O Cânone. Intrigas e travessuras conventuais

Num gesto enfático de quem puxa o pano de uma coluna que não estava propriamente oculta, gesto a que se chama descerrar o monumento, surgiu entre nós um livro de ensaios de crítica literária com a pretensão de firmar a lista das listas. Mas “O Cânone” não traz grande novidade no que toca à eleição…

Hoje, nem os esforços mais inoportunos ou aberrantes dispensam uma certa pompa, particularmente no que toca à vida cultural, essa que, no mesmo compasso em que vai perdendo relevância, e capacidade até de reflectir ou representar as experiências que vamos vivendo, parece enaltecer-se com a sua incapacidade de reagir. Mas, ao invés de assumir esta desistência, assume orgulhosamente a sua incapacidade de colar os cacos do tempo, de retomar uma qualquer razão ordenada, agarrando-se à boneca de pano de um passado morto, e apertando-a contra o peito nos momentos em que uma crise de ansiedade toma conta dela. Vemos assim um certo discurso fluir desde as regiões que se tomam por elevadas e que pouco difere do discurso dominante, esse que exibe, como notava Derrida, frequentemente aquele tom algo maníaco, jubilatório e encantatório que Freud reconhecia na chamada fase triunfante do processo de luto. Esse regime cadenciado, quando não ritualizado de certos encantamentos, é sinal tantas vezes de uma desistência ou até de rejeição profunda do futuro, e produz uma cultura de ecos cada vez mais fracos, de bocados, restos de frases, linhas em que o sublinhado sinaliza o que foi apropriado como um mantra, para manter o mais longe possível o mau-olhado do futuro.

Apareceu por estes dias uma colecta de textos de crítica literária investida, na forma como foi apresentada, desse delírio triunfal das patéticas ficções cheias do convencimento da sua preponderância. Assim, foram os próprios envolvidos a assumir que “O Cânone”, obra editada pela Tinta-da-China e financiada pela Fundação Cupertino de Miranda, deveria provocar algum celeuma, gerar uma torrente de reacções indignadas, e os editores adoptaram aquela pose desafiadora, como quem passa a mão pelo coldre, dizendo-se ansiosos por eventuais polémicas ou convites para duelos. 

Por agora, depois de umas vagas notas na imprensa, instalou-se aquele concerto dos grilos, que apenas nos diz que a noite não tropeçou em nada. Não se ouviu gritos, e Vivien Leigh continuou com a cantoria no chuveiro. Houve duas sessões de apresentação, uma delas no Jardim Botânico de Lisboa, com Ricardo Araújo Pereira a assumir a moderação, e a cansar o velho número do paraquedista que jura não entender porque raio insistem em chamá-lo para estas coisas. Essa sessão andou pela centena de pessoas seguindo a coisa em directo. Se alguém estava em pulgas para saber a lista dos escritores ou dos ensaístas o mais certo é que se tenha entretido a esmagar entre as unhas até à última das pulgas, pois a sessão foi tudo menos empolgante. A do dia seguinte, com apresentação a cargo de Pedro Sobrado, e as intervenções bem mais desenvoltas dos organizadores, especialmente de António M. Feijó e de Miguel Tamen, essa acabou por se mostrar bem mais compensadora para o pequeno auditório virtual que seguia a apresentação. Não estariam mais de 40 pessoas num mesmo momento a acompanhar esta segunda sessão. “O cânone é uma lista é uma lista é uma lista” começou por notar Sobrado, mas disse que sendo este um título anódino é, ao mesmo tempo, assombroso por tudo o que esta palavra consegue evocar – “desde o índice de textos sagrados até controvérsias sísmicas de especial magnitude”. Depois, e assumindo que existe hoje um meio literário, atendido e açulado por um público, deixando-se exaltar ainda por campanhas de promoção ou liquidação total, diz que este livro “possui um carácter incendiário”, isto por causa dos debates virulentos acerca do cânone, os quais por cá tão poucos acompanham como uma partida de futebol, e só por um rádio a pilhas, em diferido e com má recepção, tratando-se de pleitos travados noutras geografias. Sobrado punha essas querelas a par de outras motivadas pelas “sensibilidades pessoais e íntimas, confrarias académicas, tribos literárias”. Mas é difícil perceber quem são esses a quem esta edição poderá causar mais do que um certo incómodo, algo mais que um beliscão ou um passageiro episódio de urticária. O mais natural é que, até por cálculo, diante de um esquadrão destes, os hipotéticos ofendidos deixem a coisa passar, e não se oiça ou leia mais que um resmoneio inconsequente à margem destas margens.

