“O país não quer uma crise política”

Líder parlamentar do PAN, Inês Sousa Real, admite que o orçamento responde à crise social, mas garante que ‘está tudo em aberto’. Garante que as divergências internas estão ultrapassadas e não exclui entrar para o Governo se o PAN continuar a crescer.

“O país não quer uma crise política”

O PAN pode ser decisivo para viabilizar o Orçamento do Estado para 2021. Existe essa disponibilidade para evitar uma crise política?

Estamos a discutir o Orçamento num contexto absolutamente excecional. A crise que o país atravessa convoca-nos a todos para darmos os nossos contributos para o Orçamento. Há um aspeto que nos parece essencial que se prende com o cumprimento do Orçamento de 2020 e o Orçamento Suplementar. Existe, neste momento, um compromisso do Governo no sentido de calendarizar aquela que é a execução das medidas previstas no Orçamento para 2020, nomeadamente as medidas negociadas com o PAN, para que tenhamos a certeza de que serão cumpridas até ao final do ano

Que medidas são essas?

Posso dar-lhe o exemplo do programa Housing First que visa dar respostas às pessoas em situação de sem-abrigo. É uma medida de extrema importância no contexto da pandemia. As pessoas que estão na rua estão mais vulneráveis e mais expostas ao contágio da covid-19. Depois há medidas que estão relacionadas com a valorização do Serviço Nacional de Saúde. Uma outra questão para voltarmos à mesa das negociações prende-se com o facto de termos um Orçamento, que apesar de não ser aquele que o PAN defende, dá respostas a muitas das preocupações que identificamos durante a crise pandémica, nomeadamente a questão dos apoios sociais. Não é um Orçamento que retoma uma solução de austeridade como já tivemos em anteriores governos que responderam a crises socioeconómicas com uma maior contenção ou uma maior carga fiscal.

Nesse sentido é um Orçamento que poderá ser apoiado pelo PAN…

O PAN está disponível para dialogar. A crise económica e social não justifica tudo. O Governo tem de estar verdadeiramente disponível para negociar e acolher medidas de outras forças políticas e daí estar tudo em cima da mesa e estar tudo em aberto até que exista uma maior capacidade de comprometimento. Mas não podemos deixar de salientar que conseguimos algumas medidas. Reforçamos as verbas para os centros de recolha oficial de animais de companhia, conseguimos pela primeira vez que passassem a estar previstas a criação de parcerias para os hospitais públicos veterinários que possam dar resposta às famílias carenciadas que têm animais de companhia e às associações zoófilas. Conseguimos o reforço das equipas do INEM para a emergência médica de saúde mental. Vamos dialogar nos próximos dias…

Não há muito mais tempo para negociar…

Sabemos que não há muito tempo, mas para nós é fundamental que existam mais avanços. Na matéria da proteção animal cinco milhões de euros fica muito aquém daquilo que são as necessidades. O mínimo para darmos uma resposta mais estruturada são dez milhões de euros.

Sentiu mais disponibilidade da parte do Governo a partir da hora em que se percebeu que as negociações com o Bloco de Esquerda estavam a correr mal?

Só o Governo é que lhe pode responder a isso. Nunca nos demitimos de trabalhar em prol do avanço das nossas causas, mas acreditamos que é um dever de todas as forças políticas contribuírem para que o país ultrapasse esta crise.

O PAN, até agora, não votou contra nenhum dos orçamentos de António Costa…

Até agora não votamos contra. O_PAN já se absteve e já votou a favor. Neste momento está tudo em aberto. Não nos demitimos de apresentar soluções pugnando também pelo equilíbrio orçamental. Temos consciência de que é preciso manter as preocupações com o equilíbrio do défice para evitar uma derrapagem. Temos apresentado algumas soluções. Por exemplo, terminar com as ‘borlas fiscais’ ou subsídios perversos como as isenções do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP) para a navegação aérea e marítima. Mas também revisitar as parcerias público-privadas (PPP) rodoviárias ou até mesmo a renegociação do contrato do Novo Banco. Temos aqui um caminho que tem de ser feito por todos os partidos e perceber que o país, neste momento, não quer uma crise política em cima de uma crise social e económica.

