Passe ferroviário: sucesso pode levar a ‘colapso’ do serviço

Sindicatos dizem que a falta de trabalhadores e de material circulante condicionam aumento da oferta.

Em pouco mais de três dias foram vendidos 4.585 passes ferroviários. A medida lançada pelo Governo permite viagens ilimitadas em diversos serviços ferroviários por um preço fixo mensal de 20 euros, «sendo uma aposta para reforçar a utilização do transporte ferroviário em todo o país», diz a CP, mas que faz soar alarmes junto de alguns dos sindicatos ouvidos pelo Nascer do SOL. O serviço pode entrar em colapso devido à fraca oferta perante o aumento expectável da procura, avisam.

Ao nosso jornal, Abílio Carvalho, coordenador nacional do Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Setor Ferroviário (SNTSF), lembra que à falta de trabalhadores há que somar ainda a falta de material circulante, o que não permite reforçar a oferta e que poderá deixar muitos passageiros em terra. «Muitas vezes os comboios já andam cheios, nomeadamente os intercidades. Curiosamente andei esta semana num intercidades que veio do Porto e o comboio, mesmo nas primeiras classes, vinha bastante cheio. E como há falta de material circulante não podem existir comboios noutros horários além daqueles que já estão a servir as pessoas», salienta.

Uma opinião partilhada por pelo coordenador da Fectrans, José Manuel Oliveira. «Até pode haver 10 milhões de pessoas com passe rodoviário. Não há é condições para 10 milhões utilizarem esses benefícios no estado em que a CP está. Aliás, ainda hoje fui com um colega ao Entroncamento e quando estávamos à espera do comboio comentámos que não havia lugares», refere ao Nascer do SOL, acrescentando que atualmente os passageiros já são confrontados com atrasos permanentes. «Estamos constantemente a ser avisados de atrasos de comboios ou porque há comboios e há problemas de infraestruturas ou porque não há problemas de infraestruturas, há problemas no comboio, ou há infraestruturas e há comboios mas não há trabalhadores, o que nos parece efetivamente é que no momento em que as pessoas que têm passe começarem a utilizar, vamos ver os comboios que já andam em seis mais seis e muitos, no caso concreto dos intercidades como o que está determinado é que só podem fazer a marcação nas 24h que antecede a viagem correm o risco de só os primeiros a marcar é que têm lugar, há certamente pessoas que não têm lugar».

Apesar das críticas, o ministro das Infraestruturas tem dado uma palavra de confiança ao trabalho da CP. «Acreditamos profundamente nos quadros da CP, no talento da CP. Esta medida foi desenhada com a CP, não foi desenhada a partir do gabinete do ministro. A CP está consciente do risco. Vai aumentar a procura? Vai. Temos alguns serviços aos quais vamos estar atentos. Há outros que, infelizmente, em Portugal, a procura era pouca. E, portanto, temos uma média de ocupação dos Intercidades na casa dos 50%», disse Miguel Pinto Luz.

E ao nosso jornal, fonte oficial do Ministério diz que as projeções de procura, realizadas em conjunto com a CP, «não colocam em causa a segurança dos comboios no que toca a taxa de ocupação, não comprometendo a segurança e qualidade do serviço». Já em relação ao plano de recrutamento, diz que está a ser levado a cabo pela própria empresa, assim como o alargamento do material circulante, que «está a ser feito através do trabalho das equipas da CP na recuperação de material circulante e através de dois processos de aquisição de material circulante que a CP e o Governo estão a acompanhar.

Em resposta, Abílio Carvalho diz que o ministro está «demasiado» otimista. «Não deve ter noção real ou não quer admitir que tem essa noção. Ainda esta semana, recebemos do Governo uma nota aos trabalhadores da CP a valorizar muito o seu trabalho e esforço. As palavras são muito bonitas mas não resolvem os problemas».

Corrida aos passes
O Nascer do SOL sabe que há várias pessoas a mostrar interesse em comprar estes passes mesmo sem nenhuma necessidade específica porque permitem poupar muito dinheiro.

A título de exemplo, uma viagem de Lisboa para o Porto num intercidades custa 26,85 euros. Ida e volta fica a 53,70 euros. Já para Faro, ida e volta fica a 47,10 euros (23,55 euros cada bilhete). Outro exemplo que também compensa é Coimbra. As duas viagens sem o novo passe ficam a 42,60 euros, o que significa que cada bilhete custa 21,30 euros.