No entanto, é a presunção de que uma iniciativa editorial como esta possa assumir um carácter incendiário que chega a ser enternecedora, uma ficção ao mesmo tempo ingénua, como se, além da pauta fixada nos corredores, a tal listinha, fosse haver alguma revisão na bolsa dos valores literários, como se esta obra sinalizasse outra coisa que não um organigrama com a actual composição da comissão que dirige as festas e que tem o dedo na balança no que toca à promoção e despromoção dos autores a quem se vão dedicando teses, currículos e o raio. Sendo esta, em grande medida, uma recolha de actas, de circulares internas, de resumos de aulas, é disparatado quando Pedro Sobrado afirma que há o risco “de ninguém se rever n’O Cânone”. O verdadeiro risco que esta obra corre é de outra natureza: o de se estar tudo a marimbar e ser este gesto apenas mais outro exemplo da histeria algo nostálgica de uma “casta sacerdotal” que prega aos peixes e pouco mais. Um conciliábulo que, em face da ruína, não abre mão da postura teatral, com aquela atitude de soberba envolvida numa boa dose de anacronismo. Mas finjamos, por um momento que seja, aceitar o desafio, e discutamos essa ultrapassada questão. Não nos peçam é que levemos a coisa ao ponto de nos comovermos ou escandalizarmos com a intriga ou os personagens desta chatíssima peça de um só acto interminável, desfiando o delírio de um século ausente, a tossir o pó e as aranhas nos sótãos ou nas caves, entre a desilusão e o reacionarismo. Um século no qual um bando de académicos se convencem de que ainda são capazes de armar uma bulha dos diabos seja por, desta vez, Sophia não merecer senão uns piropos, seja por Eugénio ter sido deixado sozinho no Jardim de S. Lázaro a medir o tesão das flores ou Graça Moura em brasa e perdido no gozo com as suas musas em trajes menores, seja por terem recambiado Vergílio Ferreira para as évoras do Além ou Cardoso Pires para repórter de crime nalgum pasquim de pouco prestígio ainda que com mais proveito, até literário, do que o de tantas publicações académicas duplamente subsidiadas: quando são pagas e, depois, quando fazemos o favor de as ignorar.

O tom que caracteriza as intervenções mais contundentes neste volume é o da empáfia, o de uma injustificada sobranceria, um registo que se aproxima mais da crónica que do ensaio de crítica literária. E é Miguel Tamen quem se destaca nessa potestade que, nas voltas que dá, vai desenhando o seu próprio ralo, o vazio onde tudo acaba, entre banalidades denotativas, arremedos dando nó ao saco das obviedades ululantes, deduções vulgares, infusões e vapores achacantes, tudo como quem se baixa para acariciar um papagaio imaginário ou numa cadência de quem marcha e leva atrás de si uma pequena tropa. Sirva de exemplo a entrada que dedica a Portugal: “Quando se fala de Portugal, como aliás de literatura portuguesa, há uma grande diferença entre o que os portugueses fazem e o que os outros dizem. No caso da literatura portuguesa pode pensar-se que tal se deva a terem os portugueses lido mais livros de literatura portuguesa que os não-portugueses. Acontece que poucos portugueses leram literatura portuguesa, e a maior parte não se lembra de nada”. Aqui e ali, deparamo-nos mesmo com apatetadas tentativas de comédia: “Bem entendido, os portugueses não são uma pessoa ou sequer um animal. A palavra ‘portugueses’ designa uma soma de pessoas muito variadas, e não um ser vivo independente, por exemplo uma pessoa muito grande, ou muito gorda, ou com muitos braços.”