A necessidade de evitar uma crise política, tendo em conta a crise económica e o facto de não poder haver eleições, vai pesar na decisão do PAN?

Não negamos que isso tem o seu peso nesta análise deste Orçamento. É importante que este Orçamento possa dar respostas sociais. Desde o primeiro momento que defendemos o rendimento básico de emergência e ele existe. Há outras medidas para garantir a manutenção dos postos de trabalho num contexto muito delicado para as empresas.

Considera que este Orçamento responde à crise social que estamos a viver por causa da pandemia?

Dá algumas respostas à crise social. Há medidas que não podemos desvalorizar apesar de defendermos que é preciso ir mais longe em matéria ambiental. Podemos reverter este paradigma e criar financiamentos diretos e linhas de investimento para as empresas poderem reconverter os seus modos de produção em modelos mais sustentáveis.

O Governo tem reagido bem à pandemia, nomeadamente na forma como preparou o país para uma segunda vaga?

O Governo reagiu bem inicialmente com as medidas de confinamento, mas começou a acusar algum desgaste na fase de desconfinamento. O Presidente da República, muitas vezes, também não ajuda a manter alguma serenidade na gestão desta crise sanitária com o seu comportamento ou com a posição que adota em relação a determinadas matérias. O Governo e o próprio Presidente perderam a oportunidade de implementarmos medidas, durante o verão, fundamentais para a segunda vaga.

Esperava outro comportamento do Presidente da República?

O Presidente da República poderia, por exemplo, pedir para que se retomassem as reuniões do Infarmed (entre políticos e especialistas). Era um modelo que tinha o seu mérito. É importante que as forças políticas sejam esclarecidas para compreendermos as decisões e a evolução desta crise sanitária. Por outro lado, no período do desconfinamento e sobretudo no verão perdeu-se uma oportunidade para anteciparmos aquilo que seria fundamental para combater a pandemia. Não se planeou, por exemplo, a questão dos transportes públicos. Não se assegurou o distanciamento entre utentes. É fundamental mantermos a serenidade. Não podemos andar distraídos a discutir a aplicação StayAway Covid ou potenciais crises políticas

 

O PAN, ao contrário do Partido Socialista, decidiu apoiar Ana Gomes. O que levou o PAN a identificar-se com esta candidatura?

É a única candidata que se apresenta como verdadeiramente independente. É uma mulher progressista e humanista que tem manifestado preocupações do ponto de vista dos direitos humanos. Tem feito oposição, do ponto de vista ambiental e humanitário, a regimes como o de Bolsonaro. O país tem perdido a oportunidade de dar a possibilidade a uma mulher de chegar à presidência da República.

O facto de ser mulher pesou na decisão?

Não pesou na decisão na medida em que acreditamos na meritocracia, mas vimos como um desafio muito interessante termos uma mulher com a possibilidade de discutir a segunda volta. Tivemos Maria de Lurdes Pintassilgo, que deixou a sua marca, mas o facto de Portugal nunca ter tido uma mulher como Presidente da República mostra que ainda há num grande caminho a fazer nas matérias da igualdade de género. Os principais cargos do Estado continuam a ser ocupados por homens. Temos um Presidente, um primeiro-ministro, um presidente da Assembleia da República e podia continuar por aí adiante que continuavam todos a usar calças. Há aqui um desafio muito interessante que é trazer um rosto feminino para a presidência da República.

Qual é a avaliação que faz do mandato do atual Presidente da República?

Reconhecemos que teve as suas virtudes no sentido em que é um Presidente mais próximo da população, mas há matérias, do ponto de vista ideológico, em que não nos podemos identificar com este Presidente. É um Presidente que apoia a tauromaquia e nunca teve, por exemplo, uma palavra a dizer sobre as alterações climáticas e as preocupações ambientais. Mesmo em relação ao combate à pobreza tem uma visão assistencialista. É um Presidente que, se calhar, está disponível para apertar a mão à China, ao Brasil e aos regimes que violam os direitos humanos não é claramente alguém com que nos possamos identificar.

André Ventura tem a ambição de ficar em segundo lugar. Isso também contribuiu para apoiarem a candidatura de Ana Gomes?

