diferença é que tenho a constatação no dia-a-dia dessa realidade. E, enquanto cidadão atento e inquieto, não posso deixar de responder que este mundo inquietante em que hoje nos encontramos exige que cada país, nomeadamente aqueles que integram a União Europeia, reveja o seu papel no mundo, que conta atualmente com muitas tensões geográficas e com muitos conflitos regionais. Primeiro a covid, depois o efeito da invasão da Ucrânia pela Rússia que levou num primeiro momento ao aumento da energia, do gás natural, à interrupção de cadeias de abastecimento de alguns produtos e de algumas matérias primas, trazendo à União Europeia a constatação brutal e que deveria ter sido percecionada a tempo da enorme dependência que tem de outras geografias, nomeadamente da Ásia e em matéria de energia da Rússia. Por exemplo, o Next Generation e o gigantesco pacote de 700 mil milhões que deu origem ao PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] visavam a reindustrialização da União Europeia e de cada Estado membro. Cada país fez as suas opções nos seus planos de recuperação e resiliência. Portugal, como os outros países, fez a sua e está para me ser provado que Portugal esteja neste objetivo de reindustrialização. Cheguei a criticar e continuo a criticar, enquanto cidadão, que o PRR serviu para aquilo que os vários Orçamentos de Estado não conseguiram promover, desde logo o investimento público em várias áreas. Temos agora esta ameaça do resultado da eleição do futuro Presidente dos Estados Unidos e sem tomar qualquer opção entre republicanos e democratas, mas apenas como cidadão europeu e português, sabemos os efeitos de uma possível eleição de Trump porque sabemos o que pensa em relação à NATO e à ONU. Qualquer alteração de financiamento da NATO como Trump já ameaçou, e que já vinha de alguma maneira desenvolvendo no seu anterior mandato, Portugal terá de contribuir com 2%. E como é que isso se reflete nas opções orçamentais? Vai-se refletir na carga de impostos? Onde é que o Estado vai buscar o dinheiro para esse aumento de despesa? Não sendo por impostos, onde é que vai reduzir a despesa? E se assim for quais serão as áreas afetadas? As funções do Estado – educação, saúde, defesa – são matérias de opções políticas e que estão plasmadas nos Orçamentos de Estado. Qual a ajuda do setor social e das entidades privadas que podem ir ao encontro dessas reafetações que o Estado, em termos de orçamento, vai ter de fazer? Que parcerias vão ter que ser criadas entre o setor público e o setor social? Até porque, até agora, o setor social tem sido um parente pobre desta participação de colmatarmos um conjunto de necessidades que o Estado vai tendo. E quando falo do setor social, falo da Cruz Vermelha, das Misericórdias e de todos aqueles que têm forçosamente de ser chamados a estes novos desafios. 

Quando estava à frente da CIP falava em contrapartidas para responder ao aumento do salário mínimo nacional. Assiste agora ao reverso da medalha, de pessoas que não conseguem pagar contas ou da tal pobreza escondida?

Independentemente das funções e das responsabilidades que cada um de nós tenha, naquilo que vamos fazendo ao longo da vida temos a realidade que temos. Temos o crescimento económico que o país vai conseguindo gerar e muitos dos nossos problemas, como sempre tenho dito, resolvem-se com o crescimento económico. Se não conseguirmos aumentar a nossa produtividade, se não conseguirmos ter produtos mais inovadores que os mercados tenham apetências para comprar, se não conseguirmos ter uma organização empresarial que acrescente valor, que traga inovação, não é possível. Mas isto tem de ter o apoio do Estado para que se promova esse almejado crescimento económico, porque é através dele que melhoraremos esta nossa realidade. O salário mínimo tem crescido muito acima da realidade da inflação. Nestes últimos anos tem havido brutais aumentos do salário mínimo, obviamente que o custo de vida e toda esta realidade não se altera de um dia para o outro. E o problema não está apenas na massa salarial, porque, como sempre disse e repito mais uma vez, uma empresa para pagar hoje os 820 euros de salário mínimo tem de ter em caixa mil e tal euros. O Estado tem de olhar para os salários mais baixos e ter uma política de taxa social única diferente daquela que tem no geral. O Estado tem de ter uma carga de impostos sobre os salários que permita às empresas e aos particulares ter mais receita disponível. Falamos muito dos jovens que saem do país, em parte, pelos salários, mas não é de um dia para o outro que Portugal vai conseguir poder pagar salários comparativos com outras realidades. E depois não é apenas o salário, há o problema da habitação. O custo da habitação hoje para os portugueses é insustentável. A solução para o problema da habitação passa pelos fogos disponíveis. Temos uma mancha de REN [Reserva Ecológica Nacional] e de RAN [Reserva Agrícola Nacional] terrível e como os terrenos para construção são poucos, o preço começa logo no custo do terreno da edificação. E depois, com as exigências comunitárias, estamos a fazer casas com custos milionários e não para uma classe média ou para uma classe até mais baixa. A questão da eficiência energética, a questão da norma da norma B, da norma C, leva a construção a custos incomportáveis para o arrendamento ou para a compra.

