O nosso sistema de ensino é um entrave ou uma alavanca no combate às desigualdades sociais? A escola é um espelho daquilo que se passa na sociedade e traz-se para dentro da escola os problemas graves de desigualdade que temos em Portugal. O que os dados mostram é que essa desigualdade entre alunos de famílias mais pobres e os que nascem em famílias mais ricas é muito grande. Vemos isso através dos exames PISA, por exemplo, onde concluímos que a diferença entre os alunos pobres e ricos, aos 15 anos de idade, é de cerca de dois anos de conhecimentos. Ou seja, um aluno de famílias mais pobres, só por essa razão, vai enfrentar barreiras que as outras crianças não vão. Vai ter notas mais baixas porque vive em casas piores, tem mais dificuldade em se concentrar ou em ter comida em cima da mesa e condições para estudar, etc. Portanto, há um fosso em relação aos outros seus colegas que não têm essas dificuldades. Esse é um problema grande que nós temos em Portugal e que não conseguimos resolver.
Quer dizer que as condições socioeconómicas são determinantes no desempenho escolar. E os pais?
Há coisas interessantes a dizer sobre o estilo de e o impacto que isso tem nas notas. Mas não podemos exigir a pais que têm vidas muito difíceis por causa da pobreza e das circunstâncias em que vivem que tenham o mesmo tempo e a mesma disposição, e até as mesmas ferramentas, para fazer face à educação dos seus filhos. A verdade, e aquilo que os dados revelam, é que a percentagem de alunos pobres que consegue ter cinco a matemática é quase metade dos outros alunos. Quanto aos pais, também conseguimos saber que os alunos que têm mães com ensino superior conseguem ter notas muito mais altas do que os alunos que não têm. Isso acontece por razões óbvias, nem que seja porque essas mães têm mais possibilidade de ajudar os filhos com os trabalhos de casa. Não podemos pedir a uma mãe que só tenha o quarto ano que tenha essas mesmas ferramentas.
Quais são então os fatores determinantes?
Um dos mais determinantes para se ter boas notas é a quantidade de dinheiro que os nossos pais ganham e, a seguir a isso e muito importante, é a escolaridade da nossa mãe. A mãe tem muito maior impacto do que o pai, por várias razões culturais e sociais que são muito conhecidas. Ainda são elas que passam mais tempo com os filhos.
Pode-se então concluir que a desigualdade social está a aumentar e a escola não está a conseguir responder?
O que nós vemos é que temos um país com um atraso histórico na educação muito grande, de vários séculos. Podemos ir ao Marquês de Pombal, que foi quando começou esse atraso. Quando chegamos ao ano 2000, a realidade é que cerca de metade da população não ia muito além da quarta classe ao nível da escolaridade. Entretanto, deu-se um salto enorme e hoje em dia quase toda a gente acaba o 12.º ano. Neste anos, conseguimos criar um sistema de ensino que se expandiu imenso, o que é uma grande conquista e motivo de grande orgulho. Temos uma taxa de abandono escolar que anda pelos 8%, o que é bom. E o que alcançámos, de uma forma única no mundo, foi alargar a escola a mais pessoas e ao mesmo tempo conseguimos que a escola gerasse melhores resultados. Eu tenho 33 anos e, se olharmos para os resultados que tinha na escola em 2007/2008, esses resultados eram relativamente piores do que os dos alunos de hoje. Os alunos de hoje têm resultados melhores do que há 20 anos – e não é melhores, é muito melhores. O grande problema é que a distância entre ricos e pobres nos últimos 20 anos não diminuiu. Ou seja, todos melhoraram, mas continua a haver a mesma distância. Este é um dos grandes problemas das escolas.
E qual é a tendência, para piorar ou para melhorar?
Há uma enorme probabilidade dessa desigualdade aumentar. Uma das razões tem a ver com a pandemia e o fecho das escolas. A pandemia não atingiu toda a gente de forma igual e as crianças de contextos mais desfavorecidos já tinham uma probabilidade maior de ter sofrido mais com essa desigualdade, quanto mais não seja porque as mandamos estudar em casa, em casas piores e com pais com menos disponibilidade para a escola, sem dinheiro para explicações, etc. Há ainda um dado percetível que mostra que a falta de professores tende a ser pior em zonas com contexto sócio económico mais desfavorecido. Portanto, os alunos mais pobres têm uma probabilidade maior de virem a ter falta de professores do que os alunos mais ricos. O que pode agravar as desigualdades, que já são muito grandes.