Mas o que mais denuncia esta atitude de quem, a coberto da liberdade da crítica para expor opiniões, usa de um tom jocoso, e faz desse exercício uma forma de tagarelice, em que as provocações degradantes assumem um tom de snobeira insuportável, lê-se numa passagem como esta: “Os portugueses, tantas vezes impiedosos com os erros de ortografia e as imprecisões em guias turísticos compostos no estrangeiro, tendem a encarar com mais benevolência o Holocausto só porque muitos refugiados, e mesmo alguns refugiados ilustres, passaram brevemente por Lisboa, como num grande congresso internacional. Tudo no mundo, acreditam, existe essencialmente para chegar a Portugal.”

Isto não quer dizer que boa parte dos textos não sejam contributos bastante curiosos, instrutivos, um punhado deles até admiráveis pela abordagem desempoeirada, mostrando-se relevantes para o estudo das obras. Textos como o de Joana Meirim sobre Sena, o de Abel Barros Baptista sobre Camilo ou o de Hélio J.S. Alves sobre Camões são, além do mais, leituras muitíssimo prazerosas. Mas um dos poucos ensaios verdadeiramente empolgantes neste livro é o que Pedro Mexia dedica a Agustina. E deve sublinhar-se como este texto é duplamente excepcional, pois quem o assina é um crítico cuja desenvoltura foi ganha nos jornais, com um percurso bastante irregular, mas sempre legível.

Se não pudéssemos descobrir outros méritos nesta tão diversificada panóplia de abordagens, seria de saudar, pelo menos, o esforço de concisão que torna apetecíveis textos que normalmente, mesmo se bem esgalhados, acabam por enfadar-nos pela extensão. Por outro lado, entre o “intimidatório tom clínico”, o “estilo doutor”, que nem todos conseguem dispensar, ou o registo de pura enfatuação, o leitor é levado a sentir que alguns destes autores se lhe dirigem como se exigissem que ele se inclinasse perante a sua erudição e inteligência, reconhecendo-os como os senhores de um vasto reino. Infelizmente, lidos os ensaios, bem vistas as coisas, tudo não passa afinal de uns quintais entre a Alameda da Universidade e a Avenida de Berna. De resto, numa obra que não parece ter poupado nas despesas, beneficiando da mestria gráfica de João Bicker, a qual empresta ao volume aquela pose de sobriedade imponente, numa obra que estava a ser preparada há sete anos, não deixa de ser revelador o facto de o único crítico literário produzido pela nossa academia e que merecia figurar entre o rol dos grandes autores da nossa contemporaneidade não se encontrar no elenco dos eleitos. Esse crítico é Silvina Rodrigues Lopes.

Mas passemos à questão do cânone. No ensaio “Tradição e Talento Individual”, Eliot discute a relação recíproca entre o canónico e o novo, fazendo-nos ver como este se define por reacção ao que está estabelecido, ao passo que o que está estabelecido precisa de se reconfigurar por reacção ao novo. Assim sendo, como sublinhou Mark Fisher, “a tradição não conta para nada quando deixa de ser contestada e modificada”. “Uma cultura que seja meramente preservada não é de todo uma cultura.”

O que Eliot nos diz nesse célebre ensaio é que os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si mesmos, mas que as fundações não apenas resistem a poderosos abalos como os integram, fruindo de forma oscilante, deixando-se modificar. Ainda que a deslocação seja subtil, estes revelam-se estruturas capazes de inchar ou contrair, adaptando-se ao desafio imposto pelo que traz verdadeira novidade. A ordem existente persiste assim graças a essa respiração que está consciente da linha que se segue, movendo-se de um para o outro nó e, ao mesmo tempo, funciona como um feixe trepidante e articulado de melodia e consciência. Como se a tradição fosse uma razão que concebe o próprio tempo ou, pelo menos, a noção de que os melhores artistas, os mais empenhados e eruditos, são capazes de absorver. E o exame crítico é tão mais preponderante quanto faz do leitor uma instância decisiva nesta conturbada negociação, saindo este de uma posição passiva e assumindo um papel mediador. Atento a essas minúsculas veias do resplendor, à forma como se transformam as relações e proporções, aos valores que se deixam reajustar, permitindo que a novidade se imponha em desafio ao estabelecido, é aí que o crítico vai urdindo a ficção de uma história literária, em que uma espécie de húmus se alimenta e renova sempre, ao mesmo tempo resistindo e cedendo. O desafio que leva os artistas a uma certa “despersonalização” no confronto com o estabelecido, essa mesma capacidade de ganhar um balanço que os precede, deve exigir-se aos críticos, capazes de guiar sem deixarem de se submeter ao que há de hipnótico na literatura, a esse campo cheio de raízes e ramos como numa mata cerrada. E, à medida que abrem passagem, deixam que o movimento de debandada da tradição se aposse também deles, criando uma perturbação formidável, mas de tal modo consonante que, se provoca uma nova inflexão, um desvio por mais pequeno que seja, se mostra tanto mais convincente ao criar a ilusão de que, por mais improvável que tenha chegado a parecer, estivesse desde sempre predestinado.