O Governo avançou com medidas para jovens…

O IMT tem a ver com a aquisição da habitação própria, mas uma renda de uma casa hoje para um jovem quanto custa? E um quarto? A questão que importa reter é que o problema não é só o salário, é um conjunto de outros fatores que o Estado também tem de contribuir. A carga de impostos e a política da habitação são duas realidades que não têm a ver com as empresas, têm a ver com o Estado. Uma empresa que pague a um jovem de entrada dois mil euros por mês depois com quanto fica? E depois falta a outra componente da função de Estado, que é ter habitação a preços condizentes. Vai-se fazendo pensos rápidos: reduz-se x% de IRS nos primeiros meses, vai-se isentando o IMT, mas as rendas reduzem-se em quê? Não podem ser pensos rápidos, tem de haver visão, estratégia e políticas públicas para irem ao encontro dos problemas atuais, e não vão ser resolvidos hoje. Tenhamos consciência disso, mas é um caminho que tem de se começar a fazer. Tenho de reconhecer que este Governo e este ministro tem vindo a dar provas de que está consciente – aliás era autarca e tem esse conhecimento – de que é preciso alterar a política da habitação. Agora tem de se dar tempo, é como na saúde. Este Governo tem meses… 

Mas nas últimos semanas voltámos a assistir ao caos das maternidades… 

É como a realidade que encontrei nesta casa, é preciso dar o tempo necessário para se começar a obter melhorias. Não se peça à Ministra da Saúde milagres. Não se peça ao Ministro das Infraestruturas milagres. Sem questões partidárias – o meu registo é reconhecer o que está mal e o que está bem, seja o PS, PSD, CDS – pergunto o que é que anteriormente foi feito? Esta situação é dos últimos três meses? A questão dos médicos, dos enfermeiros e do atual estado do Serviço Nacional de Saúde é de agora? Já nos esquecemos das filas de ambulâncias e de tudo aquilo que se passou. 

Temos memória curta?

Dê-se tempo a esta equipa governativa, como também se deu tempo ao primeiro Governo de António Costa. É o chamado ‘estado de graça’. Têm de estar ali um período e depois, obviamente, exigir. O estado de graça não pode durar dois anos. Os mandatos são de quatro mas, pelo menos, dar um ano, um ano e meio para se começar a ver as coisas a transformarem-se. Agora querer numa semana depois de os governos tomarem posse que as coisas passem de 80 para 8 só nos estamos a enganar a nós próprios, obviamente. 

Disse que a Cruz Vermelha vive em grande parte à custa dos donativos, mas se os portugueses estiverem asfixiados de ponto de vista financeiro serão mais curtos…

São. Mas também é verdade que o português é dotado de uma extraordinária sensibilidade social e, mesmo nestes tempos difíceis, mesmo neste quadro de dificuldades, temos tido respostas extraordinárias. E assistimos, em alguns casos, a exemplos de humanismo, de solidariedade, muitas vezes daqueles que menos esperava que o fizessem. Dá ideia que quem menos tem, mais consciência social tem daqueles que precisam de ajuda. 

Em relação aos que precisam de mais ajuda. Há um perfil definido? 

Há estas duas valências: os sem-abrigo e a violência doméstica. Desde que tomámos posse temos vindo a constatar, e já vinha a ser constatado na direção anterior, esse aumento de pedidos. Depois há aquilo a que se chama pobreza envergonhada, aqueles que têm vergonha de assumir o estado em que caíram, a insuficiência de meios para os encargos que vinham mantendo. Para muitos desses, os ordenados davam porque viviam no ‘chapa ganha, chapa gasta’, como diz o povo, mas com a inflação, com o aumento dos juros, desde logo da casa, com o aumento das rendas fez com que aquela classe dita média, mas que estava ali com água pelos lábios, de repente ficasse com a água acima do nariz. No entanto, têm vergonha de assumir isso com o vizinho, com a comunidade. Essa ajuda passa por dar alimentos e pelo pagamento de faturas. 

E no caso dos sem-abrigo esse aumento estará relacionado com a imigração?

