Última entrevista de Freitas do Amaral: “Gostava que o PS tivesse maioria absoluta”

Freitas do Amaral, que lançou o terceiro livro de memórias, admite que ‘poderia ter dado mais ao país’. Apoiou Costa, há quatro anos, mas admite que não simpatiza com a ‘geringonça’.

Última entrevista de Freitas do Amaral: “Gostava que o PS tivesse maioria absoluta”

{relacionados}

Escreve, neste terceiro livro de memórias, que valeram a pena os anos que dedicou à política, mas também que a partir de certa altura se sentiu ostracizado. Sente que poderia ter dado mais ao país?

Sim. Sem dúvida. Quando saí do Governo, em 2006, tinha 66 anos, estava bem de saúde, independentemente daquele problema na coluna. Tive que ser operado, mas fiquei bem nos dez anos seguintes. Só depois é que as coisas pioraram e entrei numa fase complicada. Durante esses dez anos voltei a dar aulas, a dar pareceres jurídicos, a escrever livros de Direito e aproveitei para completar o terceiro volume das memórias [Mais 35 anos de Democracia – Um percurso singular]. Fiz tudo isso sem dificuldade e é evidente que poderia ter dado mais ao país.

Escreve que não recebeu nenhum convite para ocupar um cargo público depois de ter participado no Governo socialista. Porque acha que isso aconteceu?

Não é que não me tenham sido feitos convites. Foram-me feitos convites e alguns deles muito honrosos, quer para lugares no estrangeiro, quer para lugares em Portugal. Mas o que veio a acontecer foi que, posteriormente, esses convites vieram a ser retirados com razões algo estapafúrdias. Houve claramente má vontade.

A direita nunca lhe perdoou ter entrado num Governo do PS…

Relativamente à direita portuguesa foi isso que aconteceu. A direita pensou: ‘Foste-te embora, passaste-te para o outro lado, agora arranja-te com eles’. Mas a maior parte dos convites que recebi e de que fui desconvidado foram feitos por Governos de esquerda e aí já não consigo compreender. Também não quero dar importância demais a esses episódios, isso já lá vai. A minha vida política tal como a minha vida académica, estão encerradas. Até lhe posso dar uma novidade. Recebi hoje [quarta-feira] a confirmação telefónica de que a Universidade Nova de Lisboa decidiu por unanimidade atribuir-me o título de professor emérito. É um dos primeiros títulos que a universidade atribui e isso naturalmente é uma alegria para quem toda a vida foi antes de mais nada um professor universitário.

A vida académica foi mais compensadora?

Acabou por ser mais compensadora, mas nem quero pensar sobre se teria sido preferível ter dedicado a minha vida toda só à Academia. A verdade é que aquilo que fiz na vida política também foi importante. Creio que nos primeiros oito, dez anos, foi importante para o país. O facto de ter feito o CDS e ter conseguido um conjunto de quadros notáveis para a direção do partido e para as autarquias… Chegámos a ter 38 presidências de câmara, não é propriamente um número pequeno. Numa altura em que o PSD se dizia de esquerda e dizia querer caminhar para o socialismo, foi muito importante aparecer um partido – que desejei centrista, mas que acabou por ser de direita – a dizer que não tínhamos de caminhar para o socialismo, que não queríamos as nacionalizações nem a reforma agrária. O que queríamos era que houvesse em Portugal uma democracia com economia social de mercado. Fomos os primeiros a dizê-lo e durante alguns anos os únicos.

A dizer aquilo que mais tarde quase toda a gente defendeu com exceção do PCP.

Exatamente. Foi importante que tivesse aparecido um partido com estas características, porque se isso não tem acontecido logo naquela altura o regime ficava desequilibrado. Era uma democracia com três grandes partidos de esquerda e sem nenhum partido de centro-direita. O que iria, provavelmente, refletir-se no apoio da direita a soluções extrademocráticas.

De que maneira é que as coisas poderiam ter sido diferentes?

Estou a pensar nas tentativas do general Spínola, quer no 28 de setembro, quer no 11 de março, e estou a pensar nas tentativas para tomar conta do CDS, expulsando-me, que foram protagonizadas pelo general Kaúlza de Arriaga, em 1976, e em parte pelo general Galvão de Melo, em 1977. Isso que se exprimiu dessa maneira e que pude contribuir para derrotar, se calhar, teria dado mais força às intenções do general Spínola.

Que papel teve o CDS nessa altura?