Não quero dar mais importância a André Ventura do que aquela que ele tem, mas não podemos descurar o crescimento de forças políticas antidemocráticas. É importante que os portugueses comecem a conhecer o que representa o Chega. Estamos a falar de uma agenda de extrema-direita que não defende uma visão mais respeitadora dos direitos humanos. Não podemos aceitar em pleno século XXI a intolerância que esta agenda traz em matérias como o racismo, a xenofobia…

Compreende o sucesso destes fenómenos populistas?

Olhamos com preocupação para esses fenómenos. A máquina que está por trás destes fenómenos populistas deve preocupar-nos a todos. Por outro lado, existe uma insatisfação da população relativamente a algumas respostas que esperam obter. Pensamos, por exemplo, na Justiça e na lentidão que existe, a falta de investimento no combate à corrupção… Tudo isso choca as pessoas, nomeadamente quando temos escândalos políticos como aquele que envolve um antigo primeiro-ministro [José Sócrates]. Mas a resposta para este tipo de preocupações não está nestes movimentos antidemocráticos que não apresentam soluções. Temos ouvido o discurso de André Ventura no Parlamento e não apresenta soluções para o país.

Mas, aparentemente, está a dar-lhe votos?

Nem todos os fins justificam os meios. Em democracia, temos sido muito tolerantes com a intolerância. Os sistemas democráticos atuais têm de saber lidar com estes fenómenos. Estes movimentos de extrema-direita podem crescer em Portugal, mas também acredito que da mesma forma que estão a crescer se irão esvaziar. Os portugueses não se identificam com as causas que representa André Ventura e vão perceber que não é no Chega que encontram as respostas que o país precisa.

Foi candidata à câmara de Lisboa nas últimas eleições autárquicas. O PAN tem a ambição de reforçar a votação nas eleições autárquicas?

Sim. Acreditamos que um dos grandes desafios que temos pela frente é reaproximar as pessoas da vida pública e política. Nas autárquicas há uma maior proximidade com o eleitorado e estamos a ouvir quem está no terreno e a desafiar os cidadãos a enviarem os seus contributos. Em Lisboa, o PS está na câmara desde 2007 e esta governação, sobretudo com Fernando Medina, tem ficado muito aquém das necessidades. Não tem correspondido aos desafios do nosso tempo. Tivemos a distinção de Capital Verde Europeia 2020 e a forma de o assinalarmos não foi com árvores, mas com bandeirolas. Isto diz tudo sobre a política superficial que temos na cidade de Lisboa.

Foi provedora dos animais na Câmara de Lisboa, entre 2013 e 2017, mas renunciou ao cargo. O que correu mal?

Exerci as minhas funções em regime de voluntariado e tive muito gosto em exercer essa missão. Não correu bem porque o executivo não sabe lidar com as provedorias e com a necessidade de dar meios humanos para o seu funcionamento. Não fui a primeira provedora a bater com a porta e a câmara municipal tem de perceber que o provedor não é uma ameaça. Vai ser agora criado um provedor nacional. É um passo importante em matéria de defesa dos animais.

Como responde às pessoas que criticam o PAN por estar mais preocupado com os animais do que com as pessoas? Estou a pensar nos idosos ou nas pessoas mais vulneráveis…

É uma crítica fácil que não faz justiça a uma sociedade que se preocupa com os animais. Uma sociedade que se preocupa com os animais é certamente uma sociedade mais desperta para em primeiro plano se preocupar com as pessoas. Não nos podemos esquecer que a violência contra os animais está intimamente ligada à violência contra pessoas. Existem vários estudos que nos dizem que em contexto de violência doméstica existe uma relação entre os maus-tratos a animais e os maus -tratos às pessoas. O_PAN tem uma visão integrada das políticas. Sabemos que mais de 50% dos lares têm animais de companhia. Houve uma mudança de paradigma na forma como as pessoas encaram os animais que passaram a fazer parte do contexto familiar. Os valores humanitários não podem ser indiferentes à forma como tratamos os animais. Estamos muito distantes do respeito pela natureza e temos de mudar a forma como tratamos os animais. Não temos o direito de maltratar os animais por mera conveniência. Seja para espetar um toiro na arena, seja para pontapear um animal de companhia…

Uma das primeiras propostas do PAN foi no sentido de acabar com as touradas. Já trouxe o assunto várias vezes ao Parlamento, mas a maioria dos deputados está contra a abolição. Continua a acreditar que as corridas de toiros vão desaparecer em breve?