O caso dos sem-abrigo é uma realidade que carece de uma análise mais profunda. A Cruz Vermelha tem centros e temos um excelente em Cascais, da nossa delegação da Costa do Estoril, onde acolhemos sem-abrigo em condições extraordinárias: quartos de banho, roupa lavada, damos todas as condições e temos alguns bons exemplos que se reintegram na sociedade. Temos outros que não têm o mínimo de condições para sair porque não se conseguem estruturar para ter essa autonomia. E temos outros que fogem ao fim de dois, três dias porque não querem ter regras e qualquer destes centros tem de ter regras. Mas temos de os ajudar em centros ou ajudá-los nos locais onde estão porque querendo viver à margem da sociedade não deixam de ter necessidades básicas. Já não vou falar de higiene, porque isso é quase impossível. Estou a falar de comida e roupa. Tive recentemente uma reunião com o presidente Carlos Moedas para ver este problema enorme que a zona dos Anjos está a ter para ver se encontramos soluções. Mas não é uma realidade só de Lisboa, é uma realidade de Cascais, de Sintra, de Bragança e ter uma terapia única é impossível, porque é quase como se cada caso fosse um caso e é impossível ter uma solução à medida de cada caso, porque as reações e os comportamentos são diversos. 

Mas todos ouvimos histórias de imigrantes a viver na rua, como os de Timor…

Esse problema tem outras dimensões. Há muitas vítimas de redes mafiosas, muitas vezes, dos próprios países e acabamos por avaliar os refugiados e os imigrantes no nosso país como se isso fosse um problema de abandono do país. Mas muitas vezes o país desconhece a realidade de muitos desses cidadãos porque são vítimas de redes mafiosas dos seus países, que pagam aquilo que têm e que não têm, que se endividam, que põem a família em risco em caso de incumprimento para virem para trabalhos que, às vezes, não existem ou, se existem, são muito precários, muito temporários e depois ficam ao abandono após executarem essas tarefas ou por não se terem adaptado. Muitos são referenciados e são encaminhados para as várias delegações e acabam por ter uma solução de integração mais rápida do que propriamente aqueles que ou que não estão referenciados e que vão aparecendo na rua. Admite-se que sim, mas dados objetivos estatísticos de que o grande aumento dos sem-abrigo resulta desse aumento de imigrantes não tenho. O que é verdade, isso sim, é um dado estatístico, é que a população sem-abrigo tem vindo a aumentar. 

O Governo agora aprovou uma série de medidas para a imigração tornando as malhas mais apertadas. Pode ser uma ajuda?

Pode, mas o ser humano é muito imaginativo e nas barreiras encontram-se sempre furos e nos muros encontram-se sempre buracos e quanto mais regras existirem para que os buracos não sejam fáceis de abrir, melhor. Agora, o que é correto é ter uma política de imigração bem definida. Não nos iludamos, precisamos de imigração, a nossa economia não vive sem imigração, por isso, têm de ser acolhidos, integrados e tem de haver uma política de imigração que seja bem estruturada, ou seja, não é ter só muros, é ter redes e que nessas redes estejam definidas regras para que aqueles que passam a rede sejam integrados, sejam acarinhados e sejam tratados como os outros cidadãos.

E com estas novas regras poderemos deixar de ver aquelas filas de espera intermináveis na AIMA?

Isso está relacionado com a qualidade e com a eficiência da administração pública. Li recentemente que temos hoje o maior número de funcionários públicos desde os últimos dez ou 12 anos, temos cerca de 749 mil funcionários públicos em várias áreas da administração pública. O que se deveria pretender não era aumentar o número, era dar maior eficácia e maior eficiência. O que é perverso hoje é que ainda estamos com marcações para alguns serviços públicos como se estivéssemos na covid. Dá ideia que alguns departamentos de prestação pública habituaram-se ao tempo covid, em que é preciso fazer marcação prévia para ser atendido. Fez-se a extinção do SEF com a integração foi feita e depois assistimos aos episódios que se assiste no aeroporto, com o que isso traz de imagem ao país e para aqueles que nos escolhem como destino turístico ou de outras naturezas económicas. Não faz sentido.

Em relação ao aumento dos casos de violência doméstica. Como explica? 

