O Presidente da República atacou o Tribunal de Contas (TdC) com argumentos desprovidos de sentido. Marcelo Rebelo de Sousa assumiu-se esta semana como caixa de ressonância do Governo, quanto à necessidade de uma reforma legislativa para separar as funções de decisão política e de controlo jurisdicional da legalidade da despesa pública, competência do TdC. Foi particularmente infeliz, porque escolheu um caso em que a má-prática e a vergonha se concentraram do lado do poder político, com uma lei feita à medida.
O Governo prepara-se para limitar os poderes do TdC por via legislativa. «Um tribunal serve para verificar a legalidade dos atos praticados, não para se substituir ao decisor político ou administrativo. O que nós queremos é que funcione de acordo com a sua função jurisdicional», expôs Gonçalo Matias, ministro Adjunto e para a reforma do Estado na Assembleia da República.
Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou uma visita às obras de reconversão do antigo Matadouro do Porto para exprimir a mesma preocupação. «O Tribunal de Contas entendeu que, ao verificar se era cumprida a lei, podia ir mais longe e pôr em questão porque é que era para a cultura, porque é que era aqui, porque não era noutro sítio – o que é uma competência dos autarcas», criticou o Presidente da República. Em causa, a recusa inicial, por parte do TdC, de conceder visto prévio a esse projeto, orçado em 40 milhões de euros, através do qual a Mota-Engil se propõe transformar o antigo matadouro, em Campanhã, num centro empresarial e cultural, com 11 edifícios de escritórios, restaurantes, galerias de arte e museus.
Se fosse verdadeiro, o exemplo dado pelo chefe de Estado seria particularmente demonstrativo da exorbitância e até de um abuso de poder por parte dos juízes. Na realidade, foi o Governo a violar a separação de poderes, com o beneplácito do Presidente.
Como em qualquer boa intriga, um facto verdadeiro ajuda a credibilizar uma narrativa falsa. Em 2019, o TdC recusou dar visto prévio ao projeto de reconversão do matadouro, proposto pela Câmara Municipal do Porto, liderada por Rui Moreira. O acórdão, no entanto, fundamentou o chumbo com argumentos estritamente jurídicos: a violação do regime jurídico das parcerias público-privadas (RJPPP), designadamente pela falta de estudos prévios quanto à viabilidade e vantagem económica do projeto, impostos por essa lei da Assembleia da República.
Um ano depois, o mesmo TdC viria a dar luz verde ao matadouro, por acórdão do plenário de juízes da 1.ª Secção, cuja competência é, precisamente, conceder ou recusar visto a contratos do Estado central, administração pública e autarquias. Os juízes, mais uma vez, fundamentaram a decisão com argumentos jurídicos. A lei tinha, entretanto, mudado.
Depois do chumbo inicial dos juízes, o governo de António Costa publicou uma alteração ao RGPPP, através do decreto-lei 170/2019, devidamente promulgado pelo Presidente da República. Esse diploma libertava os municípios da aplicação do RJPPP. Primeira curiosidade: tinha efeitos retroativos. Segunda, mais escandalosa: foi revogado três meses depois de o TdC, em sede de recurso, dar luz verde à reconversão do matadouro de Campanhã.
Na prática, esse decreto foi uma lei à medida, criticada na literatura científica, designadamente pelo professor de Direito Rui Medeiros. «A questão atinge o cerne do Estado de Direito, que tem no seu núcleo a separação de poderes», comentou o juiz Pestana de Vasconcelos, num livro sobre o poder de fiscalização prévia do TdC. Este autor, que despacha processos na 1.ª Secção do TdC, criticou a possibilidade de o poder político usar a via legislativa para reverter sanções financeiras ou mesmo penais, com efeitos retroativos.