O poder político tem estado em contraciclo com aquela que é a sensibilidade dos portugueses. Uma sondagem da Universidade Católica sobre a realização de touradas no Campo Pequeno foi muito expressiva naquilo é uma vontade de que não existam apoios públicos para as touradas e não existam touradas no Campo Pequeno. O poder político tem ficado refém do lóbi da tauromaquia. É uma atividade que tem sobrevivido à conta do balão de oxigénio dos dinheiros do Estado e aquilo que o PAN quer é reverter a possibilidade de financiamento destas atividades.

Mas aquela ideia de que as touradas iriam acabar a curo prazo não está a concretizar-se.

As touradas estão em declínio. Há cada vez menos praças em Portugal com este tipo de espetáculos. Esta legislatura está longe de acabar e acreditamos que serão dados mais passos no sentido de restringir a atividade. O Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas já instou, por duas vezes, Portugal a proibir a presença de menores nos espetáculos tauromáquicos.

O PAN defende que as crianças e os adolescentes sejam proibidos de assistir a uma corrida de toiros?

Queremos que seja proibida a possibilidade das crianças assistirem a corridas de toiros.

Pode fazer mal às crianças assistir a uma corrida de toiros?

Existem vários estudos nesse sentido. Veja-se que o Comité dos Direitos da Criança da ONU equiparou as touradas aos grandes fenómenos de violência. Há um impacto do ponto de vista emocional. A criança não compreende o que leva o pai a validar aquele comportamento que muitas vezes lhe causa esse trauma. Tendo em conta o impacto nefasto que a tauromaquia tem nas crianças e jovens aquilo que esperamos é que até ao final desta legislatura se possa interditar a presença de crianças e jovens nestes espetáculos. Não deixaremos de lutar pela abolição. Entendemos que estamos do lado certo da história. Não faz sentido que nos continuemos a divertir à conta do sofrimento animal. Como é que se justifica que a tauromaquia possa voltar a ter público? É uma atividade que não é essencial para o país e não produz riqueza. Não faz sentido que a tauromaquia continue a beneficiar de exceções em detrimento de outras atividades como por exemplo o futebol. Esta atividade há muito tempo que devia ter sido banida.

Nunca viu uma tourada?

Não, nunca vi. Já vi trechos de vídeos quando recebemos denúncias.

Se a convidassem para assistir não aceitaria?

Não, não aceitaria. Há uma questão de sensibilidade e de compaixão com os animais que não podemos deixar de ter. Perpetuem-se os trajes, as coreografias, coloque-se a tauromaquia num museu. Há uma componente social na tauromaquia que não ignoramos. As pessoas vão pelo convívio e se calhar estão desconectadas do sofrimento que é causado ao animal. Mas temos de dar este salto civilizacional e deixar de massacrar o pobre animal. Terei muito gosto em ir ver os toiros no dia em que estiverem no campo.

 

Acredita que os toiros continuariam a existir se acabassem as touradas…

Se existe paixão pela raça brava de lide podemos criar incentivos para a preservar. Fizemos um processo legislativo muito positivo em relação aos circos com incentivos para a reconversão da atividade. A realidade das touradas é diferente…

As touradas não podem acontecer sem animais.

Existe essa possibilidade. Há vilarejos em Espanha que já fazem largadas com toiros insufláveis para que a população se divirta sem sofrimento animal. O ser humano é muito engenhoso e tem várias formas de conseguir divertir-se sem ser à custa do sofrimento animal. Se querem preservar alguma componente daquilo que é o espetáculo tauromáquico podem preservar-se as coreografias e os trajes, mas deixem o animal em paz ou arranjem toiros mecânicos. Estamos a falar de uma atividade que traz sofrimento para os animais, mas também para as pessoas. Temos, muitas vezes, forcados que são magoados durante a lide. Já morreram pessoas ou ficaram tetraplégicos. Isto não faz sentido nenhum.