Os últimos resultados do PISA vieram mostrar uma inversão da tendência de melhoria das aprendizagens. A explicação é a mesma?
O que é percetível no PISA é que os resultados dos alunos portugueses pioraram bastante, dos ricos e pobres. Temos uma situação alarmante ao nível de várias competências. Por exemplo, a Matemática, cerca de um terço dos alunos de 15 anos não sabe matemática suficiente para ler um horário de uma autocarro. Não consegue ler uma tabela bidimensional. Repito: cerca de um em cada três alunos com 15 anos não tem competências matemáticas para conseguir interpretar um horário de um autocarro. Portugal tinha tido resultados muito bons, sobretudo por volta de 2015, os nossos alunos ultrapassaram até os finlandeses e todas essas vacas sagradas. Estagnamos em 2018 e piorou agora bastante, agravando uma tendência que já estava em queda. Portanto, a pandemia consegue explicar uma grande parte disto, como consegue em todo o mundo tal como muita gente como eu, tinha avisado que ia acontecer apesar de o Governo anterior ter feito ouvidos de mercador.
E a outra parte?
Portugal desceu mais do que a média da OCDE nos três domínios – ou seja, Matemática, Ciências e Leitura -, apesar de não termos sido o pior. Porquê? Primeiro, porque nós temos o problema da falta de escolaridade dos pais e quando mandamos as crianças para casa, enviamos esses alunos para pais que são relativamente pouco escolarizados. É preciso lembrar que Portugal é o país da Europa onde menos adultos tem o 12.º ano. Segundo, porque, além de fecharmos a escola durante bastante tempo, decidimos não investir o dinheiro suficiente para recuperar as aprendizagens que se perderam nesse período. Não há milagres. Os resultados portugueses só não foram piores, apesar da falta de investimento que fizemos nos nossos alunos, porque os professores e as escolas fizeram um trabalho tremendo e extraordinário com muito poucos recursos. Ou seja, apesar do que lhes deram e não por causa do que lhes deram. Iniciámos esta década com fecho de escolas e pandemia e esta década vai acabar com falta de professores. Já se sabia que isso ia acontecer e não se fez nada nos últimos anos para resolver esse problema. O resultado é, por tudo isto, mais ou menos dramático.
É apologista de uma remodelação do sistema. Deitar a baixo e fazer de novo?
Concordo que tem de se fazer uma remodelação do sistema, mas é importante que essa remodelação não seja abrupta. Na Educação o ideal é fazermos mudanças lentas, planeadas e com base em evidência científica. Não se podem mudar as coisas de um dia para o outro e fazer com que o sistema vá partindo, o que só prejudica os alunos. Antes de tudo, é importante que saibamos onde queremos estar daqui a 20 anos e planearmos esses 20 anos, definir o que temos de fazer para lá chegar. O pior que se pode fazer é estar sempre a mudar as coisas em cima do joelho e a apagar fogos, que é, no fundo, como se tem gerido, a Educação nos últimos anos.
Quanto aos professores, qual é o seu papel no meio de tudo isto?
A qualidade do sistema de ensino nunca será superior à qualidade dos seus professores. E o problema que agora temos nem sequer é a qualidade dos professores, é que não os há. Sem eles não conseguimos que a escola seja o sitio onde se dá oportunidades às crianças para quebrarem os ciclos de pobreza. Precisamos dos professores à frente. Por uma razão simples: na escola não há nada mais importante do que o professor. É ele quem define o que é mais importante para os alunos, quem ensina, quem os avalia e lhes dá as ferramentas para crescerem adultos funcionais e capazes de viver a sua vida. Os professores têm um impacto enorme na probabilidade dos alunos continuarem ou não a ser pobres, a terem problemas de saúde, fumarem, prevenir a gravidez precoce, etc. Temos evidência científica internacional, e também para Portugal, que mostra que é o professor que está à nossa frente, a sua eficácia, que determina o rendimento que vamos ter quando crescermos. Os professores são uma ferramenta essencial para combater a pobreza.
Mas temos falta deles e esse é um dos maiores problemas no ensino privado e público.
Para que haja professores suficientes, temos de recrutar mais ou menos 3500 por ano. Ou seja, até 2030, se contarmos a partir do início da década, são 34 mil professores que faltam. 39% dos professores reforma-se nesta década. E, se pensarmos que desde há dois anos, em Portugal , só se formaram três novos professores de Físico-Química, percebe-se o drama. Mais: só há 2% ou 3% de professores abaixo de 30 anos. Ou seja, para cada professor novo há 14 professores acima dos 50 anos no sistema de ensino. Os professores vão-se reformar todos ao mesmo tempo e não temos um pipeline de novos professores a entrar no sistema. Temos que ter medidas, infelizmente de emergência, para combater isso. Era bom que estas medidas tivessem sido pensadas há cinco ou há 10 anos.
