António Botto. «O Desembaraçado Relato do Amor»

Desejaria «Morrer jovem / E de rosas coroado!», mas acabou por falecer aos 62 anos no Rio de Janeiro, a 16 de Março de 1959.

Os elementos que compõem o retrato do escritor António Botto enquanto jovem encontram-se dispersos pela sua obra poética, realçados com requintes de esteta: «olhos cor de bronze», «boca de cravo», «ombros florentinos», «carne de seda», «corpo longo e leve», «mãos de cambraia», prontas a apertar com dandismo o nó da gravata.

Desejaria «Morrer jovem/ E de rosas coroado!», mas acabou por falecer aos 62 anos, no Rio de Janeiro, miseravelmente só, depois de ter sido atropelado duas semanas antes. «O que se viu foi o poeta morrer colhido por um automóvel, sem sequer a dramaticidade do fim instantâneo: lentamente, no hospital, depois de treze dias de inconsciência», escrevia Carlos Drummond de Andrade na sua coluna diária. 

Chegado o dia da cerimónia fúnebre, seis anos depois de os seus restos mortais terem sido trasladados para Lisboa e sete depois da sua morte (por questões burocráticas de contornos nunca devidamente esclarecidos), António Tomás Botto era apenas um número – nº1952, a revelar que a posteridade é, por vezes, amnésica.

O Autor de Canções fez-se célebre no seu tempo pela sua poesia de autenticidade e coragem, pela sua proximidade de Fernando Pessoa (que lhe elogiou os méritos) e depois do grupo da Presença, e pelo escândalo que rodeou a sua vida de boémia e de homossexualidade assumida.

Nome de referência da primeira metade do século XX da poesia portuguesa, é autor de uma obra vasta e multifacetada que abrange, para além da poesia (não confinada à temática homoerótica), contos, teatro, cartas, cantares, breves apontamentos do quotidiano a que hoje chamaríamos posts e que se acham reunidos em Ele Que Diga Se Eu Minto (1945).

António Botto fez do amor e da paixão pelo corpo – sem maquilhagem nem culpa, superior às inibições e às convenções – o seu motivo mais ardente e do «ai» uma das suas divisas: «Anda um ai na minha vida,/ como lágrima que passa,/ Que passa – mas que não finda». Com razão: uma aura maldita envolveu homem e poeta, fundindo-os num mito vivo, nem sempre fácil de alimentar. A novela dramática António (1933), história decadente de «um amor que não ousa dizer o seu nome», é a encenação da sua própria vida.

Nasceu em 1897 no seio de uma família proletária, em Concavada (Abrantes), mas é o Bairro de Alfama que ainda lhe vê correr a infância e cujo ambiente típico projectará em alguns dos seus poemas ou em Alfama (1933), uma peça de acentos líricos estreada no Teatro de S. Carlos. Ajudante de livraria durante a juventude, entrará depois na função pública como escriturário de segunda no Governo Civil de Lisboa. Quando, em 1924, parte para Angola como funcionário público, a colocar na Repartição Política e Civil do Zaire, publicara já o seu livro mais célebre, envolvido em escândalo: Canções do Sul (1920), apreendido em 1923, depois de uma batalha de papel em que se envolveram Fernando Pessoa, Raul Leal e Mário Saa.

Canções é uma obra que se foi expandindo, entre 1921 e 1941, sucessivamente acrescentada de novos títulos, até atingir, na sua forma definitiva, os quinze livros que a compõem: 1. Adolescente, 2. Curiosidades Estéticas, 3. Piquenas Esculturas, 4. Olimpíadas, 5. Dandismo6. Ciúme7. Baionetas da Morte, 8. Piquenas Canções de Cabaret, 9. Intervalo, 10. Aves de Um Parque Real, 11. Poema de Cinza, 12. Tristes Cantigas de Amor , 13. A Vida Que Te Dei14. Sonetos, 15. Toda a Vida.

De regresso a Lisboa, logo em 1925, António Botto prossegue a sua vida no funcionalismo público, até finais de 1942, data em que toma contacto com um anúncio publicado no Diário do Governo, a demiti-lo do seu emprego de escriturário por, entre outras alíneas, «fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição, prejudicando assim não só o rendimento dos serviços mas a sua própria disciplina interna.»

Em 1947, incompatibilizado com uma Lisboa fatidicamente provinciana, parte, já doente, para o Brasil com Carminda Silva Rodrigues, a sua companheira de há muitos anos («O casamento – escreveu – convém a todo homem belo e decadente») e ali arrastará uma existência de inadaptação num contínuo processo de degradação física e íntima a que não é alheio o livro Fátima, publicado no Brasil em 1955, numa crise de fé. Doente, descido ao ínfimo degrau da miséria, afastado dos meios literários portugueses e dos bairros da noite lisboeta, sente-se desenraizado e solicita por várias vezes o repatriamento. Em vão.

Boa parte da obra que lhe vem compor o caos, intimamente associada ao Modernismo português, foi reeditada pela Quasi sob a direcção diligente do escritor e crítico literário Eduardo Pitta.