A Constituição é taxativa. «O Orçamento é elaborado de harmonia com as grandes opções em matéria de planeamento e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato», prescreve o n.º 2 do art.º 105.º da lei fundamental. Ou seja, a proposta do BE – aprovada com os votos de PSD, PCP, PAN, Chega e Joacine Katar Moreira em sede de especialidade –, que proíbe mais transferências do Fundo de Resolução para o Novo Banco, violando o contrato assinado pelo Estado aquando da venda desta instituição financeira ao fundo Lone Star, também violará assim aquela norma constitucional. Perante esta factualidade, o SOL confrontou a Presidência da República, que esclareceu que Marcelo Rebelo de Sousa «só tomará uma decisão depois de ler» o diploma.
A lei do Orçamento do Estado para 2021 só chegará a Belém dias depois da sua aprovação em votação final global. Recebido o diploma, o Presidente pode limitar-se a promulgá-lo, mas também pode decidir-se pelo veto político e pela devolução à Assembleia da República ou enviá-lo para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da constitucionalidade,
Neste primeiro mandato na Presidência, Marcelo Rebelo de Sousa, reputado professor de Direito Constitucional, tem recorrido muito pouco ao envio de diplomas para o Tribunal Constitucional. O que torna mais provável que, atenta a urgência da entrada em vigor do Orçamento de Estado, uma devolução do diploma à Assembleia da República caso entenda que esta (e outras normas) estejam feridas de inconstitucionalidade.
Por outro lado, se Marcelo se limitar a promulgar, o Governo (ou um grupo de parlamentares do PS) pode sempre suscitara fiscalização sucessiva daquela norma junto do Tribunal Constitucional.
Uma ‘trapalhada’
Ouvido pelo SOL, o jurista e sócio da Valadas Coriel & Associados Paulino Brilhante Santos classificou como «grave e insólita» e a decisão do Parlamento de aprovar uma norma-travão do cumprimento de um contrato celebrado pelo Estado.
No seu entender, ela poderá levar «o Presidente da República ou o Governo a invocar a inconstitucionalidade desta proposta relativa às transferências» para a instituição financeira liderada por António Ramalho.
De acordo com Paulino Brilhante Santos, as transferências que foram impedidas – em causa estão 476 milhões de euros – resultam do reconhecimento por parte do Estado de uma responsabilidade pela capitalização do Fundo de Resolução, que irá receber um empréstimo dos bancos para fazer face a obrigações contratuais que possam surgir para reforço da situação financeira do Novo Banco. «O que é grave e insólito nesta proposta aprovada pela aliança PSD/BE [PCP, PAN, Chega e Joacine] é a proibição de o Estado reconhecer essa responsabilidade financeira que, deste modo, fica fora do Orçamento do Estado para 2021. Dizem esses partidos, com uma acentuada falta de sentido de Estado e de responsabilidade política, que quando chegar o momento pode sempre fazer-se um Orçamento Suplementar», diz. E acrescenta que a «Lei do Enquadramento Orçamental determina que as despesas, garantias e responsabilidades do Estado devem ser reconhecidas no Orçamento, pelo que a proposta aprovada viola esta lei, que é uma lei de valor reforçado, isto é, uma lei que se situa acima da Lei do Orçamento do Estado na hierarquia das leis».
Ainda que a proposta de proibição de mais transferências para o Novo Banco tenha sido apresentada pelo BE, e de também ter merecido o voto favorável do PCP, do PAN e de Joacine Katar Moreira (todos parceiros de viabilização do OE para 2021), além do Chega, foi a posição do PSD (com a particularidade de os três deputados sociais-democratas eleitos pelo círculo da Madeira também terem vindo retificar à última hora o seu sentido de voto, por forma a garantir a sua aprovação) que motivou maior reação por parte do Governo e do PS.
Foi o próprio primeiro-ministro e líder socialista, António Costa, quem saiu a terreiro para condenar a «irresponsabilidade» da decisão de Rui Rio de alinhar ao lado da esquerda na aprovação da não autorização de mais transferências para o NB, reiterando as críticas que também o ministro das Finanças, João Leão, não deixou de fazer aos sociais-democratas. Mas a censura a Rui Rio e ao PSD neste caso não se ficou pelos socialistas e pelo Governo.
Para já, António Ramalho fala em «percalço» e lembra que decisão tem de ser «naturalmente analisada com profundidade». E acrescenta: «Isso só é determinado nas contas no final do ano, após um conjunto de escrutínios que pretendem ser feitos», referiu o presidente do Novo Banco. Ao SOL, garantiu que o banco é o mais escrutinado da Europa «Somos escrutinados pelo auditor externo do Banco – PwC até 2017, E&Y a partir daí, pela Comissão de Acompanhamento, pelo Fundo de Resolução que aprova todas as restruturações e alienações de ativos do CCA, pelo Agente de Verificação que avalia semestralmente as chamadas de capital, pelo Monetoring Trustee, Mazars, que avalia o cumprimento dos objetivos fixados pela Comissão Europeia. Adicionalmente o Banco é sujeito a auditoria aprovada pela Assembleia da República realizada pela Deloitte anualmente».
