José Filipe Pinto. “Não vejo em nenhum dos políticos da atualidade a visão de inventar o futuro”

O professor catedrático e especialista em Relações Internacionais, diz que temos líderes a pensar no tempo eleitoral quando defende que “o tempo político tem de ser superior ao tempo eleitoral”, daí afastar a ideia que Zelensky poderá seguir o caminho de Churchill.

Considera que há algum descendente de Churchill? Há quem aponte Zelensky…
Não concordo que Zelensky possa ser apontado como alguém seguidor de Churchill. Churchill, a meu ver, tem um ativo enorme, não apenas na vitória aliada da Segunda Guerra Mundial, mas porque conseguiu, em pleno conflito, encomendar ao ministro Beveridge o relatório Beveridge para lutar contra os cinco gigantes que iriam condicionar toda a geração atual e futura. O Estado Social europeu que hoje é uma bandeira da esquerda foi criado na Prússia por Bismarck, mas o principal rosto deste Estado social europeu foi Churchill e o relatório Beveridge porque lutou contra os cinco gigantes: fome, doença, miséria, ignorância e ociosidade, o que quer dizer que Churchill era um político com visão de futuro, enquanto Zelensky é um político com visão de presente. O relatório Beveridge é de 1942 e é preciso ser-se um estadista para que, em pleno conflito, com a Inglaterra a ser bombardeada, com as minas alagadas, com as fábricas destruídas, com mortos no campo de batalha, se tenha uma visão de futuro. Entendo que Churchill não previu o futuro, mas foi um inventor do futuro e é alguém, cujo legado não é de apenas resistência ao nazismo, que é fundamental, mas é essencialmente uma ideia de futuro. Uma situação que, no entanto, o eleitorado não compreendeu e, por isso mesmo, não percebeu que as medidas que tomava, ou seja, que este relatório não se destinava ao curto prazo, mas a uma visão de futuro que garantisse à população inglesa um nível de vida compatível com a condição humana. Esse, para mim, é o maior legado de Churchill. É evidente que não vejo em Zelensky, nem em nenhum dos políticos da atualidade – tanto da atualidade nacional como do atual no panorama internacional – quem tenha esta visão de inventar o futuro e, como tal, penso que Churchill não terá sucessores tanto no plano interno do Reino Unido, como a nível europeu e a nível mundial.

Deixou-nos órfãos?
Deixou-nos órfãos. Aliás, a pessoa que mais se aproxima dele a nível interno, a meu ver, é Margaret Thatcher, que no livro que escreveu A Arte de Governar – que acaba por ser um livro de memórias mas, ao mesmo tempo, um manual de ciência-política – percebemos que há uma razão que justifica todas as decisões que tomou, inclusive quando resolveu desafiar as políticas da União Europeia e os contributos que o Reino Unido estava a ter com o orçamento comunitário. No entanto, há aqui aquilo a que chamo do pragmatismo da espuma dos tempos que é uma política para o presente, uma política a curto prazo, uma política quase orçamental e não há o que se chama uma visão de futuro e muito menos uma invenção de futuro. Podem-se prometer cenários de futuro e dizer que se estão a criar condições para cenários de futuro e é isso que Zelensky faz, mas é diferente porque continuam a não conseguir pensar fora da caixa. E o que é pensar fora da caixa? É conseguir ir mais além e a nível político não acho que tenhamos nenhum sucessor neste nível. Há uma outra figura que saiu do bloco de Leste, que verdadeiramente pareceu que poderia simbolizar este espírito, que foi Lech Walesa, só que depois percebemos que havia uma grande diferença entre a palavra e a ação, entre a ideia e a política possível de colocar em prática essa ideia. De resto, não vejo mais ninguém. E depois há um elemento importante que é o facto de termos líderes a pensar no tempo eleitoral e o tempo político tem de ser superior ao tempo eleitoral.

O sucesso nas urnas dita essa estratégia?
É evidente e o que acontece é que, neste momento, os líderes são todos marcados pela temporalidade, todos pensam em termos de mandato e não em termos de futuro. E o pensar em termos de mandato, mesmo quando se diz que estão a criar condições para futuro, é sempre uma visão demasiado afunilada, uma visão demasiado simplista porque é preciso ir mais além. Churchill foi mais além e com a vantagem de ter ido mais além, não abdicando da dimensão social da política, do Estado Social. Esse é um dado fundamental, porque significa o quê? Os políticos passam a ideia que não conseguem fazer o acompanhamento social que pretendem, as políticas sociais que se impõem porque não dispõem de verbas, não dispõem de orçamento para tal, mas Churchill fez o contrário. Foi numa fase em que o orçamento era altamente deficitário, mas percebeu a necessidade de se pensar num plano para o futuro. Por isso, digo que Churchill foi um inventor do futuro. Não foi alguém que previu o futuro, criou e inventou e o Estado social europeu é muito tributário da visão de Churchill. Ainda hoje olhamos para a dimensão social e percebemos que o Estado social está em crise, precisamente porque não temos pensadores que consigam entender que a dimensão social nunca pode ser hipotecada.