Façamos um desvio para irmos mais fundo numa razão que não prescinde de elos secundários, dos grandes autores menores, esses que garantem uma verdadeira articulação e oxigenação desse sistema nervoso imortal. Nos quadros de delírio que impregnam a escrita de Bruno Schulz, os quais mantêm uma fulgurante vizinhança com as visões proféticas, ele fala nesse despontar de uma estação cheia de vida em que “as raízes passeiam na escuridão, confundem-se e erguem-se, e numa inspiração enchem-se de seivas como bombas de sucção”. “Estamos do outro lado, estamos no forro das coisas, na escuridão alinhavada com uma fluorescência que se confunde a si mesma. Que circulação, que movimento, que turba! Que formigueiro e polpa, que povos e gerações, Bíblias e Ilíadas multiplicadas mil vezes! Que migração e tumulto, que reboliço e confusão da história! (…) Aqui encontram-se os grandes viveiros das histórias, as fábricas de fábulas, as nebulosas salas de fumar dos enredos e dos contos de fadas. Agora, finalmente, é possível entender o magnífico e triste mecanismo da Primavera. (…) De onde tirariam os escritores as suas ideias, de onde retirariam a coragem da invenção, se não sentissem atrás de si essas reservas, esses capitais, essas numerosas prestações de contas com as quais vibra o Subsolo. Que confusão de sussurros, que ruído rosnador da terra! Uma persuasão inexaurível palpita ao teu ouvido.”

Mas aqui não há propriamente uma articulação dessas correspondências que permitam elaborar um cânone, quanto mais o cânone, pois não existe neste projecto nada senão uma ênfase nos protocolos que fazem da própria academia um regime que pretende dar corda à memória, sem, no entanto, compreender que essa memória está dependente da sua constante reactivação, e não por via de uma reconfirmação de registos notariais, burocráticos, os repetitivos modos de vistoriar o vistoriado, mas criando novos nexos, fornecendo as coordenadas de uma movimentação que continua a dar-se. Assim, não faz sentido que o cânone pretenda ser um  reino nebuloso desligado do que de novo se tem vindo a propor, pois isso significa fazer do presente algo que se define por uma acomodação extrema ao passado, incapaz de contestá-lo, de obrigá-lo a modificar-se.

Num certo sentido, estes júris, que fora da academia não fazem mais do que traficar prémios entre si e aqueles que lhes fazem a corte, o que conseguem é produzir uma indistinção entre o passado e o presente, o que fica evidente pelo facto de estarem muitas vezes a produzir um tipo de conhecimento que se funda numa retroactividade, com um delay de uns 30 ou 40 anos. E isso fica patente nos autores estudados, e este corte tende a agravar-se, de tal modo que o cânone nos surge cada vez mais como uma realidade que dança sobre a sepultura do presente. Hoje, a suposta crítica literária que nos chega da universidade mostra-se incapaz de se relacionar com o presente. E, como se quisesse preservar-se de trabalhar sobre causas improcedentes, de imprudências de cálculo que se venham a revelar inúteis, fecha-se no nervosismo de sistemas em que, na relação entre a aranha e a mosca, sobre a teia essencial que cria esse vínculo de vibração, esse coração que palpita entre predador e presa, vem a estabelecer-se toda uma superestrutura sufocante, uma fabulosa inércia de investigações que contaminam a cena. De tal modo que se torna impossível discernir exactamente o que estava lá originalmente, o que é relevante face à balbúrdia de toda essa parafernália de instrumentos de estudo e exames periciais, as marcas deixadas por um bando de ociosos detectives que gostam de se demorar o mais possível, até para não terem de se medir com essa substância em permanente convulsão que é o presente.

