António Costa quis criar um cordão sanitário em torno do caso Sócrates. A importância de o fazer tornou-se ainda mais evidente depois das revelações sobre os pagamentos que Manuel Pinho terá recebido do GES enquanto era ministro no Governo de José Sócrates, e do qual também faziam parte ele próprio e os seus atuais ministros Augusto Santos Silva e Vieira da Silva.
«Enquanto as suspeitas eram apenas sobre Sócrates era uma coisa, o caso mudou de figura quando se soube de Manuel Pinho. As pessoas poderiam começar a perguntar-se se haveria outros a receber dinheiro», explica uma fonte socialista, defendendo que isso tornou imperativo uma demarcação clara em relação ao ex-líder do PS.
Carlos César deu o mote, assumindo «vergonha» pelas suspeitas, e João Galamba e Santos Silva reforçaram o incómodo, antes de o próprio Costa defender que a confirmarem-se as acusações isso será «uma desonra para a democracia».
Antecipar o que possa vir aí nos próximos dias foi uma das principais motivações para esta sucessão de declarações públicas de afastamento em relação ao ex-secretário-geral do partido. «Antes a duas semanas do Congresso do que a dois dias», comentava ontem um destacado socialista. O mesmo raciocínio se aplica à aproximação das datas das eleições europeias e legislativas de 2019.
Foi Costa quem levou Pinho ao encontro de Sócrates
António Costa, que várias vezes vê a oposição usar os debates quinzenais para lhe recordar que esteve no Governo de Sócrates, quis quebrar essa ligação. Mas o próprio José Sócrates acaba, de forma indireta, por recordar que até a sua relação com Manuel Pinho passou por Costa.
Sócrates não o escreve de forma direta no artigo de opinião publicado ontem no JN, em que anuncia a sua desvinculação do PS, mas, para quem se recorda do momento histórico evocado pelo antigo governante, fica claro o elo de ligação a Costa nas entrelinhas.
«A escolha que fiz de Manuel Pinho como porta-voz do PS para a área da economia, e mais tarde para o Governo, aconteceu naturalmente na decorrência da colaboração que este há muito prestava, na condição de independente, ao PS, como conselheiro económico do então líder Ferro Rodrigues. Foi aí, nessa condição de membro do chamado grupo económico da Lapa [por reunir regularmente no Hotel da Lapa], que o conheci e que desenvolvemos um trabalho comum que viria a culminar no convite que lhe fiz», descreve Sócrates.
Aquilo que fica por dizer de forma explícita é que, além de ter sido o atual primeiro-ministro a propor Pinho para o grupo da Lapa, Sócrates foi pela primeira vez a uma dessas reuniões «levado por António Costa, que era na altura líder parlamentar da bancada socialista» – como nota uma fonte socrática.
Apostado em não ficar nesta fotografia, Costa deu luz verde para as declarações públicas de afastamento em relação a Sócrates.
Foi a gota de água para o antigo secretário-geral, que resolveu anunciar ontem que deixará de ser militante do PS. «Na verdade, durante estes quatro anos não ouvi por parte da Direção do PS uma palavra de condenação destes abusos, mas sou agora forçado a ouvir o que não posso deixar de interpretar como uma espécie de condenação sem julgamento», escreveu Sócrates no JN, anunciando ter entregue o cartão de militante.
A decisão provocou uma onda de «alívio» entre os socialistas que temiam ver os casos de Sócrates e Pinho mancharem o PS em vésperas de eleições. Agora, muitos desses ainda temem que o tema domine o Congresso e impeça o debate ideológico que parecia estar a anunciar-se com a troca de artigos de opinião entre o ‘moderado’ Santos Silva e o mais destacado representante da ala esquerda Pedro Nuno Santos.
No entanto, se há quem sinta alívio e que assegure que esta será uma forma de o PS se distanciar também das acusações a Pinho, há outros que não gostaram de ver Costa deixar cair um camarada, ainda por cima o ex-líder que conquistou a única maioria absoluta do partido.
Renato Sampaio, socrático desde sempre, foi um dos notáveis que assumiu estar «triste» com a forma como a direção do partido voltou as costas a Sócrates. Mas foram muitos os militantes de base que usaram a página de Facebook de José Sócrates para chamar «traidores» aos que, como César, Costa e João Galamba, assumiram o incómodo com a Operação Marquês.
Apesar de Sócrates ter entregue ontem o cartão de militante no Largo do Rato, o seu espetro não deixará de assombrar o partido. A comissão de inquérito às rendas do setor energético vai manter aceso o assunto das suspeitas de corrupção no seu Governo.
E o PS tudo fará para não ficar como único partido envolvido em suspeitas de corrupção. César deu o mote para essa linha de defesa: «Estes casos que agora suscitam atenção mediática são atos que se têm disseminado ao longo dos anos por personalidades e situações que não envolvem o PS. Temos de ter consciência e não apagar da memória que em inúmeras situações, vários governos e vários partidos, têm existido pessoas cujo comportamento é censurável, algumas delas já cumpriram penas de prisão, outros são arguidos, outros têm graves problemas que ainda não foram esclarecidos. E são pessoas de todos os partidos, e em particular daqueles que têm desempenhado funções de governo e têm exercido na Administração Central responsabilidades».
César quis, de resto, corrigir o tiro inicial, deixando claro que o PS continua a salvaguardar que as suspeitas não foram confirmadas e que o partido não renega a sua história. «O engenheiro José Sócrates deixou marca muito positiva como primeiro-ministro numa altura em que o país demonstrou resultados assinaláveis», afirmou ontem, numa declaração aos jornalistas sobre a desfiliação de Sócrates, sem direito a perguntas.
De resto, César negou o óbvio ao recusar a ideia de que o partido não mudou de atitude perante este caso: «Da parte do PS não há nenhuma mudança na avaliação de uma questão fundamental que é a separação entre aquilo que é da Justiça e aquilo que é da política».
Mas Sócrates não entende assim e contra-argumenta: «A injustiça que agora a direção do PS comete comigo, juntando-se à direita política na tentativa de criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político».