O conflito sírio transcende amplamente as suas fronteiras. Sendo um país de uma importância estratégica substancial, a Síria tornou-se com naturalidade uma peça fundamental no tabuleiro geopolítico e uma região onde os principais players – internacionais e regionais – se digladiavam em conformidade com os seus respetivos interesses.
A queda do regime de Bashar al-Assad é um momento decisivo na história desta nova Guerra Fria e, além de marcar um virar de página no país, altera o jogo de equilíbrio de poder da região. O “dia seguinte” é incerto e a paz não parece possível num futuro próximo. O mundo está em ebulição, e a Síria, ainda que o golpe de Estado fosse uma mera questão de tempo, é apenas mais uma erupção potenciada pelas circunstâncias envolventes.
Os Estados Unidos, a Rússia, o Irão, Israel e a Turquia têm muito a ganhar ou a perder na Síria. Uns mais que outros. Mas o que faz deste país uma peça-chave num jogo superior?
Importância estratégica
Primeiro, é importante salientar que a Rússia é um aliado histórico da Síria. Atualmente, o regime de Assad permitia a Vladimir Putin estabelecer a sua influência na região e, acima de tudo, permitia-lhe o acesso ao Mar Mediterrâneo através de duas bases estratégicas na costa síria – a base de Tartus e a base de Khmeimim. Há relatos, principalmente o de uma agência militar ucraniana, que indicam a retirada das forças russas do país. O Kremlin continua a assegurar que se mantém nas suas bases e que está a tentar estabelecer contactos para a sua continuidade no novo regime. Independentemente disso, a Rússia sofreu um duro golpe neste conflito superior.
É também importante destacar que Moscovo testou mísseis hipersónicos no verão de 2021 a partir da sua base de Khmeimim. À data, o Kremlin informou que “um par de aviões MiG-31 com capacidade para utilizar os mais recentes mísseis hipersónicos (…) voaram de aeródromos russos para a base áerea de Khmeimim, na Síria, para exercícios”. Artilharia que viria posteriormente a ser utilizada para atacar a Ucrânia. Há um certo paralelismo entre este episódio e aquele que teve lugar na década de 1930, quando Adolf Hitler utilizou a Guerra Civil espanhola como campo de testes para as suas ofensivas futuras.
Quem sai também enfraquecido deste combate é o regime iraniano. Teerão foi um dos principais patrocinadores da violência perpetrada por Bashar al-Assad contra os opositores, utilizando o país como corredor de modo a conseguir armar os seus proxies – o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza. Ali Khamenei, o líder supremo do Irão, pode estar preocupado com um possível efeito dominó, uma vez que a popularidade do seu regime já conheceu dias melhores. Com o Hezbollah e com o Hamas paralisados, em conjunto com o crescimento de Israel, e com a Rússia mais frágil, a República Islâmica pode estar em perigo.
A intervenção americana também merece destaque. Diferente da doutrina neoconservadora – que procurava exportar o sistema americano a todo o custo –, os Estados Unidos atuaram de forma mais discreta neste golpe de Estado sírio. Podem identificar-se vários interesses de Washington, mas destacam-se particularmente dois: o enfraquecimento do eixo Rússia-Irão, no geral, e a contenção do Estado Islâmico, no particular. A queda de Assad satisfaz o primeiro interesse na sua totalidade, mas o segundo exige uma presença contínua no país, algo que está longe de ser assegurado na presidência de Donald Trump. O Presidente-eleito reforçou mais uma vez o princípio de não intervenção aquando da queda de Bashar al-Assad.
Desequilíbrio de poder
As relações entre Estados no Médio Oriente são extremamente complexas. Existe um sistema que escapa à própria teoria do equilíbrio de poder, com uma intrincada rede de alianças. Ainda assim, a Turquia e Israel assumem agora uma luta pelo poder na região, após o enfraquecimento do Irão.
O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, declarou-se como o grande vencedor desta ofensiva que fez capitular o regime de Bashar al-Assad. O seu apoio inequívoco ao HTS e a visita do seu diretor nacional de Inteligência, Ibrahim Kalin, a Damasco nos dias que se seguiram à conquista dos rebeldes, deixam um ponto assente: a Turquia é um ator principal na região. Porém, os turcos não estão sozinhos.
Os israelitas – fortalecidos após a neutralização do Hamas e do Hezbollah, juntamente com a destruição das defesas aéreas iranianas –, avaliam a ação da Turquia como uma ameaça que estão empenhados em combater, apressando-se a bombardear alvos militares sírios após a queda do regime, principalmente repositórios de armas. A incerteza quanto à conduta do novo regime levou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a tomar esta decisão. Os analistas dividem-se na avaliação desta conduta. Alguns consideram-na preventiva, outros injustificada. Seja como for, e independentemente do apoio à causa palestiniana por parte de Assad, existia um acordo tácito entre Israel e a Síria. Acordo este que, naturalmente, desapareceu.
“Aconteceu aqui algo de tectónico”, disse Netanyahu, “um terramoto que nunca tinha acontecido nos cem anos que se seguiram ao acordo Sykes-Pictot”. Esta menção ao acordo entre britânicos e franceses em 1916 não é, nem poderia ser, aleatória. Neste tratado secreto ficaram definidas as esferas de influência no Médio Oriente, tendo em vista a eventual queda – que se acabaria por confirmar no final da I Guerra Mundial – do Império Otomano. O jornalista britânico Gideon Rachman, a propósito desta afirmação do primeiro-ministro israelita, considerou num artigo publicado ontem no Financial Times, que “com o Médio Oriente em convulsão, os defensores de uma Grande Israel veem uma oportunidade para redesenhar as fronteiras da região”.
Posto isto, a luta pelo poder e pela influência na região abre assim um novo capítulo, onde Ancara e Tel Avive são os principais intervenientes.
A ressaca
Neste momento, é difícil prever o que será da Síria num futuro a médio-longo prazo. A tomada de poder pelo HTS, em tempos uma ramificação da Al Qaeda, levanta preocupações, mesmo que o seu líder já tenha garantido moderação e a proteção das minorias. Tendo em conta as inúmeras fações cujos interesses se sobrepõem, poderá ter lugar um processo semelhante ao dos Balcãs na década de 90? Ou perdurará a Guerra Civil? O que parece inevitável é que o processo de estabilização seja tortuoso. Contudo, Kim Ghattas, uma das mais conceituadas correspondentes no Médio Oriente, acredita haver razões para sermos mais “esperançosos do que fatalistas”. “Isto não é o Iraque, onde houve uma invasão dos EUA que derrubou Sadam Hussein, e isto não é a Líbia, onde houve uma intervenção liderada pela ONU. Este é um processo liderado pelos sírios, e é por isto que penso que devemos ser um pouco mais otimistas e apoiar os esforços sírios, para nos certificarmos que vão em frente rumo à estabilidade”, afirmou a jornalista.
Porém, independentemente das diferenças processuais apontadas por Ghattas no caso do Iraque e da Líbia (ver págs. 10-11), não deixa de ser o fim de um regime tirânico em que o poder fica fragmentado. “Por muito difícil que seja derrubar um regime, é ainda mais difícil construir um país funcional”, constatou o presidente emérito do Council on Foreign Relations, Richard Haass, no mesmo programa. Toda a questão de instabilidade e incerteza que envolve neste momento a Síria, resume-se essencialmente a esta premissa. A criação de um país pacífico e estável é uma missão hercúlea – ou mesmo impossível.