Os utilizadores também se vão queixando das grandes filas para comprar esse novo passe, filas que não existiam antes. E a incapacidade de dar seguimento a tantas pessoas pode estar relacionada com o facto de, tal como dizem os sindicatos, haver falta de mão-de-obra.

«A falta de efetivos na empresa é um problema que consideramos bastante grave e vem-se agravando de há bastante tempo a esta parte. Independentemente de ter existido recrutamento de algumas categorias, muitas delas não conseguem fazer face às necessidades da CP, por um lado. Por outro, temos outro problema que são os baixos salários e ligado a isto temos ainda a dificuldade de não conseguir manter os trabalhadores. Há muitos trabalhadores que entram, e não é só para as oficinas, é para diversas categorias e passado pouco tempo saem da empresa e vão para outras, muito provavelmente ganhar muito mais do que estão aqui a ganhar», refere Abílio Carvalho.

‘Desastre financeiro’
Quem também considera que esta medida pode vir a correr mal é a Comissão de Trabalhadores da CP. «Para termos uma ideia do impacto financeiro deste Passe Nacional, 20 euros é menos que o bilhete de 2.ª classe num comboio Intercidades de Lisboa a Coimbra (21,3 euros em 2.ª classe; 26,85 euros em 1.ª classe)», começaram por apontar os representantes dos trabalhadores em comunicado. Anteveem que esta medida será um «desastre financeiro» e que, além disso, vai levar a um aumento de procura e «provar, sem sombra de dúvida, que a CP não tem capacidade de resposta e a infraestrutura está em colapso».

A CP mostrou-se surpreendida com esta nota da Comissão de Trabalhadores, principalmente com a parte que fala sobre o impacto negativo significativo nas finanças da empresa. «Não compreendemos em que se baseia a Comissão de Trabalhadores para fazer tais afirmações», diz a transportadora. E dá números: «O valor de 18,9 milhões de euros mencionado foi rigorosamente calculado pelos serviços comerciais e financeiros da CP, que trabalharam de forma dedicada para desenvolver este novo passe, de acordo com os melhores padrões de análise e planeamento», achando, por isso «inadmissível» que a CT «se permita vir a público desrespeitar e pôr em causa a competência e o profissionalismo dos trabalhadores, passando um atestado de incompetência a todos os que se dedicaram a este projeto com empenho e rigor».

Ainda que reconheça que precisa de mais material circulante e que está a realizar «a maior aquisição de comboios da história da empresa», a CP diz que a comissão de trabalhadores «parece ignorar um dado crucial: a disponibilidade de material circulante é hoje significativamente maior do que há três anos, graças ao esforço e à dedicação dos trabalhadores das oficinas, que têm reparado e devolvido à rede dezenas de carruagens e locomotivas. É esse esforço diário, daqueles que a Comissão de Trabalhadores tenta desvalorizar, que permitiu à CP atingir o maior número de passageiros dos últimos 25 anos».

Já o Ministério das Infraestruturas lembra que a capacidade da infraestrutura é gerida pela IP, que tem atualmente em curso vários investimentos, dos quais se destaca a nova Linha de Alta Velocidade, o corredor internacional Sul, a eletrificação da Linha do Algarve e a modernização da Linha do Oeste. Estes investimentos vão aumentar a capacidade da infraestrutura e permitir melhores serviços por parte da CP.

«Do lado da CP, está em curso um plano de modernização da empresa por forma a aumentar a sua eficiência e digitalização como, por exemplo, projetos de informação em tempo real ao cliente, fundamental em situação de pico de procura. Adicionalmente, já foram referidos os projetos de aquisição e recuperação de material circulante», recorda ao nosso jornal.

Uma argumentação que não convence José Manuel Oliveira. «Não há material para arranjar, para assegurar as escalas de serviços porque há menos trabalhadores na revisão, o número de trabalhadores já está no limite, a empresa tem que recorrer a muito trabalho extraordinário e há que contar com as férias. Estamos perante uma tempestade perfeita». E garante que o primeiro teste será durante um fim de semana prolongado quando se perspetiva um aumento de procura. Ainda assim, não sabe se será já no próximo dia 1 de novembro, uma vez que para essa data foi convocada uma greve pelo Sindicato Ferroviário de Revisão Comercial Itinerante (revisores e trabalhadores das bilheteiras), para a qual já foram decretados serviços mínimos.