Manuel Gusmão. Um encontro à luz da razão que não desarma

Com um livro de poemas assumidamente comunistas, Gusmão confronta o pudor da poesia contemporânea em tomar posições políticas, preferindo posar para a eternidade

À cabeça das mais bicudas afirmações que se têm feito sobre poesia está aquela de George Steiner lembrando que pode ler-se Rilke – e “bem lido” – depois de se despacharem mais uns quantos judeus para a câmara de gás. Para se ser justo com esta frase há que ter carta de marear para as nuances, para não encalhar o bote da interpretação no primeiro recife. É sempre necessário saber dirimir absolutos, razões contrastantes, para que se transfundam, em vez de nos alegrarmos com a sua colisão. Na célebre conferência de Henri Michaux “A verdadeira poesia faz-se contra a poesia”, o poeta belga vinca como, “em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de uma gota de água que cai na terra e comunicar esse estremecimento do que expor o melhor programa de entreajuda social”. E quanto à eficácia, também adianta que “essa gota de água provocará no leitor mais espiritualidade do que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade do que todas as estrofes humanitárias”. Em que ficamos então?

Michaux defende que o ato de sublevação na poesia acontece por meio da transfiguração, com o poeta a traficar “a sua humanidade por vias próprias, que frequentemente são inumanidade (aparente e momentânea, esta)”. E remata: “Mesmo antissocial ou associal, ele pode ser social.” Mas e se a ameaça que se coloca a um tempo é a do rapto do sentido vibrante das palavras? E se a crise afetou de tal modo a linguagem que esta se mostra incapaz de produzir sentido, de resistir a lógicas de condicionamento social e à alienação?

Que acontece se as palavras forem vulneráveis ao ponto de mais não serem do que ademanes, a expressão frívola de distantes ideais que se esgrimem de cocktail na mão? Se há coisa que Michaux deixa claro é que a poesia deve investir–se das maiores suspeitas em relação àquilo com que a sua época se enfeita, os valores que exibe orgulhosamente e mais celebra. Eis um discurso cujo maior perigo a que está sujeito é o afastar de si todo o risco, escrever para deleite do seu público.

De tempos a tempos, só resta à poesia um profundo desdém por tudo aquilo que se toma por poesia e que assim se “comporta”. Pois esses versos mais não são do que um ronrom, um trânsito de subtilezas inexpressivas ao gosto daqueles para quem o paraíso nesta terra é um olhar sobre o mundo a partir da varanda, distante o suficiente para ser seguro, mas não tão longe que deixe de se gozar a vista sobre o inferno. Uma perspetiva consoladora sobre as atribulações de quem nem reúne o fôlego para reimaginar outra forma de vida.

No seu livro mais recente – “A Foz em Delta” (edições Avante) –, Manuel Gusmão reúne um conjunto de intervenções e reflexões no mais diverso recorte formal. Entre o testemunho, a memória e pontuais inflexões e sublinhados dentro da própria obra ensaística, este livro demonstra como só há cicatrizes, mas nunca fronteiras, na sua produção. Se se trata de um livro poético antes de tudo, os poemas que nele comparecem são ousadamente políticos. E é precisamente quando suspendem o alto teor lírico a que Gusmão habituou os seus leitores que mais desafiam o embargo que impende de forma tácita sobre qualquer poema que não vire para dentro a sua “costura política”.

É um passo corajoso de um poeta que percebe o dilema com o qual a poesia hoje se confronta. Se nenhum poeta que se preze abdica do golpe de invenção que perturba o curso mais abandalhado da linguagem, a interrupção da sua função corrente, marcada pela pestilência própria dos dias que vivemos, e se Gusmão não deixa de pontoar este livro com as “inflorescências roxas [que] esmigalham a luz/ neste jardim, [e que] são a representação de pássaros autorizada por Camilo Pessanha”, há uma urgência que suplanta a ambição que o poeta tem de se mover através de passos obscuros.

Não é de estranhar que o primeiro crítico a pronunciar-se sobre esta obra seja o atual presidente da entidade reguladora para a poesia, exemplo de todos esses agentes que se passeiam de ar bonançoso por um assobio, girando o cassetete do bom senso. Este senhor que nos vimos até proibidos de nomear falou dos mais combativos “poemas comunistas” de Gusmão notando que, “por uma vez, alguns parecerão ilegíveis a um não comunista, na mesma medida em que um ateu pode considerar intratável uma meditação metafísica”.

Mesmo com muitos cuidados, ficou alguma carne agarrada ao osso deste ofício. E se refere que o desafio não consistia em “transcender uma ideologia específica, mas em não ultrapassar a fronteira muitíssimo instável entre o poético e o não poético”, o que se torna claro é o preconceito que pretende favorecer o discurso poético, falhando em reconhecer como a poesia vive como nenhuma outra expressão da violação dessa linha que não “deve” transpor. E é sobre ela que tantas vezes a poesia consegue um volte-face, mudando o guião, no “confronto entre a lucidez da beleza e/ a luz irónica do desacato”.