Estamos, por isso, do ponto de vista estético, trancados do lado de fora das nossas experiências, e a academia parece congratular-se por não lhe ser pedido nada senão que se mantenha plantada, numa função de guarda do museu. Ocasionalmente, como acontece com a edição de uma obra como esta, para iludir-se quanto à importância da sua missão, procura estabelecer perímetros no exterior do campus, criando estas empresas de segurança privada que não fazem mais do que proteger as propriedades que confinam com as da universidade. E, desse modo, alicerçado nalgum projecto de poder, em que emergem novas figuras que pretendem estabelecer uma hierarquia em certas áreas dos estudos académicos, vão-nos chegando estas circulares que, com maior ou menor aproveitamento, não fazem mais do que um censo, uma sondagem das preferências a um dado momento, as típicas disposições sobre a glória, “esse sol dos mortos”, que, se os ilumina e acalora numa hora, na outra, já os amarelece, devido a um excesso de exposição. Como sabemos, também a luz, se não for doseada, resseca, impedindo as raízes de passearem na escuridão.

Vemos assim que, propondo-se como uma espécie de estado da arte no que toca à crítica literária, este volume serve, não para tomar um balanço em relação aos reajustamentos e adaptações quanto ao que de novo tem aparecido na literatura portuguesa, produzindo ajustamentos e esforços de adaptação, mas ficando por esse reino pouco sobressaltante das práticas burocráticas. Aos poucos, perde-se o fio a essa história animada pela reciprocidade que garante a pregnância do que se reafirma como canónico, ficando à superfície apenas uma rede artificialíssima de valores impostos por uns senhores esmagados pela sua própria erudição, e que se tomam a si mesmo por um bando de meninos travessos, num círculo fechado no relvado à frente da academia, sem se darem conta do ridículo que é pretender fixar o cânone como se se tratasse de uma península cujo acesso é controlado por ordens de monges ou freiras.

O resultado é que, através deste modelo em que a crítica literária se transforma numa espécie de técnicos de decoração de interiores, numa simulação de uma eternidade que se desvinculou do presente, tentando compensar-nos da sensação de perda do futuro, dão esta deleitosa reconstrução arqueológica, à medida que a história parece construir uma perspectiva da contemporaneidade que não tem paciência para as flutuações do presente, e induz uma espécie de nostalgia apegada a um passado que precisa de morrer, para que o seu espírito caminhe entre nós num enfático desdém por tudo o que lhe sobreveio.

A esta forma de lembrança que isola e petrifica seria de preferir algo como uma descoberta que partisse de uma sincera ignorância, e aqui, recorro uma vez mais a Schulz: “Como esverdeia a Primavera de esquecimento; como recuperam as velhas árvores a sua doce e ingénua ignorância, como despertam nos ramos livres da memória, mantendo as raízes imersas nas antigas histórias! Esse verde vai lê-las mais uma vez como novas, soletrá-las desde o princípio até que as histórias rejuvenesçam e recomecem, como se nunca tivessem existido.” Ao reclamar, à partida, um texto ou, pior ainda, um autor como canónico, aquilo que se lhe faz é condená-lo a ser lido enquanto figura de museu, algo que se impõe, e não uma experiência incerta que se lança no desconhecido, se expõe ao delírio luminoso e errante dessa substância que elege a escuridão, que detesta precisamente o que se fixou, o que age não por si mesmo mas por considerações que se lhe foram justapondo, sedimentando aquela experiência na sua inocência feroz. E, a este respeito, é importante dizer que, em literatura, a inocência é bem mais feroz do que essa fútil pretensão que alguns revelam de exibir o seu longo e invejável cadastro. Nada pior do que sólidos argumentos para deslocar esta virtude que tem um texto de se manter vivo, não por organizar as muitas certezas dos doutores, mas precisamente por baralhá-las, por rejeitar a unanimidade. Uma obra que ao mesmo tempo que se escreve tivesse debaixo da língua uma prece para que algo de obscuro se encontre com ela e a impregne de tal modo que não possa ser transformada em exemplo. Exemplo para o quê? Se ainda fosse para um regime de profanação, uma inspiração herética, para uma desconfiança absoluta desses juízos de valor supremos… Agora, virem lançar sobre ela “esse feixe de estruturas, tão inqualificáveis quanto inadequadas, ao acto em mim sozinho como a vida… puro”.

