Costa e Seguro, Guterres e Sampaio: Déjà vu socialista

Em 1989, três anos depois de ter dado o seu apoio a Jorge Sampaio, Guterres apresentou-lhe um ultimato: ou este se demitia ou teria luta num congresso antecipado. A história das lideranças socialistas escreve-se com surpresas, confrontos e traições. António José Seguro e António Costa só seguem a tradição. 

[Este artigo foi publicado originalmente na revista TABU do SOL a 8 de Fevereiro de 2013, aquando do primeiro avanço, posteriormente abortado, de Costa contra Seguro. Recuperamos agora este trabalho, que ganha nova actualidade.]

“Sempre prensei que mais tarde ou mais cedo [ele] seria candidato à liderança do PS. Isto estava escrito nos astros. Discordo totalmente é que seja agora”. A afirmação é de Jorge Sampaio, em 1992, ao Expresso, mas podia ser hoje a de António José Seguro, secretário-geral do PS, a falar de António Costa, o presidente da Câmara de Lisboa que [em 2013] entrou numa reunião da comissão política disposto a desafiá-lo em eleições directa e que na ‘hora H’ recuou para negociar a unidade interna.

O volte-face, já na madrugada do último dia 29 [de Janeiro], não foi suficiente para pôr fim ao suspense. Até à comissão nacional que reúne este domingo, reina uma espécie de ultimato sobre a liderança: ou esta capaz de unir o partido, sob o signo de um texto programático comum, ou Costa volta a reunir as suas tropas para a clarificação da liderança. Jorge Sampaio, líder dos socialistas de 1989 a 91, sabe bem o que é ser surpreendido por uma maioria silenciosa que ganhou vida própria nos bastidores do Largo do Rato. Melhor dizendo, sabe o que é ser encostado à parede. Teve António Guterres a gritar pela sua demissão, “chocado” na sequência da derrota nas legislativas de Outubro de 1991, quando o PSD de Cavaco Silva teve a sua segunda maioria absoluta.

Sampaio não cedeu. Dizia-se legitimado pela maioria dos militantes que o haviam eleito em 1989. Logo na noite eleitoral da derrota socialista, recusou fatalismos e decidiu antes encurtar o tempo de reacção da oposição interna. A estratégia era fixar uma agenda para os seis meses que se seguiam, convocando uma comissão nacional para discutir ideias que fossem capazes de projectar o PS no futuro, no quadro de uma hegemonia laranja que varria o país.

O papel que António Costa reclama hoje para si – o de agitar as águas onde um líder com muitos apoiantes e poucos defensores se tenta manter à tona – foi desempenhado na perfeição por Guterres. Primeiro veio a declaração de guerra. Depois, a entrada em combate: no final de Outubro de 1992 Guterres foi à RTP garantir que ia candidatar-se o lugar de Sampaio.

As últimas semanas de Sampaio

Como em qualquer disputa interna, havia barões que pelo meio tentavam encontrar uma solução de consenso entre as suas alas. Àquele tempo eram Almeida Santos e Vítor Constâncio. Sem efeito. Sampaio insistia primeiro em debater ideias numa Convenção Nacional e só depois discutir os nomes melhor colocados para as executar; Guterres teimava em ser secretário-geral.

No fim, é mesmo Guterres quem ousa uma proposta radical: desafia Sampaio a assumir a presidência do partido, com poderes reforçados e segundo o modelo de organização do SPD alemão, enquanto ele seria o novo secretário-geral. Teria a missão de renovar a forma de fazer oposição para “falar claro ao país”. “Não faremos de Sampaio uma vítima”, afirmava ao Independente um colaborador de Guterres, o ex-líder da bancada parlamentar socialista que procurava desconstruir a estratégia do (também) presidente da Câmara de Lisboa, apostado em ver reavaliado o voto de confiança dos militantes do PS na sua liderança.

A proposta não foi bem vista com bons olhos por Sampaio. Estava em marcha uma verdadeira contagem de espingardas que culminou com a vitória de Guterres na eleição dos delegados ao congresso antecipado de 23 de Fevereiro de 1992. Guterres conseguiu 62% dos delegados, Sampaio ficou-se pelos 37%. No dia 23, em pleno congresso, confirmaram-se as previsões: Guterres foi eleito.

Para trás, ficava a solidariedade de Guterres quando Sampaio decidiu avançar para o lugar de Vítor Constâncio, em 1989. A cumplicidade de dois homens que se juntaram no sótão da casa de Guterres, em Algés, para desenhar uma estratégia capaz de pôr fim ao mandato de Mário Soares, na primeira grande guerra interna dos socialistas.

Em Belém, de olho no PS

Mário Soares, é claro, é figura central de outros conflitos no Largo do Rato. Em 1991, depois de reeleito para um segundo mandato me Belém, teve a sua quota parte de responsabilidade na não reeleição de Sampaio. Havia sido muito crítico do desempenho do líder do maior partido da oposição na última legislatura e no período de campanha eleitoral. “A oposição tem que ser mais activa e dinâmica”, terá alertado Soares, segundo o Expresso.

O Presidente da República considerava Sampaio “um homem morto”, de acordo com o Independente. A família do fundador, porém, desalinhava nas escolhas: João Soares, o filho, colocou-se ao lado do líder, como faz agora com Seguro. “O mandato do dr. Jorge Sampaio já tem uma vitória, as autárquicas, uma derrota, e uma coisa que está entre a vitória e a derrota que são as eleições europeias”. Maria Barroso, a mulher de Soares, mostrava-se sensível à proposta guterrista. António Guterres era um homem profundamente católico.

Apesar de ter auto-suspendido o seu mandato em 1986, ano em que foi eleito Presidente da República, Soares nunca conseguiu descolar do seu papel de pai da família socialista. Que o diga, também, Vítor Constâncio.

“Para mim, o PS passou a ser igual ao PSD”, terá dito Soares ao economista que lhe sucedeu na liderança. Era um xeque-mate. A forma como Constâncio estava a gerir o processo de revisão constitucional de 1987, num diálogo aberto com Cavaco Silva que abiriria portas às privatizações, deixava já o Presidente da República furioso. Não era só pela estratégia negocial do PS, mas também porque Constâncio, alegadamente, não o mantinha a par de cada passo que era dado.

Chagados a 2013, e até agora, Soares ainda não se pronunciou sobre a crise interna do PS. Saberá que a Seguro falta um barómetro essencial para determinar a continuidade, ou não, de um líder à frente do partido: o voto em urna dos portugueses. Se a liderança de Seguro não durar até às legislativas, o homem que tem pela frente o desafio de mostrar alternativa à política da maioria PSD/CDS será o primeiro líder do partido a não conseguir ir às urnas como candidato a primeiro-ministro. Até aqui, apesar das guerras, conflitos, tensões e traições, todos foram. Nenhum – tirando Soares – sobreviveu a uma derrota. 

ricardo.rego@sol.pt 

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