Este preconceito hasteado pelo crítico como bandeira inerte de um tempo em que nenhum vento tem força para cuspi-la fora nunca é mais óbvio do que quando assinala um conjunto de “expressões poeticamente inertes” que “não oferecem qualquer resistência” e que até podiam surgir em “artigos de opinião num jornal”. Fica então claro que aquilo que acusa de ser ilegível é, afinal, tudo o que ofende as convicções de um “não comunista”. Ora, a este respeito há uma passagem de um texto de Karl Kraus publicado no “Die Fackel” (“Resposta a Rosa Luxemburgo, de um não sentimental”) que assume extrema preponderância. E se não servir para outra coisa, pelo menos fará o crítico engolir a sua pastilha elástica:

“O que eu quero dizer – e por uma vez falarei com esta ninhada desumanizada de aristocratas e latifundiários e seus sequazes, por uma vez falarei alemão, já que eles alemão não entendem, e muito menos serão capazes de perceber o meu verdadeiro ponto de vista a partir dos meus ‘contra-ditos’ –, o que eu quero dizer é: o comunismo como realidade é apenas o contraponto da sua ideologia ultrajante da vida, mas abençoado por uma origem ideal mais pura, um antídoto problemático em busca de um fim ideal também ele mais puro – que o diabo leve as suas práticas, mas que Deus no-lo conserve como constante ameaça sobre as cabeças dos detentores de bens que, para os manter, enviam outros para as frentes da fome e da honra da pátria, enquanto os consolam dizendo-lhes que ter bens não é o maior bem desta vida. Que Deus o preserve, para que esta canalha sem pinta de vergonha na cara não fique ainda mais desavergonhada, para que a sociedade dos únicos autorizados a ter prazeres, que acham que a humanidade que subjugam tem amor que baste quando apanha a sífilis que eles lhe passaram, possa pelo menos ir para a cama com pesadelos! Para que pelo menos percam a vontade de pregar moral às suas vítimas e o humor que os leva a fazer piadas sobre elas.”

Se há algo de profundamente inquietante neste livro de Manuel Gusmão é a forma como suspende esse estado de graça de que goza a poesia. A sua condição enquanto discurso que paira acima do seu tempo e que, de algum modo, tem muito a ganhar em alhear-se das circunstâncias. Mas sempre que se envolve vertiginosamente no seu tempo, e não o faz por conveniência, é aí que a poesia aponta uma direção, uma via para a insubordinação. Sem esse ânimo, sem a pulsão do desacato, da desobediência, o risco é a poesia poder ser lida – ou sobretudo ser lida – por aqueles que são coniventes com o modelo de opressão que cada época congemina.

Hoje, mais do que nunca, o que não falta por aí são poemas, e alguns são justos nas impressões ao renovar a visão desta “terra tão dilacerantemente bela”. Por outro lado, se também não são poucas as odes desalentadas, ainda é preciso aquela dose de humanidade para não perder de vista o outro, saber ir ao seu encontro numa terra “tão insuportavelmente devastada”. Porque numa coisa parece que continuamos de acordo: no ainda estar em falta por aqui uma grande razão. Desde logo, como notou Cesariny, “faltas tu faltas tu/ falta que te completem/ ou destruam/ não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada/ – não, de nenhuma maneira resultante!”

Na resposta a um inquérito que vinha indagar se a poesia pode ser uma forma de resistência, esta foi a resposta de Gusmão: “Pode sê-lo. Sempre por definição, ou seja, em determinados contextos, sociais, políticos, culturais.” Recuperando esta reflexão e desenvolvendo-a, o poeta desafia-nos a pensar se o que nos falta não será ler as tais palavras que podiam constar de artigos de opinião num jornal com a atenção que dedicamos à poesia. Um livro que arranca com um verso em que logo deparamos com a expressão “luta de classes” parece ter como intuito fazer despenhar os anjinhos. Apontar aos céus e disparar contra os que vinham pelos arrepios entre as penas, acordes arrancados a uma harpa. Esses estatelam-se nestas páginas e, caindo, são devolvidos à carne, à dor de que comungam os homens que sofrem as mazelas deste tempo. É natural, assim, que aqueles que gozam de privilégio se sintam excluídos, tomando estes poemas como “ilegíveis”. Não é para eles. E esta é a resistência admirável desta poesia que rejeita ser apreciada por caudilhos.

Ao procurar uma língua – “essa infindável tarefa que muitos dos mais fortes se darão e retomarão de outros” –, Manuel Gusmão afasta uns para dirigir-se aos seus, procurando transformar “o nome próprio/ em nome comum”. (“Quem somos nós?/ Nós somos ‘a esperança que não fica à espera’”.) E reivindica uma linhagem que vai de William Blake a Jean-Arthur Rimbaud, de Hölderlin a Mallarmé, de Rilke (também) a Paul Celan. Poetas que se encontram e prosseguem “cartografias ou marcos de resistência que nos permitem mapear a rede das opressões, a fisionomia por onde a barbárie se acende, tentar perceber a diferença dos tempos”.

Na sua complexa orgânica, este livro relaciona a dimensão da luta política com os aspetos mais íntimos e partilha lembranças, “fábulas de intimidade”, dedicatórias tão tocantes, “pequenos jardins interiores com laranjeiras ou limoeiros (o oiro amarelo e o verde)”. O longo e comovedor poema em que se despede do pai é dos mais altos momentos desta obra poética. E ali como em outras passagens encontramos versos que nos transmitem um tão forte tumulto que não nos deixam a menor dúvida sobre o alcance lírico desta obra: “Nenhum, nenhuma amante poderá agora olhar-lhes/ a pedra respirante do sono ardendo raso e devagar.”

O grande triunfo aqui está no resgate da amplitude da poesia, da sua incerteza e inconformismo, da sua operação subversiva. Isto passa pela “Identificação de Um Território” onde possam encontrar-se aqueles que não se deixam açaimar (“Nós que aos cinco sentidos acrescentamos os outros”). Quanto aos que ficam de fora, resta perguntar se a poesia deveria contentar-se em ser tautologia do desconsolo. Um embalo melodioso para todos esses a quem a crença na revolução parece risível, um anacronismo. Este livro lembra-nos, desde logo, como a um cínico tudo soa anacrónico. Para quem assiste da varanda, até o seu desespero é o último. É o fim.