Modestamente o contributo que o meu CDS deu foi muito importante. Tudo o resto que vim a fazer, mesmo a candidatura presidencial, eram coisas que nem estavam no meu projeto inicial.

Teve pena de não ter sido Presidente da República depois de uma campanha que muita gente ainda recorda como memorável?

É verdade, é verdade… Claro que tive pena. Mentiria se dissesse que não tive pena. Preparei-me para ser Presidente da República, tinha as minhas ideias e penso que teria sido um bom Presidente, mas em democracia os votos é que mandam. Perdi por 1,2% dos votos, e entre os candidatos que perderam tive o melhor resultado de sempre, até hoje. Foi uma demonstração de civismo e de alguma coragem ter sido candidato contra Mário Soares que é, no fundo, o símbolo do regime e, portanto, à sua maneira também foi um serviço prestado do qual não beneficiei pessoalmente.

A direita acabou por beneficiar da sua sua candidatura?

O professor Cavaco Silva veio a beneficiar desse resultado. Quando um ano depois teve uma maioria absoluta nas eleições legislativas, em 1987, isso deveu-se muito ao facto de a direita portuguesa ter percebido um ano antes que estava quase lá e que com mais um pequeno esforço chegaria lá. E chegou. Mas foi muito importante a direita ter ganho consciência, em 1986, que já representava 49% do eleitorado. Se tivesse tido 40%, ou menos, isso não contribuiria em nada para animar a direita e dar uma maioria absoluta ao professor Cavaco. Olhe, fiz o melhor que pude, gostei, não estou arrependido…

Depois das grandes expectativas que se criaram à volta da sua candidatura, geriu bem essa derrota?

Tive uns dias difíceis como é natural. Sofri o meu bocado, mas tive um grande apoio da minha família e dos meus amigos. Ultrapassei isso rapidamente, porque voltei a dar aulas. E, pela primeira vez, estudei, dei aulas e publiquei livros sobre uma matéria nova que muito me apaixonou: a história das ideias políticas. Foi aí que começou. Foi talvez a forma que encontrei de sublimar aquela derrota política.

PSD e CDS tiveram um resultado muito fraco nas eleições europeias. Partilha a ideia de que existe uma crise na direita?

A direita portuguesa está demasiado fraca. Não esqueço que em 1976, quando a maioria ainda era claramente de esquerda, apesar de tudo, Sá Carneiro com 24% e eu com 16% somávamos 40%. O que nos permitiu, quando fizemos a AD, passar para mais de 45%. Hoje, o PSD e o CDS somados, de acordo com o resultado das eleições europeias, nem sequer atingem 30%. Estão ambos muito fracos. Isso preocupa-me porque é bom para a democracia que a diferença entre a direita e a esquerda não seja mito grande. Só se tiverem relativamente próximas é que as eleições são verdadeiramente uma escolha.

Já é previsível que o PS vai vencer nas próximas eleições…

É evidente que não há verdadeira escolha. Vai haver uma confirmação daquilo que existe. Isso não é a melhor solução para uma democracia pluralista. Não vou agora pôr-me aqui a dar lições sobre como é que o PSD e o CDS podem crescer, mas estou convencido de que têm de mudar o discurso político. Não podem continuar a querer ser melhores que o atual Governo em matéria económica e financeira, porque este Governo tem sido bom e tem beneficiado de uma boa conjuntura económica europeia e mundial. A batalha devia ser travada noutras áreas. Na Saúde, Educação, na Segurança Social, na Habitação ou na qualidade do funcionamento dos serviços públicos. São assuntos em que o PSD e o CDS estão à vontade, mas insistem em discutir a política económica do Governo que era aquilo que deviam deixar em paz.

Porquê?

Não podem apontar grandes erros. A política económica e financeira que este Governo tem seguido não é muito diferente daquela que o Governo PSD/CDS teria seguido. Têm de mudar o discurso e encontrar novas causas que digam alguma coisa às pessoas. Enquanto isso não acontecer as votações são fáceis de prever.

Apelou ao voto no PS em 2015. Nessa altura estávamos longe de imaginar que haveria acordo entre António Costa e os partidos de esquerda. Estes quatro anos corresponderam ao que esperava de um Governo socialista?

Vejo estes quatro anos com algumas coisas muito positivas designadamente os resultados económicos e financeiros e alguns melhoramentos sociais que foram feitos. Em termos de história política portuguesa virou-se uma página. Foi a primeira vez que, desde 1975, o PS aceitou um certo tipo de aliança com o PCP e o Bloco de Esquerda. Nunca tinha aceitado e, pelos vistos do ponto de vista partidário, fez bem em aceitar.