Não consigo encontrar uma razão para este aumento. Já tenho falado com outros colegas internacionais e não sinto que seja uma questão de Portugal, porque eles sentem o mesmo, acho que é uma questão do ser humano. Após a covid, o ser humano alterou muito a sua atitude perante a vida em várias dimensões, no plano do trabalho, no social, na família. Instalou-se um enorme receio da morte, da dimensão da pequenez do ser humano, quando nos julgávamos todos imortais, e dá ideia que o ser humano consciencializou-se finalmente que é mortal. Essa consciencialização gerou um comportamento muito diferente do que vinham tendo perante a vida e como se desenvolveu em todas as dimensões da vida temos tensões e expressões de raiva, respostas ríspidas, crispações, imediatismos de exigências, de satisfação, de exigências como se o amanhã não existisse. Acho que o individualismo, o egocentrismo, o egoísmo se instalou.

Quanto ao hospital da Cruz Vermelha? Está em fase de venda… 

Em 2010, salvo erro, a Cruz Vermelha Nacional alienou as quotas que tinha e foi criada a chamada Sociedade de Gestão Hospitalar e mantivemo-nos como senhorios. Hoje os donos dessa sociedade, a Santa Casa da Misericórdia e a Parpública, resolveram alienar as ações, mantendo-nos como entidade concedente já que a concessão dura até 2050. É verdade que os acionistas estão num processo de venda, na qual Cruz Vermelha é parte interessada enquanto senhorio, porque tudo o que lá for feito, todas as benfeitorias, todas as alterações temos de ser ouvidos. Não podia ser de outra maneira, mas não temos diretamente nada a ver com este processo. 

A Cruz Vermelha assinou com os sindicatos o primeiro Acordo de Empresa. A sua experiência na Lisnave ajudou?

Quando cheguei, esse processo já estava em marcha, tal como estava um outro que também iremos concluir brevemente que é a alteração dos estatutos. A Cruz Vermelha portuguesa, por regras internacionais, tem de alterar os estatutos de dez em dez anos. Os nossos são de 2007, daí ser urgente essa alteração. Em relação ao acordo, esta entidade tem colaboradores de várias especialidades: auxiliares, enfermeiros, médicos, pessoal administrativo. Os 2.800 colaboradores são de várias áreas e temos trabalhadores com 35 horas e outros com 40 horas, temos a mesma profissão numa delegação com vencimentos diferentes de outra delegação. É um saco de gatos em termos de gestão de recursos humanos. É verdade que esse processo já vinha sendo desenvolvido pelas direções anteriores, mas não é menos verdade que nenhum deles estava concluído e estava a ser arrastado de ano para ano. Quando aqui chegámos as negociações estavam a ser conduzidas apenas entre duas partes quando temos três partes no universo dos nossos colaboradores. Estava só a ser negociado entre a Cruz Vermelha e os sindicatos afetos à CGTP quando temos trabalhadores afetos a sindicatos da UGT então porque é que a UGT estava excluída? Ninguém sabia explicar. O que imediatamente fizemos foi chamar a UGT à discussão, integrámos como deveria ter sido feito anteriormente nesta negociação tripartida, e em dois meses fechámos o acordo.

Houve uma uniformização?

Houve um conjunto de normas pela qual a Cruz Vermelha Portuguesa, em todas as suas delegações, tem hoje uma matriz para gerir os seus recursos humanos.

E ficou estabelecido quantas horas de trabalho?

São 40 horas. Enquanto presidente da Cruz Vermelha não posso nem poderia ter uma visão diferente do António Saraiva, presidente da CIP. Qual é? Isso é uma matéria de Concertação Social e as entidades terão de se adaptar ao que vier a ser definido. Agora fazer numa entidade que hoje dirijo diferente daquilo que sempre defendi não o poderia fazer. Mantenho as 40 horas para quem tinha e as 35 horas para quem as tinha. Quando e se essa matéria vier a ser apreciada, validada em Concertação, cá estaremos para adaptar. 

Em relação ao Governo falou em estado de graça. Acha que o Orçamento será aprovado ou espera um braço-de-ferro?

Sinceramente, não espero um braço-de-ferro. Mais uma vez, como cidadão atento, inquieto, os sinais que vou observando e nestas guerrinhas de tensões a que vamos assistindo – sendo certo que cada partido com assento parlamentar vai fazendo o seu papel e vai cumprindo a sua estratégia de comunicação – tudo indica que este Orçamento vai ser aprovado. Com o tempo civilizacional externo e o tempo político interno em que nos encontramos, estou convencido que os dois partidos com maior representação parlamentar e alguns outros que os acompanharão não entrarão em eleições, não deixarão de dar a este Governo pelo menos este Orçamento para que no próximo Orçamento de 2026, as coisas, aí sim, possam ser mais apreciadas politicamente, mais discutidas. 

Não há interesse dos partidos em irem para eleições antecipadas? 

Não vejo que não existam bases e condições para que o Orçamento não seja aprovado.