António Costa desautorizou Ministério da Cultura pela segunda vez

O programa de apoio às artes desenhado por Miguel Honrado deixou o secretário de Estado sob fogo e obrigou António Costa a vir serenar os ânimos. Aconteceu esta semana. Mas já tinha acontecido em fevereiro de 2017.

António Costa desautorizou Ministério da Cultura pela segunda vez

A polémica em torno dos concursos do apoio às artes é, na verdade, a sequela de um filme a que poucos prestaram atenção. Esta foi, afinal, a segunda vez que António Costa teve de ir pôr ordem na casa da cultura. A primeira aconteceu já em fevereiro do ano passado, quando a apresentação da proposta para a prometida revisão à Lei do Cinema deixou o setor em polvorosa. Com o argumento de que se tinha esgotado qualquer possibilidade de diálogo com Miguel Honrado, o setor voltou-se para o primeiro-ministro. Depois de uma reunião em que Costa recebeu o setor, o secretário de Estado deixou cair a sua proposta.

Na altura, estava em causa a composição dos júris dos concursos para o apoio ao cinema e ao audiovisual e a redação do artigo 14 do decreto-lei causou mal-estar pela função de nomeação de júris com que mantinha a SECA (Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual), órgão consultivo do Conselho Nacional de Cultura, no qual têm assento, entre outras entidades como produtores e realizadores, as operadoras de telecomunicações e televisivas.

A exigência da alteração ao decreto-lei pela Plataforma do Cinema, que reúne representantes de produtores, realizadores, programadores e técnicos, vinha justamente do facto de ser SECA a nomear os júris para os concursos, pelo receio de que a ingerência de privados no processo pudesse enviesar os resultados.

A contestação subiu de tom ao ponto de ter dividido o próprio setor e o secretário de Estado da Cultura ficou debaixo de fogo. A representação portuguesa no Festival de Cinema de Berlim desse ano recusou-se mesmo a ser recebida por Miguel Honrando num jantar na embaixada portuguesa.

Diploma há um mês em Belém

Em Berlim foi lançado um protesto internaiconal, com uma carta aberta dirigida a António Costa subscrita por centenas de personalidades, incluindo diretores e programadores dos maiores festivais de cinema internacionais, na qual a Plataforma do Cinema dizia ter esgotado as possibilidades de diálogo com Honrado. Costa acabaria por intervir e, depois de uma reunião com os agentes do setor, o Governo deixou cair a proposta de revisão ao decreto. 

Um ano depois seria apresentada uma nova proposta, em que o polémico artigo 14 era finalmente alterado para um sistema de escolha de júris que restituía parte substancial dos poderes ao Instituto do Cinema e do Audioviusal, num modelo mais próximo ao que vinha sendo reivindicado. O novo decreto-lei está há um mês em Belém para promulgação e o Governo já falhou a promessa de abrir os concursos do ICA até ao final de março.

A desilusão com Honrado

A polémica em torno dos concursos de apoio às artes é, por isso, quase um segundo take de uma cena na qual Miguel Honrado já tinha ficado com o papel de vilão e António Costa com o de herói que entra no último minuto para encontrar uma solução.

E se a história da contestação no cinema foi um filme que poucos viram, o protesto contra o novo modelo do concurso de apoio às artes não só teve uma visibilidade inédita como uniu um setor que tradicionalmente é difícil de mobilizar. «Por um lado, temos agora uma nova geração de artistas que tem uma perspetiva muito mais profissional do que faz e maior capacidade de mobilização. Por outro, temos um concurso que deixou de fora companhias consagradas, com capacidade para mobilizar o descontentamento», explica fonte do setor, que acrescenta outro dado para compreender a escalada em torno deste tema. «Com uma maioria de esquerda no Parlamento e com Miguel Honrado, um homem do setor bem conhecido e admirado nos meios teatrais, o que aconteceu foi uma grande desilusão».

O coro de críticas foi tão forte que o Governo se viu obrigado a anunciar três reforços sucessivos de verbas para o concurso de apoio às artes. O último dos quais através de uma carta aberta escrita pelo próprio primeiro-ministro.
Ao todo, foram anunciados mais 4,2 milhões de euros anuais. O que, para um concurso que contava inicialmente com cerca de 15 milhões, representa um aumento muito substancial. «É uma coisa inédita», comentava uma fonte do meio artístico. Mas nem esses milhões travaram os protestos que ontem aconteceram um pouco por todo o país – um dos quais, em Coimbra, contou mesmo com a presença da coordenadora do BE, Catarina Martins.

A explicação é simples: os agentes culturais não querem perder a onda. E vão manter a pressão para conseguir aumentar as verbas. O PCP e o PEV renovam o pedido de uma dotação anual de 25 milhões – um valor que daria para financiar todas as estruturas. O aumento do orçamento para o Ministério da Cultura é uma velha aspiração de comunistas e bloquistas.

Esquerda aproveita onda para pôr pressão no OE

No início da legislatura, BE e PCP deixaram de reclamar – como até aí – 1% do PIB para a Cultura. Agora, o objetivo – mais realista, mas ainda muito longe de ser alcançado – é o de ter 1% do Orçamento do Estado na Cultura. Neste momento, o Ministério vive apenas com 0,2%.

«Temos de aproveitar este momento para conseguir chegar ao 1%», afirma uma fonte do BE, que diz que esse será um dos objetivos das negociações do Orçamento para 2019.

Isto, apesar de à esquerda haver uma satisfação clara com o reforço de 4,2 milhões de euros que já se conseguiu. «O dinheiro é tão pouco que tudo o que venha é bom». É, de resto, por isso que BE, PCP e PEV – embora contra o novo modelo de concurso e contestando o que dizem ser o «subfinanciamento das artes» – preferem atacar PSD e CDS.
«Não podem vir agora armar-se em grandes defensores de quem atingiram sistematicamente», dizia ontem o bloquista Jorge Campos no debate de urgência requerido pelo CDS, no qual lembrou que «a mediana de apoio às artes durante o anterior governo esteve nos 11, 5 milhões», quando o concurso lançado este ano se iniciou com 15 milhões e «já vamos em 19 milhões», depois dos reforços anunciados.

Resta saber se haverá margem no Governo para dar mais dinheiro à Cultura. O ministro Luís Filipe Castro Mendes deixou sem resposta direta o desafio de aumentar o Orçamento para o 1%. «Convergimos com os parceiros da esquerda», limitou-se a dizer o ministro diplomata, sem quantificar até onde poderá ir essa convergência.

Joana Manuel, do CENA – STE, uma das três entidades que convocaram os protestos de ontem, reage às declarações do ministro lembrando que «é preciso fazer, não basta dizer – e isto é o mínimo que o Governo pode fazer perante o que está a acontecer». Para a atriz, que vê nos reforços de emergência anunciados nos últimos dias «migalhas usadas como manobra de diversão para desmobilizar os protestos», o dia de ontem foi «apenas um passo, não um fim» na luta de um setor «há dez anos em situação de catástrofe».

Cláudia Sobral e Margarida Davim