Nos últimos dez dias tivemos em Portugal dois episódios que deixam as pessoas em sobressalto. O assalto à Secretaria-Geral da Administração Interna através de uns andaimes e, agora, a fuga com métodos quase infantis ou de banda desenhada da prisão de Vale de Judeus. O que se passa com os nossos sistemas de segurança?
O segundo caso não é tão infantil nem de banda desenhada, é da mais alta sofisticação, ou seja, é de profissionais.
Mas só um bocadinho profissionais, porque sabiam as fragilidades que não são admissíveis numa cadeia daquelas?
Estudaram-nas. Ora bem, eu acho que nós podemos abordar o problema em dois âmbitos. O problema específico da Secretaria-Geral, o problema específico da prisão de Vale dos Judeus e, depois, a questão global onde se inserem esses problemas. A questão da Secretaria-Geral, estou convencido que os computadores não tinham material, elementos suficientemente atrativos para serem roubados. O stock de informação que lá tem é muito burocrático e de natureza diferente da segurança.
Mas é uma vulnerabilidade quando alguém lá entra…
É, e a segunda ainda pior. Como é que é possível que o atraso seja de três a cinco horas para alertar as forças que tinham a responsabilidade de capturar os prisioneiros? É estranhíssimo.
É o suficiente para eles saírem do país?
Segunda questão, como é que as câmaras de vigilância atuam, têm visibilidade dos acontecimentos e só passadas dezenas de minutos é que os guardas e a própria prisão explicitam que sabem o que está a acontecer? Para que é que servem as câmaras de vigilância?
Em princípio, ninguém estava a olhar para elas?
Como é que não houve, durante tanto tempo e perante prisioneiros daquela estirpe, um acompanhamento interno, percecionando o que é que podia estar a acontecer? Uma das funções dentro das prisões é perceberem as questões e perceberem os comportamentos. Portanto, estes quatro fatores são típicos de situações de desresponsabilização, de falta de preparação, falta de eficácia e falta de entrosamento geral do sistema de segurança interna. Isto é, não foi só a prisão que falhou. Foram sobretudo as articulações que, num sistema de segurança interna, se manifestam e se propagam a outros órgãos. Sobre o problema da segurança interna, há duas questões que eu acho que vale a pena referir, o problema da sua organização e funcionamento e o problema do seu financiamento. Nós temos um sistema de segurança interna que é único na Europa, porque é um sistema não comandado por uma pessoa. Nós não temos um comando único, político, de Segurança Interna. A segurança interna exerce se em vários ministérios: Ministério da Administração Interna, Ministério da Justiça e Autoridade Marítima Nacional. Segunda questão, não há comando dentro do próprio meio, não há articulação do MAI com o chefe dos serviços prisionais. Na lógica que eu acho relevante e necessária, a administração dos serviços prisionais não devia estar no Ministério da Justiça. Quando se declara uma pessoa prisioneiro, há um problema de segurança que se coloca. Se há uma evasão, o problema passa da área da Justiça, passa da área dos direitos humanos para a área da segurança global, logo devia estar aí.
Outra questão importante é o facto de não haver uma autoridade única que superintenda na segurança interna, mas também não há nenhum órgão abaixo do ministro que consiga concretizar a coordenação operacional, a articulação entre as várias forças que concorrem para a segurança interna, desde logo a Polícia Judiciária, serviços prisionais e autoridade marítima, ou seja, a função do Estado geral.
E que autoridade devia existir?
Eu participei em 2007 na criação da figura do secretário-geral de Segurança Interna, e já na altura se colocou este problema, mas o PS, que estava no Governo, e com quem o PSD negociou na Oposição, achou que era mais prudente, e eu concordei, criar uma situação intermédia, em que se criasse um secretário-geral com funções de coordenação em algumas operações, não em todas, só naquelas que podiam colocar uma ou mais forças em alguns casos específicos. Ora bem, se caminharmos nesse sentido, pela criação do secretário-geral em 2007, eu acho que devemos caminhar no futuro para a transformação da Secretaria-Geral numa Autoridade Nacional de Segurança, isto é, a entidade que coordena em termos operacionais, que é isso que interessa.
E, entretanto, o que estes episódios revelam é que descurámos completamente estas áreas de soberania?
Sim, há um descurar que eu não sei se é negligência, se é impotência, se é incapacidade, porque só um Governo muito forte ou uma coligação de partidos forte imprime uma política global que passe por cima das várias entidades e das forças, porque, como se sabe, em Portugal o poder não está hoje em dia no poder político. O poder está nas instituições e as instituições são comandadas fora do poder político, e muitas vezes expressam e manifestam poderes autónomos que são autónomos em todos os sentidos. Isto é, o próprio Governo tem dificuldades em expressar uma política global que passe por cima de interesses paroquiais ou interesses corporativos. Por isso, voltamos a um problema essencial na vida política portuguesa, a fragmentação partidária, a balcanização partidária, a quase ingovernabilidade. Não é um problema português, está a acontecer em toda a Europa. Mas em Portugal a representação política é cada vez mais partidocrática, isto é, quem manda são os aparelhos partidários.
E isso está a impedir o desenvolvimento do país e as reformas que são necessárias?
Quando você não tem poder político forte, não tem poder. E quando não tem poder, não resolve, não atua, não está acima dos vários interesses corporativos, particulares, específicos, grupais, que proliferam no Estado e na sociedade portuguesa.
Mas voltemos às vulnerabilidades do Estado?
Isto entronca sempre no problema do dinheiro, financiamento, e aí há uma questão essencial que nós temos de perceber: é que o problema não se reporta apenas às áreas de soberania. Se olhar desde 2017, a proliferação de problemas em que o subfinanciamento do Estado se manifesta, tem Forças Armadas, em que os escalões mais baixos perderam sete, oito mil homens e as Forças Armadas não podem responder cabalmente às missões constitucionais que lhes são determinadas. O roubo de Tancos, como é que é possível um roubo numa instalação de excelência? O tempo que demorou a funcionar o SIRESP, a crise que tem passado, o SIRESP com as alterações dos sistemas de organização e direções, porque não dão resposta cabal em momentos de incêndio. A crise no SEF, a substituição pela AIMA, as migrações irregulares que entraram em Portugal com porta aberta, tudo isto significou alguma coisa essencial que no dia a dia todos nós percebemos, o financiamento é escasso e a resposta é simples, o Estado tem de ter prioridades. O Estado com recursos ilimitados, não pode ir a tudo, tem de ter prioridades.
Mas todas estas áreas não são claramente prioridades, ou não têm sido nos últimos anos, e mesmo as que são, saúde e educação, estão como estão?
Para além de fazer escolhas, temos de ter um Estado forte. Nós temos um Estado grande, não um Estado forte. Nós deixámos crescer o Estado com dimensões enormes para qualquer país não eficaz, não eficiente, não dado aos problemas das pessoas. Mas ouvimos falar permanentemente de contas certas, de défice de dívida, isso entrou na agenda política… E os meios de comunicação social vivem de duas coisas: do espetáculo, isto é, o que importa é aparecer, o que importa é mostrar-se, o que importa é brilhar com foguetórios, não é resolver problemas – que às vezes se faz em silêncio. O que dá trabalho não fazemos, o que dá nome e televisão, isso, aparecemos sempre.