Apesar de os partidos de esquerda acenarem com o facto de serem responsáveis pelo Estado social?
Isso é uma completa falácia. Quem criou o Estado social foi Bismarck, na Prússia e a maior figura do Estado social é Churchill e Beveridge. Dou uma cadeira que se chama Desigualdades, Inclusão, Exclusão Social e o documento fundamental que analisamos quando estudamos a questão da pobreza, dos cinco gigantes que era preciso combater é o relatório Beveridge. Tanto Churchill como Bismarck eram políticos de direita, logo eram conservadores, o que quer dizer que a apropriação por parte dos partidos de esquerda do Estado Social é uma completa falácia, já que não estiveram na base do Estado Social. A única exceção, a meu ver, foi aquilo que se passou com a Frente Popular em França, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Sente alguma desilusão por Churchill não ter deixado nenhuma influência ou por ninguém ter seguido as suas pisadas?
O problema que está no bipartidarismo inglês é que hoje já não é um bipartidarismo prefeito porque percebemos que os liberais estão a aumentar muito e que a composição do Parlamento só é assim porque ainda permanece o método maioritário a uma só volta em círculos uninominais, o que quer dizer que em cada circulo só se elege um. Por exemplo, o Partido Liberal pode ficar em segundo em imensos círculos e não elege ninguém nesses círculos. Hoje, a sociedade inglesa é diferente e a política inglesa também é diferente e já não há aquilo a que se chamou durante muito tempo, o modelo Westminster, que é um parlamentarismo. O sistema inglês baseia-se não na separação de poderes, ao contrário do que se diz, mas na colaboração de poderes. O sistema de Governo é um parlamentarismo em que há uma colaboração de poderes. É por isso que os ministros que compõem o gabinete têm de emanar todos do Parlamento. Têm de ser membros do Parlamento. Ora, este modelo deveria de funcionar como uma escola de virtudes, o que significava que quando alguém ia para o Governo saía do Parlamento, como tal, tinha uma legitimidade direta por ter sido eleito membro do Parlamento. E quando se escolhe alguém para o Parlamento, escolhe-se sabendo que poderá eventualmente ir para o Governo. Não há membros de fora. Em Portugal, por exemplo, não sabemos quem é que vai ser o ministro das Finanças ou o ministro de qualquer outra pasta e pode ser perfeitamente alguém que não tenha legitimidade de voto. Ora, o que é que isso quer dizer em termos reais? O Parlamento deveria funcionar como uma escola de políticos, alguém que fizesse a sua formação no Parlamento, que dominasse os dossiês e depois, evidentemente, pudesse estar capaz de servir a República. O problema que se coloca é que tem havido uma diminuição da qualidade da representação e isso conduz a que não haja figuras como encontrámos no passado, como, por exemplo, Churchill. Se bem que estas figuras são temporalmente datadas. E esta expressão é importante porque ao serem temporalmente datadas, significa que eram pessoas do seu tempo, mas que imaginaram o tempo para lá do seu tempo. E o que hoje temos é essencialmente políticos marcados, como ele disse, para temporalidade, pelo mandato e, por isso, mesmo não há o desenvolvimento de um espírito futuro.

Dá-se prioridade ao imediato…
Em termos reais, esse é um problema da democracia. Por exemplo, hoje apelamos à participação dos cidadãos, mas com a complexidade dos problemas, em vez de se incentivar faz-se precisamente o contrário porque torna-se difícil à maioria dos cidadãos dominar os dossiês que é preciso resolver. No Parlamento é a mesmíssima coisa, o que significa que tem havido uma redução na qualidade da representação e ao haver uma redução na qualidade dificilmente também irá surgir um espírito superior. Até porque, mesmo que houvesse uma manutenção da qualidade, os espíritos superiores representam exceções, o sistema não os cria. O sistema dá-lhes condições mas, mais do que isso, são eles que criam as condições. O que quer dizer? Churchill, numa primeira fase, foi um produto do sistema, mas depois ele próprio pensou, imaginou e inventou um sistema mais avançado em determinadas áreas, sem pôr em causa o sistema político.

Isso nota-se quando estamos a debater alguns dossiês…
Sim, mas o problema de hoje é que os problemas têm uma complexidade crescente e, por isso mesmo, também têm essa complexidade. Têm aquilo a que chamo várias dimensões e torna-se difícil mesmo aos políticos, ainda que com bons assessores, dominarem a totalidade dos dossiês. E ou inventamos o futuro ou gerimos o sistema, o que hoje os políticos fazem é gerirem o sistema com pequenas adaptações, e aqueles que surgem desafiando o sistema, que são os populistas, a grande verdade é que, na maioria dos casos, são antissistema, não apresentam uma alternativa ao sistema, não inventam, não pensam no futuro. Traçam uma visão negativa do existente, mas quando se pergunta qual é a alternativa percebemos claramente que a alternativa deles não é, muitas das vezes, exequível. Os génios, e Churchill era um génio, não são produtos de uma escola. São autocriações que surgem de uma forma espontânea e que não é previsível, mas quando chegam aos lugares de destaque como, por exemplo, Churchill chegou a primeiro-ministro e foi aí que exponenciou as suas potencialidades. Há uma imagem que explico sempre aos alunos que tem a ver com isto: Churchill tinha muitas potencialidades. E Churchill, conseguiu, quando teve ocasião para isso, potencializar essas virtualidades, transformando-as em capacidades. E uma das suas capacidades foi inventar o futuro no que diz respeito à dimensão social.