Mortes disparam com onda de calor

No dia 14 morreram 396 pessoas no país, mais 120 do a média dos últimos dez anos. DGS admite que onda de calor, que dura há 10 dias, está a ter impacto na mortalidade. Desde o início de julho houve 919 mortes acima do esperado. Maiores ondas de calor nas últimas décadas foram ligadas a…

As mortes diárias estão a aumentar no país desde o final de junho e dispararam nos últimos dias. Em plena onda de calor, o efeito das elevadas temperaturas e noites tropicais na descompensação de doenças é uma das explicações mais imediatas. Esta semana registou-se um pico de mortalidade no dia 14 de julho: morreram 396 pessoas no país, mais 120 óbitos do que na média dos últimos dez anos. Tem havido vários dias com mais de 300 óbitos, o que nesta altura do ano é acima do esperado e não é explicado pela letalidade associada à covid-19.

A informação consta no sistema nacional de Vigilância da Mortalidade (eVM), onde são reportadas em tempo real declarações de óbito, mas não discrimina as causas de morte por doença – uma análise que é feita à posteriori pelo INE e DGS. A plataforma permite, no entanto, perceber que o aumento da mortalidade tem acontecido sobretudo na população mais idosa, acima dos 85 anos. Em média, durante o mês de julho, são esperadas cerca de 100 mortes neste grupo etário, número que tem sido ultrapassado na maioria dos dias.

A Direção Geral da Saúde reforçou os alertas e admitiu esta semana ao SOL que a onda de calor que dura há dez dias terá impacto na mortalidade, como aconteceu noutros anos, confirmando que «a análise dos dados preliminares aponta para um incremento do número de óbitos por todas as causas, em relação à média do quinquénio, no período homólogo». Na conferência de imprensa desta sexta-feira, a diretora-geral da Saúde adiantou que desde o início de julho e até ao dia 16 foi já calculado um excesso de 919 mortes em relação à média dos últimos cinco anos, «quase todos relacionados com dias de intenso calor». No final de maio a DGS já tinha associado uma primeira onda de calor – por definição um período de seis dias consecutivos em que a temperatura está 5º C acima da média – a 510 mortes acima do esperado naquela altura do ano.

Um mês depois, o impacto do calor este ano ameaça ter os piores registos dos últimos anos, mais um problema em cima da crise da covid-19. Em 2013, uma onda de calor também em junho e julho, que variou entre os sete e os nove dias dependendo da zona do país, foi associada um excesso de 1684 mortes. Antes tinham sido registadas três ondas de calor com impacto significativo na mortalidade: em 1981, uma onda de calor foi associada a um excesso de 1900 mortes. Em 91, dez anos depois, um fenómeno idêntico foi associado a um aumento de mil mortes. Em agosto de 2003, a onda de calor que assolou toda Europa – e foi um momento de viragem na consciencialização dos perigos do calor extremo na saúde – foi a mais letal de que há registo nos últimos anos com um excesso de 35 mil mortes na UE e 1953 mortes no país.

A diretora-geral da Saúde sublinhou ontem que nos períodos de calor, a maioria das complicações letais decorreram da descompensação de doenças crónicas, pedindo cuidados sobretudo nos mais velhos. Além da mortalidade, o calor tem impacto na morbilidade, não havendo muita informação do calor na saúde da população em Portugal.

Na onda de calor de 2013, a última estudada no país pela DGS e INSA, apurou-se um aumento dos episódios de urgência e idas aos centros de saúde, mas não foi publicada uma análise fina sobre as causas de internamento e mortalidade naquele período. O relatório refere no entanto que os efeitos de uma onda de calor «começam a fazer-se sentir dois ou três dias após o seu início e persistem até cerca de 7-10 dias após a normalização da temperatura», o que na altura foi avaliado com a procura de urgências e cuidados primários, que este ano têm tido uma quebra na atividade por causa da pandemia e não é possível perceber ainda que efeito teve e terá na população. A par da suspensão de parte da atividade, retomada já em muitas unidades mas que não está ainda no ritmo habitual, o receio do vírus tem sido apontado como um dos fatores que estará a levar algumas pessoas a adiar a procura de cuidados médicos, nomeadamente cuidados urgentes, que não nunca foram interrompidos.

Hospitais recebem idosos desidratados

O Hospital de Santa Maria confirmou para já ao SOL um aumento de idosos com quadros de desidratação, uma das situações documentadas com o aumento das temperaturas. Nos últimos dias houve também uma ligeira subida das idas às urgências neste hospital e no país no geral: na segunda-feira voltaram a passar os 14 mil atendimentos diários, o que já não acontecia desde março. Como as urgências têm estado a recuperar gradualmente a afluência, que reduziu para metade durante o estado de emergência, não é possível, no entanto, estabelecer comparações com o ano passado, em que habitualmente havia mais episódios diários nas urgências mesmo nesta altura do ano.