Se um autor está vivo não será pela forma como continua a ser descoberto com esse fascínio selvagem com que a Primavera esverdeia tudo com o seu esquecimento, e se deixa tomar de um resplandor que sente o antigo como algo que se precipita sobre ela ainda, e, deste modo, não responde como “uma obra”, uma “máscara mortuária” exibida num museu, mas está aí, como uma assombração que entontece a carne? E se for assim, qual é o interesse de fazer uma lista. Eles dirão que o motivo é precisamente suscitar o debate, levar a que se esgrimam argumentos entre posições contrárias. Mas se desde o princípio há um equívoco tão profundo que desenraíza logo a questão, que nos submerge numa ficção bastante grosseira em que os escritores parecem estar envolvidos numa espécie de concurso ou competição. E é aqui que se torna imperioso notar como o cânone é em si mesmo um sinal da neutralização dos textos, em que uma comissão saneadora pretende avalizar o benefício da leitura de certas obras, elencando uma série de valores, como se não fosse precisamente a forma como certos autores se esquivam a uma apreensão o que os torna tão sedutores e vivos. Por isso, vale a pena insistir que os verdadeiros escritores, e talvez isso se agudize no caso dos poetas, não gostam de se ver incluídos em grupos corais, sejam estes selectas literárias, mesmo com as melhores intenções, sejam congregações de que natureza for ou, sequer, camaratas nalgum purgatório. Por isso, são especialistas em evasões. Esquivam-se como podem, desviam-se de todas as maneiras, e não vão em balelas quanto aos acertos solidários que motivam boa parte dos esforços da crítica de pouco engenho para se fingir relevante. Só os outros é que estão sempre disponíveis e se comovem muito com os pedidos de que se juntem a algum grupo de canto coral. Assim sendo, os esforços de canonização não só não os alegram como devem até desanimá-los. Como vincou Julien Gracq, “não há santos na literatura: nada, nem à luz distante da glória ou da morte, nada senão hereges trancados nas suas formas singulares de heresia, rejeitando qualquer comunhão com os santos”.

E, no entanto, mesmo entregues a esses museus, a verem-se duplicados em figuras de cera, sabemos como isso acaba por ser um desafio que alguns autores conseguem superar. Mesmo depois de sujeitos a essa forma de aberrante macaqueação e a autópsias gratuitas popularizadas pelos programas de ensino, desde o liceu até à faculdade, experiências que provocaram em muitos de nós aproximações à literatura muitíssima maçadoras, quase pareciam programas de vacinação contra essa doença que tanto exige do doente. Mas alguns de nós lá nos safámos sem nos tornarmos imunes ao efeito da literatura. “Diz-se: os mortos esquecem-se depressa; pois bem nós vamos pôr a nossa memória ao serviço dos mortos. Diz-se também que os doentes são esquecidos; pois bem nós vamos pôr a nossa saúde ao serviço dos doentes” (António Maria Lisboa).

E, por isso, há a esperança de que os leitores não percam demasiado tempo com estes programas, mesmo se o melhor dos seus argumentos seja os nomes que comparecem naquela pauta contra a sua vontade. Resta traçar novos planos de evasão, ou mesmo partir as vitrines, e não deixar ficar nada do que nos seja tão vital e que não se possa simplesmente preservar nesses ensaios de mumificação. E terminamos, nesse sinal de esperança, com Schulz: “Tantas máscaras douradas umas ao lado das outras, sorrisos achatados, rostos corroídos, múmias, crisálidas ocas… Aqui se encontram esses columbários, essas gavetas funerárias, em que os mortos repousam ressequidos, negros como raízes, aguardando a sua hora. (…) Permanecem anos nos seus nichos, em longas filas solenes, embora ninguém os compre. (…) Esses pombais emparedados estão cheios de pequeninos bicos que saem da casca e das primeiras tentativas do chilreio luminoso. Como ficam de repente matutinas e prematuras essas alas vazias e longas, onde os mortos, bem descansados, acordam em filas – para uma madrugada completamente nova!…”