Simpatiza com a ‘geringonça’?

É uma solução que não tem a minha simpatia. Acharia esta solução completamente normal se, nomeadamente o PCP, deixasse de ser contra a participação de Portugal na União Europeia e no euro e contra a participação de Portugal na NATO. Enquanto o PCP tiver esses compromissos no seu programa, e não creio que proximamente possam ser alterados, são um partido que taticamente decidiu aproximar-se do PS, mas que apresenta propostas muito diferentes em matérias essenciais. Se pudesse emitir um voto o que mais gostava é que nas próximas eleições o PS tivesse maioria absoluta. Mas duvido muito que o consiga porque ao concentrar-se muito nas questões financeiras e económicas cortou verbas essenciais para a Saúde, Educação ou Segurança Social e os resultados estão a ver-se todos os dias.

Esta política levou à degradação dos serviços públicos…

Sim. E, provavelmente, o PS vai pagar um preço por isso. Não lhe retira a vitória, mas possivelmente irá retirar-lhe a maioria absoluta.

No seu livro refere também a tragédia de Camarate. A esta distância como avalia a atuação da Justiça?

Dedico um capítulo a essa matéria e não tenho a menor dúvida de que houve ali um atentado político. A atuação da Justiça só pode ter uma classificação: péssima. Não é por ter chegado a resultados diferentes daqueles a que chego. É porque atuou sempre com a intenção de desvalorizar as provas e depoimentos que apontavam para um atentado e só quis valorizar as provas que apontavam para um acidente casual. Isso é que acho verdadeiramente lamentável. É lamentável que organismos que têm o dever de imparcialidade tenham adotado, desde o primeiro minuto, uma posição de parcialidade a favor de uma determinada tese e acirradamente contra uma outra tese.

Como é visível essa tendência?

Vou dar um exemplo: na parte em que o despacho final de arquivamento analisa as mais de vinte testemunhas que foram ouvidas sobre se a avioneta começou a arder no ar ou se só começou a arder no momento em que caiu no chão (se tivesse começado a arder no ar havia uma forte probabilidade de ter havido o rebentamento de uma bomba) cerca de metade dizia que tinha visto claramente o avião a incendiar-se no ar e a outra parte dizia que tinha visto a avioneta incendiar-se quando bateu no chão. Até aqui tudo normal, mas é difícil aceitar que todas as testemunhas que dizem que viram a avioneta a incendiar-se quando bateu no chão tenham sido consideradas idóneas e que todas as testemunhas, sem exceção, que dizem que viram a avioneta a incendiar-se no ar são descartadas e nenhuma delas é considerada como fazendo um depoimento válido.

Eram testemunhas credíveis?

Entre  as testemunhas que viram a avioneta incendiar-se no ar havia, nem mais nem menos, do que um controlador aéreo que estava no aeroporto de Lisboa e o chefe da segurança de Sá Carneiro que era um agente qualificado da PSP. Como é que o testemunho destas duas pessoas é descartado pelo Ministério Público dizendo que não tem credibilidade? Isto prova que havia de facto uma intenção premeditada no sentido de não permitir que se pudesse chegar à ideia de uma atentado e, portanto, não permitir que o problema pudesse vir a ser julgado em tribunal.

Houve receio das autoridades em investigar a possibilidade de estarmos perante um crime?

Penso que isso aconteceu por uma razão, que sendo má, é compreensível. Naquelas primeiras semanas e meses as autoridades oficiais tiveram receio de que se Camarate tivesse sido um atentado político que isso pudesse provocar uma grande convulsão política. E, portanto, tentaram desvalorizar os indícios que apontavam para um atentado e andaram à procura dos indícios que apontavam para um acidente casual. Até posso perceber, embora critique, que isso tenha acontecido nos primeiros tempos, mas não compreendo que, ao fim de cinco ou dez anos, as mesmas entidades não tenham sido capazes de virar a agulha e assumir que existiam provas cabais de que foi um atentado. Era aquilo que se esperava de entidades que, por lei e pela própria Constituição, têm o dever de ser imparciais. Mas não. Ficaram agarradas à defesa da primeira tese que apresentaram e nunca quiseram emendar a mão.

 

Entrevista originalmente publicada na edição impressa do SOL a 6 de julho de 2019