Por outro lado, os hospitais têm indicação para encaminhar doentes não urgentes para os centros de saúde, resposta que não está a funcionar em todo o país à mesma velocidade e onde existem assimetrias, com mais doentes sem médico de família na grande Lisboa do que no Norte. As situações urgentes devem, no entanto, ter resposta no próprio dia. Já o centro de contacto SNS24 adiantou ao SOL que no período de 1 a 14 de julho de 2020 foram atendidas 237 chamadas relativas ao calor, mais do dobro das chamadas recebidas pelo mesmo motivo em 2019.

Se a DGS garante que foram ativados os planos de contingência para o calor, todos os anos, por esta altura, surgem queixas de problemas com climatização em algumas unidades. O Sindicato Independente dos Médicos alertou no início da semana para as condições de trabalho e assistência no centro de saúde de Belmonte, onde a manutenção do sistema de climatização aguardava autorização desde abril, referiu, e só este mês teve desenvolvimentos. «Torra-se em Belmonte…outra vez», rematou o SIM.

Em 2018, um levantamento feito pela Direção Geral da Saúde e pelo Instituto Ricardo Jorge concluiu que a proporção de salas climatizadas nos hospitais e centros de saúde rondava os 80%, sendo a região de saúde com maior proporção de salas climatizadas o Alentejo, com 91,7%, e aquela com a menor proporção de salas climatizadas a Região do Algarve, com 75,3%. No ano passado, o ministério da Saúde indicou que tinha havido uma melhoria, anunciado um investimento de 28 milhões de euros no âmbito da eficiência energética. O SOL pediu um novo ponto de situação à tutela, mas não teve resposta.

Olhar de outra forma para o calor

João Vasconcelos, investigador nesta área no Centro de Estudos Geográficos – IGOT e docente do Politécnico de Leiria, considera ser cedo para avaliar o impacto da atual onda de calor, por os efeitos tenderem a surgir com desfasamento temporal e ser preciso discriminar diferentes causas. Contudo, para o investigador é possível melhorar a prevenção e mitigação dos impactos de fenómenos que tenderão a aumentar com as alterações climáticas e que não devem ser encarados como uma fatalidade. «Sabemos que as ondas de calor vão ser mais frequentes, intensas e prolongadas e que o risco para a saúde existe. Quando nos perguntamos o que fazer, por um lado, podemos preparar as cidades e os territórios para o calor e, por outro, ter medidas de monitorização e intervenção junto da população mais vulnerável».

Na vertente do planeamento das cidades, João Vasconcelos considera que têm sido dados alguns passos inovadores nos últimos anos, a par da sensibilização de alguns municípios para a temática das alterações climáticas, e dá como exemplo um projeto que está a ser desenvolvido na Câmara Municipal de Lisboa sobre ondas de calor, que tem estado a aprofundar o estudo da ‘ilha de calor’ urbana, zonas em que temperatura tende a ser mais intensa do que na periferia, em particular durante a noite. Se historicamente zonas mais antigas como a Baixa e envolventes como a Almirante Reis entravam nesse perímetro, onde a temperatura chega a ser 3º C superior, a equipa tem estado analisar o fenómeno em áreas de construção mais recente como o Parque das Nações, o que se traduz em maior risco de desconforto térmico e mais consumos energéticos. A densidade de construção na antiga Expo estará, por outro lado, a constituir uma barreira à brisa do estuário do Tejo, que arejava a cidade.

Pensar o desenho das cidades do futuro tendo em conta estes elementos é um dos desafios, aponta. No campo da intervenção, João Vasconcelos defende medidas que reforcem a monitorização e intervenção junto da população mais vulnerável, tanto em períodos de calor como de muito frio. O investigador acredita que, neste último aspeto, o combate à covid-19, ao chamar a atenção para a existência de zonas mais vulneráveis, ilustra o caminho que pode também feito na mitigação dos impactos das temperaturas extremas. «Quando invertemos o discurso de pessoas vulneráveis para o reconhecimento de territórios vulneráveis, podemos fazer uma identificação das necessidades mais localizada, criar respostas no terreno, por exemplo com equipas multidisciplinares. Não é um problema que interesse só aos médicos ou só aos geógrafos, precisamos de equipas que intervenham de forma integrada».

O investigador exemplifica que há alguns pontos do país onde forças de segurança que sinalizam idosos em risco e que vivem sozinhos e equipas de saúde fazem trabalho conjunto no verão, mas defende que esse trabalho, hoje na base do voluntariado e proatividade local, pode ser formalizado e disseminado. Em períodos de grande calor, haver pontos de refúgio e locais sombreados e com aspersores de água são outras soluções que podem ser adotadas pelas localidades, assim como um reforçar das mensagens transmitidas a população, este ano mais fechada em casa. «Há uns anos vimos, por exemplo, o alerta de uma câmara do sul do país que dizia quando está muito calor para as pessoas abrirem as janelas. É o contrário, abrir janelas pode ter efeitos nefastos».