«Em Belém, Marcelo continuava preocupado com a possibilidade de ter de passar o testemunho a um antigo militar», pode ler-se na página 237 da biografia de Gouveia e Melo, escrita pelo jornalista Vítor Matos, publicada em setembro deste ano. Mas é um livro que chegou às livrarias esta semana, de outra jornalista — a diretora-adjunta do Diário de Notícias, Valentina Marcelino – Gouveia e Melo , As Razões e um «ficar danado», entre as páginas 123 e 125, que arrastaram os media com a força de uma levada, sendo que, no epicentro, surge a Agência Lusa e uma linha ténue que separa a interpretação da manipulação dos factos.
Numa entrevista ao Nascer do SOL, em abril de 2024, a sete meses do fim do mandato, Gouveia e Melo afirmava que estava «focado 110% na Marinha». Mas, quando foi confrontado pelo jornalista com a participação de militares na política, disse: «Um militar, desde que não se encontre no ativo, tem tanto direito a concorrer a um cargo político como um pescador, um serralheiro, um engenheiro, um advogado, um jurista ou um médico». E concluiu: «Em democracia, quem escolhe é o povo». Numa leitura dos factos, parece-nos que a ideia já pairava na cabeça do almirante Gouveia e Melo, ainda de camuflado.
E a epifania veio de Marcelo, o ainda Presidente, que, em dezembro de 2024, cogitou reconduzir o almirante por mais dois anos como chefe do Estado-Maior da Armada — um mandato que só terminaria em janeiro de 2026.
Antes disso, em setembro de 2024, o chefe de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas encontrara-se, em Tróia, durante o exercício REPMUS, com o almirante Gouveia e Melo. Marcelo foi questionado sobre a possibilidade de um militar se candidatar ao cargo que ocupa. O Presidente chutou para canto: «Isso é que já ultrapassa a minha capacidade, no quadro do exercício REPMUS».
Mas não ultrapassou a capacidade de os jornalistas o interpretarem, e o Expresso titulou: «Almirante quer mais dois submarinos para ficar na Armada e desistir de Belém» (no site) e «Almirante aceita ficar e desistir de Belém se Governo comprar mais dois submarinos» (no jornal).
Aí, o almirante ficou «mesmo danado». Abreviando a história: o ‘mesmo danado’ almirante despiu a farda de quatro estrelas, deixou a Marinha e candidatou-se à Presidência da República.
No livro publicado esta semana, uma longa entrevista, lê-se, na página 124: «A conclusão a que cheguei foi que as pessoas queriam que eu ficasse pelos piores motivos (…). Foi nesse período que saiu um artigo no Expresso a dizer que eu estava a chantagear o Governo…». A pergunta imediata da jornalista foi: «Foi esse o momento exato da sua decisão de se candidatar? Um artigo de jornal?». E Gouveia e Melo respondeu: «Foi esse artigo que me fez definir o rumo. Porque, quando o li, fiquei mesmo danado. Não sei quem é que inspirou o título com a palavra ‘chantagear’, mas não gostei».
Almirante acusa Lusa
Entretanto, uma notícia da Lusa deu um twist – uma reviravolta em tudo isto – com um artigo em que se lê que Gouveia e Melo se candidatou porque Marcelo Rebelo de Sousa quis travar essa possibilidade. Dito de outro modo, a candidatura do almirante ao Palácio de Belém teria origem num braço de ferro com o atual inquilino, recuperando a ideia original do Expresso.
Ora, o ‘mesmo danado’ contaminou um comunicado da campanha presidencial de Gouveia e Melo, num ataque direto à Lusa, onde se escreve que a notícia é «falsa e enferma de uma falta de rigor inaceitável». «O almirante Henrique Gouveia e Melo não se refere, em momento algum, durante a entrevista concedida à jornalista Valentina Marcelino, realizada para o livro As Razões, como tendo sido o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ou qualquer declaração sua, a motivação para se candidatar à Presidência da República». A página oficial da candidatura presidencial publicou as três páginas da polémica.
Valentina Marcelino, em entrevista ao NOW, diz que os artigos do Expresso são baseados em fontes, não em declarações públicas do PR, ao mesmo tempo que defende que Gouveia e Melo também não «culpa» Marcelo pela sua decisão, mas sustenta, ainda assim, a «interpretação legítima» da Lusa.
O staff da campanha presidencial de Gouveia e Melo acusa a Lusa de falta de rigor jornalístico e de manipulação. A agência responde, defendendo a sua versão.
Uma fonte ligada à Lusa disse ao Nascer do SOL que a posição da agência é «inatacável», que a Lusa é e continuará a ser o «último bastião do jornalismo com credibilidade», e que tudo isto não passa de uma «radicalização» por parte da assessoria de imprensa de Gouveia e Melo e do próprio candidato.
Nesta troca de acusações, há ainda o título de uma entrevista à Lusa em que o almirante fala de Ramalho Eanes e de Mário Soares como suas referências em Belém, mas no título atribuído pelos editores da agência só aparece Soares «como modelo de presidente em que se revê» – título que foi replicado nos media, redes sociais e afins.
E rapidamente se associou a ideia de que a Lusa possa ter manipulado declarações de Gouveia e Melo ao mais recente caso que quase implodiu a credibilidade do jornalismo, que vive tempos de enorme fragilidade. Falamos, naturalmente, da BBC e da demissão, no passado domingo, do diretor-geral Tim Davie e da diretora de Informação, Deborah Turness.
O episódio suscitou forte pressão política no Reino Unido e, a partir de Washington, Donald Trump ameaçou a BBC com um processo judicial – o que não deixa de ser profundamente irónico, vindo do maior produtor político de inverdades. Seja como for, este episódio abriu um momento de incerteza para a BBC… e para o jornalismo global.