Efeitos da greve na saúde podem ir além do cancelamento das cirurgias

A segunda greve cirúrgica vai a meio, mas os efeitos da paralisação podem ir além do cancelamento de cirurgias. Médicos garantem que este momento pode afetar as relações futuras, já os enfermeiros não veem motivo para alarme.

Efeitos da greve na saúde podem ir além do cancelamento das cirurgias

Agreve cirúrgica dos enfermeiros vai muito além da paralisação dos blocos operatórios. Dentro dos dez hospitais em que os enfermeiros estão apenas a cumprir serviços mínimos, a relação entre entre estes profissionais e os médicos pode também estar a ser afetada. Os médicos confirmam a tensão, ainda que os enfermeiros desvalorizem. 

Lúcia Leite, presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros, disse na semana passada que «vive melhor o enfermeiro sem o médico do que o contrário». Outra comparação foi entre o que ganham os enfermeiros em início de carreira e o vencimento dos médicos quando acabam a especialidade. «Nunca vi uma greve, e têm sido abundantes nestes últimos meses, em que o alvo fosse sistematicamente uma outra classe profissional. Como se a desgraça de uns pudesse ser a felicidade de outros», escreveu nas redes sociais Carlos Cortes, dirigente da Ordem dos Médicos. «Não se pode estar a estragar agora o que foi construído ao longo de décadas. Virar profissionais contra outros profissionais – que trabalham diariamente em equipa em prol dos doentes – é profundamente errado e inadmissível». Também o bastonário chegou a admitir que as declarações dos representantes dos enfermeiros estavam a contribuir para criar «um clima de conflitualidade» entre os profissionais.

A tensão sente-se nos hospitais? Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), admite que as declarações públicas dos dirigentes dos enfermeiros e as reações dos médicos podem contribuir para alguma fricção nos hospitais, situação que começou a notar-se em 2017 com a greve dos enfermeiros obstetras. Ainda assim, acredita que a tensão foi maior na primeira greve cirúrgica do que na atual. «Na primeira greve houve momentos de tensão, até com piquetes de greve à porta dos blocos operatórios quase que a decidir quem era operado ou não», diz Alexandre Lourenço. 

Nesta segunda paralisação, «os serviços mínimos vieram clarificar um pouco mais que doentes têm de ser operados», diz o gestor hospitalar.  

O clima de stresse vivido por quem trabalha num bloco operatório é constante e não apenas característico dos momentos de greve. Mas, juntar a isso uma paralisação pode «interferir no trabalho, uma vez que [as equipas de cirurgia] vão ter de continuar a estar juntas», explica o presidente da APAH. 

A tensão varia de acordo com os serviços e com as equipas, admitiu ao SOL um médico do Centro Hospitalar de S. João, mas tem estado a sentir-se. «Terá efeitos a médio e a longo prazo». Para as equipas funcionarem de forma adequada, «com eficiência e realmente centradas nos interesses dos utentes, necessitam de muito diálogo, disponibilidade dos vários elementos e de confiança entre si, o que tem sido colocado em causa», acrescenta o mesmo clínico. 

Aos olhos dos enfermeiros a questão não é tão linear. Jorge Correia, do Sindicato Democrático dos Enfermeiros (Sindepor) – sindicato que convocou a greve cirúrgica – garante que não existe clima de tensão dentro dos hospitais entre colegas enfermeiros e médicos. «É natural que neste momento haja tensões dentro da equipa multidisciplinar, mas não podemos associar isso à classe médica, não há nenhum tipo de guerra», adianta o enfermeiro. 

Jorge Correia garante que existe «até uma compreensão» por parte dos médicos e que «tem havido mais tensão com as administrações hospitalares do que com os médicos». Ainda assim, já vieram a público cenários distintos. No início do mês, a Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros denunciou um ambiente de tensão no Hospital de S. Sebastião, em Santa Maria da Feira, com conflitos entre médicos e enfermeiros na marcação de cirurgias. «Lidam mal com o constrangimento que têm em mãos neste momento», disse na altura fonte sindical à Lusa.

Intimação aceite no Supremo Administrativo

A semana que agora terminou ficou marcada não só pelos efeitos da greve dos enfermeiros como também pela decisão do Supremo Tribunal Administrativo em relação à intimação interposta pelo Sindepor em resposta à requisição civil do Governo. Perante a greve cirúrgica, o Governo avançou com uma requisição civil para quatro dos hospitais onde decorre a greve cirúrgica, alegando o incumprimento dos serviços mínimos. Depois disso, o Sindepor optou então por entregar um pedido de intimação ao tribunal que foi aprovado esta quinta-feira. Neste momento, a tutela tem até meio da próxima semana para apresentar a sua defesa. Haverá então dois cenários possíveis: o Supremo Tribunal Administrativo pode requerer a realização de diligências de produção de prova ou optar por dar a sua sentença sem passar por essa fase. 

ASAE já tem autorização para ter dados do crowdfunding

Esta sexta-feira veio também a público que a ASAE já tem autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) para ter acesso aos dados sobre os apoiantes da campanha de crowdfunding, que permitiu aos enfermeiros angariarem 874 mil euros para financiar as duas greves cirúrgicas. Depois de ter sido noticiado que a campanha seria investigada, a organização apelou a todas as pessoas que fizeram donativos de forma anónima para alterarem esse estatuto. No final da campanha na plataforma PPL, havia 2300 apoiantes anónimos entre os 10842 que contribuíram para o fundo solidário. Ontem ao final do dia o número tinha baixado para 1367.