Rómulo de Carvalho / António Gedeão. Um príncipe renascentista atravessa o século XX

Completam-se hoje vinte anos sobre a morte de Rómulo de Carvalho / António Gedeão. Assim, lado a lado, que um sempre caminhou a par do outro, unindo, de modo exemplar, o que a nossa tradição então persistia em separar: a ciência e a literatura, o pensar e o sentir, a vida e o sonho.

Foi um improvável espírito renascentista encarnado no século que atravessou quase inteiramente. O que mais impressiona no autor de «Pedra Filosofal» (um daqueles poemas que escreveu «a assobiar» e daqueles de que menos gostava, como confessa nas suas Memórias) é justamente essa espécie de energia intelectual renascentista que lhe permitiu dedicar ao ensino e à pedagogia boa fatia da sua vida e, ao mesmo tempo, desenvolver uma intensa actividade de investigação e divulgação científicas, um trabalho ímpar no campo da histórias das ideias, e conjuga-los ainda com a criação literária. Dela resultou uma obra de extensão, diversidade e qualidade francamente invulgares.

Do seu inconformismo – social e cultural – aliado a uma notável capacidade de trabalho a que não é alheio também um certo espírito de missão, nasceram manuais escolares, inovadores no grafismo e na forma de abordar matérias tão complexas como a Física e a Química, livros de divulgação científica para miúdos e graúdos por várias vezes reeditados, poemas notáveis, novelas, peças de teatro, estudos e ensaios, artigos e comunicações.

«E pronto. Eis-me nascido. Cheio de sede e fome.// António é o meu nome.» («Poema De Me Chamar António»). Assim vem ao mundo, numa «alvorada escorreita», sem mistério nem transcendências e num manejo de pinças aparentemente desinfectadas de emoção lírica, António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho. Não por eleição do destino – e aqui se afasta do neo-realismo – mas por imperativo próprio, «sem pai nem mãe, sem preparação de amor, / sem beijos nem carícias de ninguém, / só, só e só por minha livre vontade». Rómulo de Carvalho, igualmente aberto aos registos do humor subtil, nasce em Lisboa, a 24 de Novembro (Dia Nacional da Cultura Científica e Tecnológica, criado no ano da sua morte, em 1997), 50 anos antes do poeta, por muito tempo oculto nas gavetas da timidez.

A 10 de Agosto de 1917 o Notícias d’Évora anunciava um novo Camões. Contava 11 anos e, decidido a levar por diante o ambicioso projecto de continuar Os Lusíadas, avançava, neste periódico, com as sete primeiras estrofes do canto XI. O menino cresceu, fez-se homem, professor de Ciências Físico-Químicas pela Universidade do Porto (1931), exímio historiador e divulgador de temas científicos, metodólogo no Liceu Pedro Nunes, colaborando em revistas diversas de cariz científico e pedagógico, em que avultam a Gazeta de Física, Liceus de Portugal ou Palestra. Investigador infatigável, rasgando horizontes com o seu trabalho intelectual, autor de trabalhos centrados na ciência em Portugal no século XVIII, interessou-se também pela Actividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos séculos XVIII e XIX (1981) e deu-nos a História do Ensino em Portugal (1986).  

Quando, em 1956, publica o primeiro livro de poesia, Movimento Perpétuo, já António Gedeão, com uma larga experiência da vida e dos homens, tinha uma dicção poética segura – e própria. À colectânea de estreia, que surpreendia pela inventiva, pelo dinamismo da expressão sem artifício, pela capacidade de fazer coexistir o extraordinário e o trivial, segue-se, com pouco intervalo, Teatro do Mundo (1958), a continuar a linha do lirismo reflexivo. Sempre interessado na marcha da História e no trabalho humano, anónimo e quotidiano (como testemunham o célebre poema «Calçada de Carriche» ou «Poema de Pedra Lioz»), com Máquina de Fogo (1961), voltará ao «Poema épico», mas desta vez para o virar do avesso, numa leitura desencantada e ironicamente ácida da realidade, frequentemente apresentada como um jogo de sinais contrários, detectável também na incursão feita, em 1973, no campo da ficção narrativa com A Poltrona e Outras Novelas.

Rómulo de Carvalho / António Gedeão. Lado a lado, que um sempre caminhou a par do outro, unindo, de modo exemplar, o que a nossa tradição institucional, social e escolar persistia em separar: a ciência e a poesia, o conhecimento e a arte, o pensar e o sentir, a vida e o sonho. O célebre poema «Pedra Filosofal», musicado e cantado por Manuel Freire, é um exemplo emblemático, a que poderíamos somar «Lágrima de preta».

Se o homem da ciência procurava, pela reflexão e pela difusão do conhecimento essencial, erguer-se contra fadas e milagres, superstições e o obscurantismo promovido por um nacionalismo redutor, publicando, entre tantos outros trabalhos, os livrinhos da colecção Ciência Para Gente Nova ou Física para o Povo, o poeta, «homem de carne e osso», desmistificava a poesia: «ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA». Fê-la descer das alturas enubladas do transcendente e arrastar, no seu torvelinho, tecnicismos científicos, roldanas, rodas dentadas, motores, utensilagem da química e até os artefactos correntes do homem moderno, como o fecho éclair.

As sucessivas edições de Poesias Completas (1964, prefaciado por Jorge de Sena e incluindo, a partir da 2ªed., Linhas de Força, de 1967), dão conta da popularidade que, até ao início dos anos 90, alcançou a sua poesia, ajudada, é certo, pela nossa música popular e de intervenção. Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990) continuariam o idiolecto lírico de António Gedeão.

Ficam-nos também as Memórias que para instrução e divertimento de seus tetranetos escreveu certa pobre criatura que, entre milhares de milhões de outras, vagueou por este mundo na última centúria do segundo milénio da era de Nosso Senhor Jesus Cristo (Gulbenkian, 2010). Destas Memórias, o que mais visivelmente emerge, além de um conhecimento múltiplo, é a espontaneidade de um finíssimo humor em permanente estado de alerta.