A resolução passa também pela formação de professores. Quais são as dificuldades?
Eu vivo em Inglaterra e trabalhei muito anos em formação inicial e contínua de professores, precisamente como forma de combater a pobreza. Em Inglaterra, uma pessoa tira a sua licenciatura seja em que área for – que pode ser, por exemplo, Economia – e depois faz um mestrado em Educação de Matemática e pode ser professor de Matemática. Também pode escolher outra rota, em vez de fazer mestrado, que é fazer um estágio na escola durante um ano e meio. São medidas possíveis mas não desejáveis, porque são sempre de emergência. Mas é melhor ter professores que sejam qualificados para servir do que não ter professores de todo.
Como se resolve o problema de fundo?
Para resolver o problema estruturalmente temos que parar um bocadinho para pensar como é que queremos fazer esta formação. As universidades e politécnicos não têm capacidade instalada sequer para responder a este desafio. Aliás, se nós quiséssemos formar 3500 pessoas por ano, tenho dúvidas que existam universidades e politécnicos suficientes para os formar. Se há quem tenha estado muito calado sobre esta questão, têm sido precisamente as instituições de ensino superior que se excluíram de fazer parte da solução.
Quem daria essa formação alternativa aos cursos de Educação?
Os professores mais velhos que estão agora no sistema e as universidades. Ou seja, nós vamos ter que gastar dinheiro nisto. E, quando eu digo muito, é muito dinheiro mesmo. Temos de perceber que há investimentos que têm mesmo que ser feitos.
Ou seja, investir na formação e melhorar os salários do professores?
Também acho fundamental pagar melhor aos professores, sem dúvida.
Os sindicatos têm contribuído para a solução ou são um entrave?
Os sindicatos têm feito o seu papel no sentido de que têm defendido alguns interesses muito legítimos de professores que estão agora no sistema. Esses interesses têm e devem ser defendidos porque foram criadas expectativas ao longo de vários anos que só foram respondidas recentemente. Mas os sindicatos deviam ter um papel ainda mais importante, que passa por olhar para o futuro. Portugal tem uma oportunidade interessante, por ter muitos sindicatos ao contrário de outros países, e com bastante poder. Todos têm um dever moral de fazer parte da solução e discutir que tipo de profissão e escola pública o nosso país quer ter daqui a 20 anos. Gostava de ver os sindicatos mais envolvidos nessa discussão do que estão neste momento.
Acha que é necessário um pacto de regime na Educação?
Nos últimos oito anos, antes deste Governo, tivemos alguma estabilidade e não se fizeram as reformas de todo para fazer face a estes problemas. A estabilidade é um valor em si mesmo, mas limitado. Temos é de conseguir que esta gente entenda o que está em jogo. Ainda há pouco tempo havia ministros a minimizar os impactos da pandemia e da falta de professores. Assim não dá. É necessária uma aproximação mais científica a este problema, sermos mais honestos com nós próprios, perceber a gravidade da situação e, com isso, chegar a consensos que, de facto, têm de ser de regime. É preciso que ao centro político as pessoas consigam falar e perceber que há problemas no país que têm que ser resolvidos já e que são mais importantes do que as suas ambições pessoais ou as eleições.
Mas como esbater um mundo ideológico que separa um ministro como João Costa e o atual, Fernando Alexandre?
Há, de facto, um mundo de pensamento ideológico que os separa, mas a verdade é que há medidas que o PSD agora tomou e que o PS já as tinha tomado mas não teve foi a coragem de as dizer. Por exemplo, houve algumas medidas que foram revertidas em relação à contratação de professores e que, pela calada e em desespero, foram retomadas no fim do anterior Governo. As vistas curtas de alguns governantes podem levar a que muitos destes políticos fiquem na história como os responsáveis pela primeira década da democracia em que o nosso sistema de ensino piorou bastante. Não me parece que alguém queira ficar com esse cadastro. O mundo de diferença entre João Costa ou Tiago Brandão Rodrigues e o atual Fernando Alexandre está na maneira como identificaram os problemas e tentaram resolvê-los. O acordo da reposição do tempo de serviço dos professores deu logo um sinal muito certo, pena é que não se tenha resolvido nos anos.