Em relação às operações de vendas de imóveis lembra que foram sujeitas a opinião independente da Alvarez & Marsal e a uma análise sumária pela PGR e a operação de venda de malparado foi sujeita a uma fairness opinion conduzida também pela A&M Asset Evaluation. «Em 2019 o banco sujeitou a sua política de ponderação de ativos (RWA) a uma auditoria independente da Deloitte. O Novo Banco está sujeito como entidade sistémica a supervisão do BCE e no respetivo enquadramento, a CMVM, a ASF e ao Banco de Portugal», referiu.
A maioria dos economistas ouvidos pelo SOL também não poupam esta decisão. Para João César das Neves, esta decisão «não terá qualquer efeito prático, a não ser perder-se mais tempo e fazerem-se mais manobras. Toda a gente sabe que o dinheiro vai acabar por ser transferido», acrescentando que «tudo isso é mera encenação para a plateia. O banco não virá abaixo. Os contratos vão ser cumpridos».
Também para António Bagão Félix, a deliberação aprovada da proposta do BE« «revela um sinal ziguezagueante que se deveria evitar perante as autoridades políticas, bancárias e monetárias europeias». E deixa um recado: «Creio que se poderia ter aprovado uma norma-travão relacionada com a auditoria independente (datada), como condição necessária para desbloquear a verba».
Mas apesar das críticas revela que compreende a explicação dada pelo presidente do PSD. Ou seja, só se dever autorizar a verba prevista para o Novo Banco uma vez concluída a auditoria.
Opinião contrária tem Eugénio Rosa ao defender a decisão da Assembleia da República. «O contrato assinado com a Lone Star é um contrato leonino (com o intuito de gerar enormes benefícios para um dos lados da relação que é a Lone Star, lesando os direitos da outra parte, que é o Estado e os contribuintes portugueses), portanto um contrato vergonhoso e ruinoso para o Estado e para o país».
Em relação à reação do Governo, o economista diz apenas: «O que é que podia dizer se foi um Governo presidido por António Costa, em que o atual ministro das Finanças era o Secretário de Estado do Orçamento do ex-ministro Mário Centeno responsáveis pela assinatura do contrato leonino com a Lone Star que tão elevados prejuízos causou já ao Estado e aos contribuintes portugueses».
Para quando a crise política?
Para César das Neves, o facto de Orçamento do Estado para o próximo ano ter passado é sinal que «ninguém queria uma crise política agora». E, apesar de admitir que as metas são possíveis de concretizar, lembra que «no meio de tanta incerteza será quase inevitável um, ou vários, retificativos». Quanto ao risco de virmos a assistir a uma crise política, o economista diz apenas: «É possível, como o Governo é minoritário depende de radicais mas não é provável. O Governo parece ter a situação controlada», refere ao SOL.
Já Bagão Félix acredita que este OE «será, muito provavelmente, a antecâmara da crise política subjacente ao OE para 2022, já num contexto de desejável superação da crise sanitária e de plenas funções do Presidente da República». E vai mais longe em relação às críticas quanto ao documento final. «Saem todos mal: o Governo porque vai ter um Orçamento para executar que, verdadeiramente, já não é o seu. Os partidos abstencionistas porque se contentaram com ‘um prato de lentilhas’ desconexo e retalhista, para satisfação dos seus ‘alvos cativos’. Os outros partidos porque contribuíram em abundância para coligações negativas inadequadas em tempo de forte crise. Em suma, se a proposta governamental de OE já era insuficiente, o documento final é ‘filho de ninguém’, agrava o défice e aumenta despesas clientelares», revela ao SOL.
Eugénio Rosa acredita que a necessidade de um orçamento retificativo vai depender da evolução da situação económica, que está dependente da pandemia e da crise de saúde que ela provoca. «Se se verificar a vacinação maciça da população no 1.º semestre de 2021, se a vacina for eficaz e a recuperação da económica se fizer, que certamente não será muito rápida, é de prever que um orçamento retificativo ou suplementar tenha menor dimensão. Mas o risco é grande. Isto porque as receitas do Estado, nomeadamente as previstas em IRC e IVA (22.000 milhões) são incertas pois dependem muito da economia, mas as despesas são certas e certamente aumentarão, embora o Ministério da Finanças, dominado pela obsessão de conter o aumento défice, tudo fará para atrasar ou mesmo não executar tudo o constante do OE», refere ao SOL.
Quanto questionado sobre o risco de uma crise política, o economista acredita que «isso pode acontecer», por entender que «não há impossíveis na politica». Ainda assim, diz que está convencido que o Governo e os partidos que criaram condições para que o Orçamento fosse aprovado tudo farão para que isso não aconteça.