A continuidade de Mário Centeno à frente do Banco de Portugal (BdP) tem os dias contados, apesar de Joaquim Miranda Sarmento considerar que ainda é «extemporâneo» falar sobre o seu assunto. O mandato termina em julho, mas os «incidentes», como dizem os politólogos ouvidos pelo Nascer do SOL, mostram uma divergência de posições talvez inconciliável.
«A nomeação é da responsabilidade do Governo, mas tem de ter em conta dois elementos: o que decorre da credibilidade profissional e o que decorre do elemento político», lembra ao nosso jornal José Filipe Pinto. «Em relação ao primeiro, Mário Centeno tem um perfil que se revelou perfeitamente adequado para a função, o problema está no elemento político», sublinha. E recorda que o governador durante muito tempo foi visto como um possível candidato à Presidência da República pelo partido da oposição. «Mesmo não sendo militante do PS, inseria-se na sua área política. Mas é certo que Mário Centeno tem tido um comportamento abusivo em relação à imagem do Governo».
E dá como exemplo a ‘guerra’ em torno do vencimento de Hélder Rosalino – que foi nomeado secretário-geral do Governo, mas acabou por desistir depois de o governador do Banco de Portugal ter afirmado que o órgão regulador não iria assumir o ordenado de cerca de 16 mil euros. «Tomou uma posição claramente política, em que o Governo sentiu que tinha sido exposto na praça pública e em que a figura de Mário Centeno surge aos olhos da opinião pública como alguém que se permite chamar a atenção ao Executivo». Soma-se a isso o caso do défice, uma vez que o banco central foi a única entidade a referir que Portugal poderia voltar a ter contas negativas. «O governador do Banco de Portugal tem de ser o garante da estabilidade financeira do país e tem de ter uma grande coordenação a nível discursivo, com os órgãos do poder, designadamente com o Governo. Não podemos de maneira nenhuma passar uma mensagem que possa soar alarmista sobre a questão do défice, porque sabemos que isso tem impacto não apenas na opinião pública, mas também no investimento, tanto interno como sobretudo externo», refere José Filipe Pinto.
Uma opinião partilhada por Paula Espírito Santo. «Parece-me que não há condições para ser reconduzido porque se está a tornar uma pessoa polémica, apesar de ser indiretamente. Não é o causador dos assuntos de forma pessoal e direta, no entanto há circunstâncias que acabam por criar algum celeuma pública e particularmente na questão do défice, em que vamos esperar que não tenha razão. Não tem sido uma personagem com quem o Governo tenha tido facilidade na comunicação e isso provoca algum desgaste e não reúne as condições de confiança política», considera.
Uma questão que, segundo a especialista em ciência política, ganha maiores contornos, tendo em conta que estamos perante um Governo de cor política diferente, daí considerar que «é natural que o Governo que não se identifique com algumas das suas tomadas de posição públicas em relação a temas tão importante, nomeadamente no que diz respeito ao regresso do défice para este ano».
Os seus antecessores
José Filipe Pinto diz ainda que Mário Centeno recebeu «uma situação melhor» do que aquela que recebeu o seu antecessor. «Temos de perceber que Centeno teve um ponto de partida mais estável do que o seu antecessor e o seu mandato acontece numa conjuntura já de recuperação económica e, por isso mesmo, esse cenário favorecia a atitude de avaliação de Mário Centeno. Mas se sob o ponto de vista da competência profissional não se assacaram práticas negativas, nem se pode pôr em causa a sua competência para o cargo, o mesmo não acontece quando na sua intervenção existência há indícios que apontam para a existência de alguém que tem alguma agenda política ou que está ao serviço de uma agenda política», diz ao Nascer do SOL.
Já Paula Espírito Santo, apesar de reconhecer que é normal que haja sempre um nível de exigência por parte do BdP relativamente aos Executivos, sejam eles do mesmo partido ou não, afirma que até aqui tem havido uma maior capacidade em convergir e um maior diálogo político, de «forma a que não saísse para a praça pública posições diferentes ou bastantes diferentes em relação ao que tem acontecido agora» . E face a este cenário, admite que «talvez o Governo não se identifique com este deslizamento e com estas tomadas de posição por parte do Banco de Portugal».
É certo que o papel dos anteriores governadores esteve longe de ser pacífico, apesar da relação mais tranquila com o Governo. Seja como for, tanto Vítor Constâncio como Carlos Costa marcaram 20 anos de supervisão bancária.
Vítor Constâncio que assumiu o cargo entre 2000 e 2010 – tinha anteriormente assumido a pasta entre 1985-86 – foi alvo de fortes críticas, já que o seu mandato ficou marcado pela falência do Banco Privado Português e do Banco Português de Negócios (BPN), que acabaria por ser nacionalizado em 2008. Mais tarde, a operação de financiamento de 350 milhões de euros concedida pela Caixa Geral de Depósitos a José Berardo para a compra de ações do Banco Comercial Português (BCP) voltou a causar polémica. A auditoria da EY apontou para a existência de 80 operações de crédito na Caixa, em que o parecer do risco era condicionado e em que o órgão decisor não apresentou justificação para não ter seguido a recomendação.
O ex-governador chegou a referir que o supervisor não era «uma espécie de polícia moral acerca das decisões tomadas pelos gestores da banca» e que apenas podia exigir capital, níveis, solvabilidade. «Os supervisores não têm competência para discutir esse tipo de operações com os gestores dos bancos. Não nos compete fazer julgamentos sobre as políticas comerciais», salientou na altura.
Ainda mais polémico foi o mandato de Carlos Costa, que assumiu a liderança entre 2010 e 2020, período marcado pela queda do Banco Espírito Santo (BES) e não só. Nomeado pelo Governo de José Sócrates, já no mandato de Passos Coelho – que subiu ao poder em junho de 2011 – foi um dos principais interlocutores com a troika sobre o setor financeiro, mas também sobre o programa de ajustamento da economia. Foi acusado de supervisão ineficaz, de não ter afastado Ricardo Salgado atempadamente, de ter feito pequenos acionistas acreditar no banco apesar de já saber dos problemas. Surgem então as manifestações de lesados do BES/GES, os processos em tribunal e as muitas críticas de diversos quadrantes parlamentares. Acabou por ser reconduzido, em julho de 2015, tendo o então secretário-geral do PS, António Costa, considerado ser «um gravíssimo erro do senhor governador achar que basta ter a confiança da ministra das Finanças e do primeiro-ministro para merecer a confiança dos portugueses».
O que esperar
José Filipe Pinto recorda que Mário Centeno foi apresentado, muitas vezes, como o Ronaldo das Finanças, isto é, «alguém que conseguia resultados muito positivos e alguém que era admirado entre os pares a nível europeu», daí acreditar que o seu futuro poderá passar por um cargo nas instituições europeias. «Internamente houve do ponto de vista político claramente dois incidentes que denegriram a sua imagem junto do poder político e, mais do que isso, apontaram para um discurso descoordenado com o poder político. Ora, mesmo o Banco de Portugal gozando de independência tem de haver uma solidariedade, uma sincronia com o Governo, o que significa que o Banco de Portugal não pode assumir uma postura política e muito menos política a apontar para partidária», diz.
Já Paula Espírito Santo lembra que este é um cargo apetecível e que o Governo não tem qualquer obrigação de manter o governador, principalmente quando «há uma divergência de posições, sem falar da clara divergência ideológica».