O sistema de contratação de professores deve ser repensado?
O sistema de contratação de professores é bastante único e a verdade é que falhou. É impossível acharmos que esse sistema não tem qualquer impacto no facto de não termos muitas crianças a querer ser professores quando crescerem. Quando olhamos para os dados internacionais, vimos que Portugal é um dos países onde menos crianças querem ser professoras quando crescem. É um sistema que tem criado muita distorção no mercado de professores e que gera situações absolutamente esdrúxulas que é termos pessoas, que são os professores, que sacrificam os seus filhos pelos filhos dos outros. Estamos a pedir às pessoas que vão dar aulas longe de sua casa e deixem para trás a família e os próprios filhos para ajudarem os filhos dos outros.
Como é que se resolve isto, contratação por escola?
Não podemos acabar com a contratação centralizada de professores de um ano para o outro, evidentemente. A mudança tem de ser feita gradualmente para não ferir novamente a expectativa legítimas de quem está no sistema. Mas não consigo compreender como se pode defender um sistema que retira à escola o poder de usar os seus recursos, que são os mais importantes, os seus professores, para resolver os problemas sociais que temos. O que nós estamos a dizer é que nós, enquanto Estado, não confiamos nas escolas para elas fazerem o seu trabalho, para contratarem os seus professores e funcionários. Isto acontece por várias razões, mas resta saber se o prejuízo que vem deste sistema compensa o benefício que podia ter outro sistema. Essa discussão convém ser feita.
Outra das barreiras ao trabalho docente é o excesso de burocracia. Qual é o impacto?
Portugal é um dos países da OCDE onde os professores reportam níveis de stresse mais altos. Têm níveis de stresse mais altos do que os condutores de ambulância, médicos e outras profissões de alto stresse. E o que nós sabemos, através dos dados internacionais, é que 80% dos professores portugueses reporta a burocracia como uma das principais causas de stresse. Há muita papelada que têm de preencher e que essa papelada não permite que eles se concentrem no que é mais importante que é ensinar os seus alunos. Seria interessante que se começasse a pensar sobre de que forma é que podemos usar os avanços tecnológicos para resolver este excesso de burocracia e outros problemas. Pode haver soluções interessantes que merecem ser pensadas.
Tais como?
Usar a IA para ajudar os professores a criar os materiais, dar aulas, ajudar a corrigir testes, etc. e com isso dar-lhes mais tempo para ensinar. Podemos usar essas ferramentas para diminuir a burocracia e diminuir o stresse e a ansiedade que sentem. Por fim, e o mais importante, é que isso permite poupar recursos que são importantes para pagar melhor aos professores e investir nos alunos de contextos mais desfavorecidos, alunos com necessidades especiais e os alunos migrantes, pois são uma realidade importantíssima no nosso sistema de ensino.
Outro tema que está a gerar um grande debate é o acesso à creche.
Nós sabemos que a desigualdade começa muito antes do primeiro ano de escola, o fosso entre os alunos mais ricos e os mais pobres já lá está precisamente porque a desigualdades vem da circunstância em que se nasce. O que nós sabemos, através da literatura internacional, nomeadamente do Prémio Nobel James Heckman, é que os três primeiros anos de vida são os mais importantes no desenvolvimento cognitivo e não cognitivo, ou seja, as capacidades de resiliência ou emocional e motoras. Também sabemos que cada euro que investirmos nesses primeiros três anos de vida tem um retorno muito mais alto do que qualquer outro noutra fase da vida. O que investimos na creche tem um retorno mais alto do que aquele que é feito na universidade. Mas em Portugal fazemos tudo ao contrário, investimos muito na universidade e muito pouco nos primeiros anos. Atualmente, só temos capacidade para cerca de 50% das crianças na creche, e é a mesma desde 2015, Além disso são as crianças pobres que têm menos probabilidade de frequentar a creche: só uma em cada três crianças pobres consegue ir para a creche. Ou seja, o nosso Estado Social beneficia primeiro as crianças que têm pais mais ricos e menos as crianças que nasceram em famílias mais pobres. Mais, para cúmulo, entre os quatro e os cinco anos, que correspondem ao pré-escolar, Portugal é o país da OCDE onde as famílias gastam mais dinheiro no pré-escolar. De todos os países. E porquê? Porque se prometeu que havia pré-escolar gratuito mas não há vagas para todos. E os que podem recorrem ao privado. É outro grave problema que tem mesmo de ser encarado.